Por Paulo Stekel
Atma X Anatma
Quando lemos ou
ouvimos ensinamentos sobre Budismo, uma das primeiras coisas que
causa estranheza a quem não está acostumado, incluindo psicólogos
e psiquiatras, é a noção de anatma (Sânscrito) ou anatta (Páli).
A tradução ocidental fornecida causa ainda mais confusão:
“não-eu”.
O que não fica
claro na definição é de qual “eu” se está falando. Se trata
do “eu psicológico”? Mas, este conceito nem existia na época do
Buda. O que existia era o conceito védico de “atma” ou “atman”,
traduzido como “alma”, sopro vital e, especialmente, uma alma
permanente, imortal.
No hinduísmo, atman
é o mais elevado princípio humano, a Essência divina, profunda,
sem forma e indivisível. O termo também é usado para expressar
Brahman ou Paramatman. No Vedanta, na tese defendida por Shankara, o
termo atman é usado para identificar a alma individual, o
“verdadeiro eu”, traduzido como “Eu” para dar um caráter
divino a esta alma, por ser idêntica ao Absoluto ou Brahman, e estar
além da identificação com a realidade fenomenal da existência
mundana.
No budismo, tal
conceito de atman é explicitamente negado pelo conceito básico de
anatta/anatman. Mas, o que constitui essa negação? O que realmente
é negado? Parece óbvio, mas não é.
O eu psicológico
Para elucidar um
pouco, apresentamos a opinião do Prof. Joaquim Monteiro, um monge
budista brasileiro que é psicólogo e doutor em Budismo Chinês, em
seu livro “O Budismo Yogachara” (Editora UFPB, 2015).
Em um trecho em que
analisa a antiga escola budista chamada Yogachara, Monteiro esclarece
o conceito de “vazio do atman” e afirma que o Buda não negou o
eu psicológico:
“Quando nos
referimos ao vazio do atman estamos querendo indicar que o
objeto de sua negação é a concepção hinduísta de uma alma
eterna, não nascida e imperecível e não o conceito de ego conforme
compreendido pela psicologia moderna. O termo vazio do eu ou
vazio do ego conduz a uma compreensão do Budismo como negação
da autoconsciência, compreensão essa que leva em geral a uma visão
do Budismo como um primitivismo que conduziria a um estado infantil e
pré-egóico. Essa visão é claramente falsa: o que o Budismo nega é
a concepção metafísica do atman ou da alma e não a função
psicológica da autoconsciência.”
O assunto se torna
mais complexo quando jogamos isso contra os conceitos modernos da
psicologia e das neurociências sobre o que gera a autoconsciência,
mas fica claro que o Buda não se referia ao ego psicológico quando
falava do anatman ou anatta. Buda disse que o Incondicionado é
anatta, sendo essa uma das três características da existência (as
outras duas são anicca - “impermanência” - e dukkha -
“insatisfatoriedade”), conforme o artigo de Christopher Titmuss
que já postamos aqui (ver: https://stekelblogue.blogspot.com/2019/06/o-que-o-buda-nao-ensinou.html).
Ou seja, o que é incondicionado, não sujeito a causas e condições,
é anatta/anatman, pois não é uma alma imortal, mas uma não-alma,
que talvez seja a melhor tradução para anatman.
Etimologia e
definições
Do ponto de vista
etimológico, “atma(n)” vem do Sânscrito ātmán, “alma;
essência; vento; sopro (vital)”, do Proto-Indo-Europeu
*h₁eh₁tmṓ (*etmen),
“sopro” (uma raiz encontrada em Sânscrito e Alemão; também no
Inglês Antigo æðm, Holandês adem, Antigo Alto
Alemão atum “sopro”, Inglês Arcaico eþian,
Holandês ademen “respirar”). A ideia de “sopro” é
semelhante à que encontramos na palavra Hebraica “Ruach” para
definir o “espírito de Deus” no livro de Gênese.
O primeiro uso da
palavra Atman em textos indianos está registrado no Rig Veda (RV
X.97.11). Yaska, o antigo gramático indiano, comentando sobre este
verso Rigvédico, aceita os seguintes significados para Atman: o
princípio penetrante, o organismo no qual outros elementos estão
unidos e o princípio senciente último.
A ideia, então, tem
a ver com sopro, alma, espírito, essência profunda, mas não com o
eu/self psicológico, apesar de algumas traduções citarem as
palavras “eu” e “self”. É bom ressaltar que no Hinduísmo,
Budismo, Jainismo e Vedanta, atman se refere não ao self
psicológico, mas a um Self Real, um Self espiritual do ser que está
além da identificação com os fenômenos universais, a essência do
indivíduo, uma parte infinitesimal de Brahman. Um Self que sobrevive
ao eu psicológico, ao ego, ao ser dentro de um corpo. Do ponto de
vista da psicologia moderna, o Self se vai com o corpo. Quando se
concebe algo que sobrevive ou preexiste ao corpo, se usa termos como
Espírito (Ocidente) ou mesmo Mente (Oriente), incluindo, neste
último caso, o Budismo. Mas, mesmo um termo como Mente tem muitos
sentidos no Budismo e nas tradições indianas em geral. Mas, no
Ocidente só possuímos o termo “mente”. Os indianos dividem o
que nós chamamos de mente em diversas qualidades e características
diferentes, o que confunde o estudante ocidental, com certeza.
