terça-feira, 11 de junho de 2019

Uma introdução à Cabala Não-dualista

Por Paulo Stekel


Cabala Tradicional

Uma Tradição é um conjunto de cultura, usos e costumes de uma determinada cultura, civilização, religião, etc.

Uma Tradição Espiritual é um conjunto de ensinamentos relativos a determinada crença, fé ou religião.

Uma Tradição Mística é um conjunto de ensinamentos espirituais de uso mais reservado, restrito, destinado a um círculo mais seleto.

Neste último sentido, Cabala é uma Tradição Mística, enquanto o Judaísmo, onde ela foi expressa, é uma Tradição Espiritual. A religião judaica compreende o aspecto externo, “exotérico”, desta espiritualidade. A Cabala compreende o aspecto interno, “esotérico”, da mesma espiritualidade. O aspecto externo se baseia no dogma e na crença, onde nada pode ser mudado, apenas aceito. O aspecto interno se baseia na experiência mística, não-dual, a experiência do próprio praticante no silêncio de seu coração, experiência esta que pode envolver recitação, oração e meditação. Vemos isso em várias tradições. A Cabala não é diferente.

A palavra Cabala, originalmente em Hebraico, QBLH – se translitera Qaballah e se lê “cabalá”, provém do verbo hebraico Qibbel ("aceitar, receber, tomar algo") e, neste sentido, significa Tradição. Assim, Cabala era, no início, uma tradição espiritual dos hebreus que vinha desde Moisés, sendo oral, passada de pai para filho (e de mestre para discípulo) ao longo dos séculos. Esta é, pelo menos, a versão dada pelos antigos cabalistas. Antes de ser chamado de Cabala, o estudo dos Mistérios da Torah (A Lei judaica consignada nos cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco), foi conhecido pelo nome de Mistorin (“mistérios”, uma corruptela do grego mysterion). Mas, na verdade, a origem da Cabala está na Idade Média, sendo o cúmulo do desenvolvimento filosófico-religioso do pensamento rabínico e da contemplação.

Em princípio, a Cabala (esta é a forma da palavra em português) versa sobre os cálculos místicos com os nomes e as letras (Cabala Simbólica), as Hierarquias de Anjos e Demônios e a transmigração das almas (Cabala Dogmática), as Sefirot, a Árvore da Vida e a Divindade (Cabala Metafísica). O ensinamento tradicional da Cabala é ao mesmo tempo Histórico, Moral e Místico.

Outra forma de definir do que trata a Tradição Mística da Cabala é através do Trinômio Deus – Homem – Natureza.

Deus (Mente Cósmica, Absoluto, Áyin, Divindade)
Δ
Natureza (Criação)                         Homem (Consciência)

A relação entre Deus e a Natureza trata da Criação do Universo (Ma'assê Bereshith – a Obra da Criação); a relação entre Deus e o Homem trata da Redenção (Ma'assê Merkavah - a Obra do Carro Celeste, o retorno ou ascensão ao Pai); a relação entre a Natureza e o Homem é a vida no mundo, o qual pode ser desfrutado, conhecido, controlado, modificado e adaptado pelo Homem, se tiver conhecimento de como fazê-lo. É nesta terceira relação que está a Magia Cabalística (Teurgia e Goetia), também chamada Ars Magna (A Grande Obra) e o uso da Numerologia para invocar aspectos divinos em nossa vida, para torná-la mais harmônica.

A Cabala não é uma fonte exclusivamente judaica. Historicamente, há provas suficientes de, pelo menos, cinco fontes de seu conhecimento: uma fonte egípcia (via Moisés), uma fonte Hebréia (via Patriarcas e Reis no período dos Reinos de Israel e Judá), uma fonte Babilônia (via Esdras durante o Cativeiro), uma fonte grega (influência da Filosofia em geral e do Pitagorismo em particular) e, quiçá, uma fonte árabe (especialmente a alquimia árabe). Assim, entendemos que a Cabala tem um quê de universalidade que casa bem com o gosto moderno pela integração dos conhecimentos. O pano de fundo da Cabala é judaico, mas seu conhecimento é universal!


Não-dualismo

Não-dualismo ou Não-dualidade, é o termo usado para traduzir o termo sânscrito “advaita” (de “advaya”, não-dual). Este termo e o conceito são utilizados para definir um certo número de vertentes de pensamento religioso, filosófico e espiritual, sendo encontrado em várias tradições asiáticas e na espiritualidade ocidental moderna, porém com uma gama de significados e usos.

