sexta-feira, 28 de junho de 2019

O eu psicológico que o Buda não negou

Por Paulo Stekel


Atma X Anatma

Quando lemos ou ouvimos ensinamentos sobre Budismo, uma das primeiras coisas que causa estranheza a quem não está acostumado, incluindo psicólogos e psiquiatras, é a noção de anatma (Sânscrito) ou anatta (Páli). A tradução ocidental fornecida causa ainda mais confusão: “não-eu”.

O que não fica claro na definição é de qual “eu” se está falando. Se trata do “eu psicológico”? Mas, este conceito nem existia na época do Buda. O que existia era o conceito védico de “atma” ou “atman”, traduzido como “alma”, sopro vital e, especialmente, uma alma permanente, imortal.

No hinduísmo, atman é o mais elevado princípio humano, a Essência divina, profunda, sem forma e indivisível. O termo também é usado para expressar Brahman ou Paramatman. No Vedanta, na tese defendida por Shankara, o termo atman é usado para identificar a alma individual, o “verdadeiro eu”, traduzido como “Eu” para dar um caráter divino a esta alma, por ser idêntica ao Absoluto ou Brahman, e estar além da identificação com a realidade fenomenal da existência mundana.

No budismo, tal conceito de atman é explicitamente negado pelo conceito básico de anatta/anatman. Mas, o que constitui essa negação? O que realmente é negado? Parece óbvio, mas não é.

O eu psicológico

Para elucidar um pouco, apresentamos a opinião do Prof. Joaquim Monteiro, um monge budista brasileiro que é psicólogo e doutor em Budismo Chinês, em seu livro “O Budismo Yogachara” (Editora UFPB, 2015).

Em um trecho em que analisa a antiga escola budista chamada Yogachara, Monteiro esclarece o conceito de “vazio do atman” e afirma que o Buda não negou o eu psicológico:

Quando nos referimos ao vazio do atman estamos querendo indicar que o objeto de sua negação é a concepção hinduísta de uma alma eterna, não nascida e imperecível e não o conceito de ego conforme compreendido pela psicologia moderna. O termo vazio do eu ou vazio do ego conduz a uma compreensão do Budismo como negação da autoconsciência, compreensão essa que leva em geral a uma visão do Budismo como um primitivismo que conduziria a um estado infantil e pré-egóico. Essa visão é claramente falsa: o que o Budismo nega é a concepção metafísica do atman ou da alma e não a função psicológica da autoconsciência.”

O assunto se torna mais complexo quando jogamos isso contra os conceitos modernos da psicologia e das neurociências sobre o que gera a autoconsciência, mas fica claro que o Buda não se referia ao ego psicológico quando falava do anatman ou anatta. Buda disse que o Incondicionado é anatta, sendo essa uma das três características da existência (as outras duas são anicca - “impermanência” - e dukkha - “insatisfatoriedade”), conforme o artigo de Christopher Titmuss que já postamos aqui (ver: https://stekelblogue.blogspot.com/2019/06/o-que-o-buda-nao-ensinou.html). Ou seja, o que é incondicionado, não sujeito a causas e condições, é anatta/anatman, pois não é uma alma imortal, mas uma não-alma, que talvez seja a melhor tradução para anatman.

Etimologia e definições

Do ponto de vista etimológico, “atma(n)” vem do Sânscrito ātmán, “alma; essência; vento; sopro (vital)”, do Proto-Indo-Europeu *h₁eh₁tmṓ (*etmen), “sopro” (uma raiz encontrada em Sânscrito e Alemão; também no Inglês Antigo æðm, Holandês adem, Antigo Alto Alemão atum “sopro”, Inglês Arcaico eþian, Holandês ademen “respirar”). A ideia de “sopro” é semelhante à que encontramos na palavra Hebraica “Ruach” para definir o “espírito de Deus” no livro de Gênese.

O primeiro uso da palavra Atman em textos indianos está registrado no Rig Veda (RV X.97.11). Yaska, o antigo gramático indiano, comentando sobre este verso Rigvédico, aceita os seguintes significados para Atman: o princípio penetrante, o organismo no qual outros elementos estão unidos e o princípio senciente último.

A ideia, então, tem a ver com sopro, alma, espírito, essência profunda, mas não com o eu/self psicológico, apesar de algumas traduções citarem as palavras “eu” e “self”. É bom ressaltar que no Hinduísmo, Budismo, Jainismo e Vedanta, atman se refere não ao self psicológico, mas a um Self Real, um Self espiritual do ser que está além da identificação com os fenômenos universais, a essência do indivíduo, uma parte infinitesimal de Brahman. Um Self que sobrevive ao eu psicológico, ao ego, ao ser dentro de um corpo. Do ponto de vista da psicologia moderna, o Self se vai com o corpo. Quando se concebe algo que sobrevive ou preexiste ao corpo, se usa termos como Espírito (Ocidente) ou mesmo Mente (Oriente), incluindo, neste último caso, o Budismo. Mas, mesmo um termo como Mente tem muitos sentidos no Budismo e nas tradições indianas em geral. Mas, no Ocidente só possuímos o termo “mente”. Os indianos dividem o que nós chamamos de mente em diversas qualidades e características diferentes, o que confunde o estudante ocidental, com certeza.