Self X Self Real
Quando o Budismo diz
que não há um Self transcendental ou uma Alma transcendental e diz
que o Self Real é uma ilusão, está querendo dizer que o Self Real,
o Atman do Hinduísmo, é que é ilusório, por não ser permanente e
desaparecer com a morte. Não está negando a existência do eu
psicológico que, como já dissemos, para a Psicologia está evidente
que só existe pelo espaço de uma vida. Qualquer coisa, a partir
desta visão, que preexista ou sobreviva à morte não é um eu
psicológico (relacionado à personalidade, que depende de mente e
corpo), não é um Self Real (uma alma imortal) e não é um espírito
imortal, uma unidade imorredoura e imutável do Ser. Contudo, não
está incluída nesta negação a noção de “consciência”. No
Budismo Mahayana é muito importante a noção de um continuum mental
de consciência que, todavia, não é um eu, um self, uma alma, um
espírito ou um atma. Não é definido por termos fixos, porque não
é algo fixo, permanente, uma personalidade eterna. É um conceito
difícil de entender, e não pretendemos, com este texto curto,
esgotar a polêmica.
Atman, no hinduísmo,
não é considerado o mesmo que o corpo, a mente ou a consciência,
mas é algo além que permeia tudo isso. Então, se Atman permeia a
mente e a consciência, realmente, é algo que o Buda queria negar.
Para ele, o corpo é perecível, a mente depende do corpo para que um
indivíduo tenha autorreferência (o eu psicológico) e a consciência
pode ser de duas naturezas: a consciência corporal que origina a
noção de eu psicológico e a consciência além do corporal, não
nascida e sempre existente, que não constitui um eu psicológico
autorreferente. Isso é, como se vê, diferente do conceito de Atman,
pois o aspecto mental que é esta segunda consciência é um
continuum mental, uma continuidade dos processos mentais, mas não da
personalidade ou de qualquer unidade autorreferencial. O eu
psicológico só é ilusório porque ele não sobrevive ao tempo de
uma vida, não porque não exista de modo algum. O Buda negou a
inerência, a permanência e a existência sem causas e condições
de qualquer coisa que seja no mundo.
Todas as escolas
ortodoxas do hinduísmo sustentam a premissa de que o Atman existe
como verdade evidente, mas o budismo sustenta que o Atman não existe
como evidente, pois no âmago dos seres não há nada que seja
eterno, essencial e absoluto. Segundo o Buda, para atingir o Nirvana,
é condição sine qua non chegar a essa conclusão além da
conceitualização, ou seja, por percepção sábia (prajña).
O conceito budista
mahayana de Tathagatagarbha (natureza de Buda ou,
literalmente, “útero do Tathagata”), que apareceu em Sutras do
1º milênio da era comum, sugere ideias semelhantes a um self. Ainda
que isso seja um pomo da discórdia no Budismo desde então, estudos
recentes, como os de Wayman e Wayman, afirmam que esses conceitos de
“quase-self”, que também aparecem no Vajrayana, não são nem
ego, nem ser senciente, nem alma, nem personalidade. Há quem postule
que os Sutras Tathagatagarbha foram escritos para promover o budismo
em meio a não-budistas (ver:
https://books.google.com.br/books?id=JqLa4xWot-YC&pg=PA96&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false).
Para Johannes
Bronkhorst, professor de indologia especializado em budismo e
hinduísmo primitivos, embora possa haver dúvida quanto à
existência ou não de um eu/self na literatura budista primitiva,
fica claro, a partir dela, que buscar o autoconhecimento (o
conhecimento de si, do self/eu) não é o caminho budista para a
libertação, mas se afastar do autoconhecimento é. Isso faz
sentido, porque não há motivo, do ponto de vista budista, para se
autoconhecer um self ilusório e ficar fixado nele. O mero
conhecimento do self ou eu psicológico não pode conduzir ao
Despertar ou Nirvana, mas, de uma perspectiva da Iluminação, a
transcendência desta busca sim, ir além do eu psicológico.
O importante é
dizer que o eu psicológico existe dentro de seu escopo limitado,
ilusório, impermanente e pelo espaço de uma vida. Qualquer terapia
para resolver problemas ligados ao eu psicológico vai contemplar
soluções temporárias também, pelo tempo desta vida. Mas, a busca
do que está além do eu psicológico, ainda que não negue este eu
como algo relativamente existente (mas, não inerentemente, como
disse o Buda), não se fixa nele e o transcende, procurando acessar o
continuum de consciência que não é uma personalidade, nem um
agregado neuronal que tem como epifenômeno a consciência de
autorreferência, nem um atma, alma ou espírito imortal com uma
espécie de “personalidade cósmica”. O que o praticante busca em
sua meditação, seja gradual ou não-dual, é acessar o que não é
nada disso, a Mente de onde tudo isso se gera, de alguma forma.
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