A perspectiva não-dual (seja filosófica ou religiosa) declara que não há nenhuma distinção fundamental entre mente e matéria, sendo o mundo fenomênico uma ilusão, uma aparência fugaz, de curta duração. Não-dualismo é uma unidade, em vez de dualidade ou separação ou multiplicidade. Para muitas tradições da Ásia, a verdadeira condição ou a verdadeira natureza da realidade é não-dual, e aparentes dicotomias são meras conveniências imprecisas.

O não-dualismo é contrário ao conceito de dualismo ou dualidade, que é constituído pela manifestação de coisas na existência de dois princípios supremos, incriados, independentes, irredutíveis e antagônicos.

De acordo com David Loy (Nonduality: A Study in Comparative Philosophy, New Haven, Conn: Yale University Press, 1988), quando você percebe que a natureza de sua mente e o universo são não-duais, está iluminado. Ainda esclarece:

(…) [A semente de não-dualidade] nunca encontrou solo fértil [no Ocidente] (...). Na tradição oriental (...) encontramos uma situação diferente. Lá, as sementes da não-dualidade não só brotou, mas amadureceu em uma variedade (alguns poderiam dizer uma selva) de impressionantes espécies filosóficas. Mas, não significa que todos estes sistemas [orientais] afirmem a não-dualidade de sujeito e objeto, mas é significativo que três o façam – [Advaita] Vedanta, Budismo e Taoismo.”

Cabala Não-Dualista

De acordo com o Rabino Jay Michaelson, a não-dualidade começou a surgir nos textos medievais da Tradição Judaica que culminaram no Hassidismo. Para ele, o Judaísmo tem em seu interior uma tradição mística muito antiga que é profundamente não-dualista. A noção de "Ein Sof" ou "Nada", a infinita vaziez, é considerada a base de tudo o que existe. Nesta visão, Deus é considerado acima de qualquer proposição ou preconcepção. O mundo físico é visto como emanando do "Nada" como as muitas faces ("partsufim") de Deus que são todas uma parte do "Nada" sagrado.

Uma das mais importantes contribuições da Cabala, e que se tornou uma noção central no pensamento Hassídico, foi a interpretação altamente inovadora da ideia monoteísta. A crença em "Deus Uno" não é uma mera rejeição de outras deidades ou intermediários, mas uma negação de qualquer existência fora de Deus.

A "iluminação" é muitas vezes considerada como um conceito puramente "Oriental", estranho às religiões monoteístas ocidentais. Isto porque o hinduísmo e o budismo, em geral, estão mais focados no despertar individual e na transformação que resulta deste despertar, do que as religiões abraâmicas. Mas, se analisarmos a questão sob o viés não-dualista, veremos que o Despertar ou “iluminação” pode assumir várias formas, mesmo dentro do teísmo.

Se podemos falar de um Despertar ou Iluminação judaica ou cabalística, temos que nos remeter à previsão de Daniel em seu livro profético (Daniel 12:3), que diz: “o iluminado (maskilim) brilhará como o brilho (zohar) do céu". O Sefer Ha-Zohar (ou simplesmente Zohar), a principal obra da Cabala, que tomou o seu nome a partir deste versículo, explica que os iluminados são os que refletem o mais profundo "segredo da sabedoria" (Zohar 2:2a). Qual é esse segredo? A despeito das variações na resposta, o segredo mais profundo é de que tudo e todos somos como as letras de uma única palavra divina, chamada Ein-Sof ou Ain-Soph (a rigor, se lê ên-sôf, em Hebraico), significando “sem fim”, “infinito”. Abaixo disto está a Luz Divina (En-Sof-Or) e, acima, está apenas Ain, o “Nada”. Aqui, Ain como “Nada” e, ao mesmo tempo, o aspecto mais profundo de Deus, nos remete a uma mescla do Budismo Mahayana (que afirma que tudo é Vazio, um Nada, porque nada possui inerência ou vida independente, sendo impermanente) com o Advaita Vedanta indiano (que afirma que a realidade de tudo é Brahman, o Absoluto, e que nada existe fora dele).

Essa visão não-dual não significa que não existimos de modo algum, mas que não existimos do modo como pensamos que existimos. Em termos relativos, as coisas são, sim, exatamente como se parecem. Mas, em uma perspectiva última, tudo é um ou, na linguagem teísta e cabalista, tudo é Deus. Mas, não é o Deus do teísmo popular, o Deus carcomido pelo tempo sentado num trono a julgar os reles mortais. É um “Deus além de Deus”, o Ein Sof, Ser e Nada.

O Zohar ( Zohar III: 225a, Raya Mehemna, Parshat Pinchas) afirma que Deus enche todos os mundos e rodeia todos os mundos (…) Ele liga e une um tipo a outro, superior com inferior, e os quatro elementos não se agrupam exceto através do Santo Abençoado, como ele está dentro deles”. Na verdade, nesta perspectiva, não há lugar sem Deus.

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