Self X Self Real

Quando o Budismo diz que não há um Self transcendental ou uma Alma transcendental e diz que o Self Real é uma ilusão, está querendo dizer que o Self Real, o Atman do Hinduísmo, é que é ilusório, por não ser permanente e desaparecer com a morte. Não está negando a existência do eu psicológico que, como já dissemos, para a Psicologia está evidente que só existe pelo espaço de uma vida. Qualquer coisa, a partir desta visão, que preexista ou sobreviva à morte não é um eu psicológico (relacionado à personalidade, que depende de mente e corpo), não é um Self Real (uma alma imortal) e não é um espírito imortal, uma unidade imorredoura e imutável do Ser. Contudo, não está incluída nesta negação a noção de “consciência”. No Budismo Mahayana é muito importante a noção de um continuum mental de consciência que, todavia, não é um eu, um self, uma alma, um espírito ou um atma. Não é definido por termos fixos, porque não é algo fixo, permanente, uma personalidade eterna. É um conceito difícil de entender, e não pretendemos, com este texto curto, esgotar a polêmica.

Atman, no hinduísmo, não é considerado o mesmo que o corpo, a mente ou a consciência, mas é algo além que permeia tudo isso. Então, se Atman permeia a mente e a consciência, realmente, é algo que o Buda queria negar. Para ele, o corpo é perecível, a mente depende do corpo para que um indivíduo tenha autorreferência (o eu psicológico) e a consciência pode ser de duas naturezas: a consciência corporal que origina a noção de eu psicológico e a consciência além do corporal, não nascida e sempre existente, que não constitui um eu psicológico autorreferente. Isso é, como se vê, diferente do conceito de Atman, pois o aspecto mental que é esta segunda consciência é um continuum mental, uma continuidade dos processos mentais, mas não da personalidade ou de qualquer unidade autorreferencial. O eu psicológico só é ilusório porque ele não sobrevive ao tempo de uma vida, não porque não exista de modo algum. O Buda negou a inerência, a permanência e a existência sem causas e condições de qualquer coisa que seja no mundo.

Todas as escolas ortodoxas do hinduísmo sustentam a premissa de que o Atman existe como verdade evidente, mas o budismo sustenta que o Atman não existe como evidente, pois no âmago dos seres não há nada que seja eterno, essencial e absoluto. Segundo o Buda, para atingir o Nirvana, é condição sine qua non chegar a essa conclusão além da conceitualização, ou seja, por percepção sábia (prajña).

O conceito budista mahayana de Tathagatagarbha (natureza de Buda ou, literalmente, “útero do Tathagata”), que apareceu em Sutras do 1º milênio da era comum, sugere ideias semelhantes a um self. Ainda que isso seja um pomo da discórdia no Budismo desde então, estudos recentes, como os de Wayman e Wayman, afirmam que esses conceitos de “quase-self”, que também aparecem no Vajrayana, não são nem ego, nem ser senciente, nem alma, nem personalidade. Há quem postule que os Sutras Tathagatagarbha foram escritos para promover o budismo em meio a não-budistas (ver: https://books.google.com.br/books?id=JqLa4xWot-YC&pg=PA96&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false).

Para Johannes Bronkhorst, professor de indologia especializado em budismo e hinduísmo primitivos, embora possa haver dúvida quanto à existência ou não de um eu/self na literatura budista primitiva, fica claro, a partir dela, que buscar o autoconhecimento (o conhecimento de si, do self/eu) não é o caminho budista para a libertação, mas se afastar do autoconhecimento é. Isso faz sentido, porque não há motivo, do ponto de vista budista, para se autoconhecer um self ilusório e ficar fixado nele. O mero conhecimento do self ou eu psicológico não pode conduzir ao Despertar ou Nirvana, mas, de uma perspectiva da Iluminação, a transcendência desta busca sim, ir além do eu psicológico.

O importante é dizer que o eu psicológico existe dentro de seu escopo limitado, ilusório, impermanente e pelo espaço de uma vida. Qualquer terapia para resolver problemas ligados ao eu psicológico vai contemplar soluções temporárias também, pelo tempo desta vida. Mas, a busca do que está além do eu psicológico, ainda que não negue este eu como algo relativamente existente (mas, não inerentemente, como disse o Buda), não se fixa nele e o transcende, procurando acessar o continuum de consciência que não é uma personalidade, nem um agregado neuronal que tem como epifenômeno a consciência de autorreferência, nem um atma, alma ou espírito imortal com uma espécie de “personalidade cósmica”. O que o praticante busca em sua meditação, seja gradual ou não-dual, é acessar o que não é nada disso, a Mente de onde tudo isso se gera, de alguma forma.

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