quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Visões da Homossexualidade: da biologia à neo-espiritualidade

Por Paulo Stekel


Introdução

Alguns dias atrás vi uma figura pelas redes sociais (ver figura acima) comentando sobre o aspecto natural da homossexualidade. A achei muito interessante e resolvi tecer alguns comentários sobre o raciocínio desenvolvido na mesma:

Tenho pesquisado isso há muitos anos, tanto do ponto de vista espiritual quanto biológico, e concluí que, realmente, a natureza é sábia ou, numa linguagem mais moderna, se adapta às condições. Há muitas teorias sobre o tema, mas me parece plausível que a sexualidade das espécies, não apenas a humana, é mutável de acordo com as condições do ambiente e, no caso da humana, também de acordo com as condições sociais. Assim, como no caso de bebês pinguins abandonados por seus pais de sexos opostos tendem a ser adotados por casais de pinguins do mesmo sexo, vejo que na espécie humana talvez tenhamos uma ‘missão’ a cumprir. Espiritualmente falando, talvez seja esta uma oportunidade de demonstrar amor incondicional por crianças adotadas independente de conexões biológicas. Isto estaria ligado à transcendência do ser mais do que à sexualidade em si.

Contrariamente à opinião preconceituosa de uma parte dos líderes do espiritismo, que dizem ser a homossexualidade algum tipo de provação ou o fato de se ter reencarnado muitas vezes no mesmo sexo, resultando em dificuldade de adaptação ao outro sexo, penso que é uma possibilidade natural tanto quanto qualquer outra (as outras duas são a heterossexualidade e a bissexualidade, esta última comum no reino anfíbio e entre peixes, que mudam não só a orientação quanto o gênero, em situações críticas). Mas, o preconceito de mentes que não admitem o diferente, que determinam a norma, respaldados por crenças religiosas medievais, é o único entrave ao nosso pleno existir em sociedade. Não voltaremos aos armários, pois não cometemos crime algum. Aliás, os corruptos deste país, leigos ou religiosos, é que devem se esconder pela vergonha que causam a esta nação!” (texto do meu feed no Facebook)

Como várias pessoas teceram comentários sobre este texto nas redes sociais, resolvi desenvolver mais meu pensamento neste artigo. Para embasá-lo, farei uma revisão dos trabalhos que têm sido publicados sobre o tema nos mais variados âmbitos, como o biológico, o sociológico, o psicológico e o espiritual. O âmbito antropológico está esparso entre o biológico e o sociológico.

Aspectos biológicos da homossexualidade

Em 2016 a revista Superinteressante (https://super.abril.com.br/ciencia/por-que-os-gays-sao-gays/) publicou um artigo sobre as bases biológicas da homossexualidade. Uma das afirmações do artigo é a de que “a formação da sexualidade acontece antes do nascimento – em parte pelos genes, mas também por fatores que atuam no desenvolvimento do feto”. Como o próprio artigo depois alerta, isso não é um fato confirmado, apesar dos indícios.

Ainda no mesmo artigo, confrontando aqueles que dizem que não há o que explicar sobre a homossexualidade e de que se deve apenas aceitá-la, e pronto: “‘Os homossexuais são muitas vezes acusados de exibir um comportamento não natural. A única maneira de refutar essa acusação é pesquisar as causas das diferentes orientações sexuais’, diz a bióloga transexual Joan Roughgard, professora da Universidade Stanford e autora do livro Evolution’s Rainbow (‘Arco-Íris da Evolução’, sem tradução em português), em que analisa cerca de 300 casos de comportamento homossexual entre animais.”

Em 1991, o neurocientista anglo-americano Simon LeVay, gay declarado, anunciou ter encontrado diferenças em cérebros de homens gays e héteros. Ele examinou o hipotálamo, zona-chave da sexualidade no cérebro, e descobriu que a região chamada INAH-3 era entre 2 e 3 vezes menor nos gays. Contudo, a pesquisa foi contestada porque os pesquisados haviam morrido em decorrência da AIDS, o que pode ter interferido no tamanho da região pesquisada.

Em 1993, Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer (EUA), percebeu que dentro das famílias havia muito mais gays do lado materno (mulheres têm dois cromossomos X, enquanto os homens têm um X e um Y). Usando um escâner, Hamer viu que uma região do cromossomo X, a Xq28, era idêntica em muitos irmãos gays. O que ele descobriu não foi um único gene gay, mas uma tira de DNA transmitida por inteiro. A pesquisa foi um alento para os gays, pois era a esperança de que seu comportamento tinha uma prova científica de não ser “antinatural”.

O caso já conhecido de gêmeos com orientação sexual diferente mostra que, sozinha, a genética não explica a homossexualidade. Mas isso não significa que a criação e o ambiente tenham todas as respostas.

Michael Bailey, da Universidade Northwestern, e Richard Pillard, da Universidade de Boston, ambos dos EUA, analisaram gêmeos e viram que, entre bivitelinos, se um é gay, o outro tem 22% de possibilidade de também ser. Para os univitelinos, a probabilidade sobe para 52%.

A taxa de homossexualidade entre a população, que antes era considerada em torno dos 10%, de acordo com o famoso e polêmico Relatório Kinsey, dos anos 40, agora cai para a taxa de 2% a 5% segundo pesquisas mais recentes. Bailey e Pillard, portanto, de certa forma, provam a existência de um componente genético para a homossexualidade, mas que também os genes não dão conta de tudo. “Os estudos com gêmeos feitos até agora nos permitem uma estimativa de que até 40% da orientação sexual venha dos genes”, diz Alan Sanders, da Universidade Northwestern, EUA.

Eu mesmo tenho testado uma teoria pessoal, que normalmente se confirma, a ponto de eu conseguir acertar até quem é: numa família com até 2 filhos, um PODE ser gay; com 3 filhos, um COM CERTEZA é (mesmo que não seja assumido); com 4 filhos, um É e outro pode ser; com 5 a 8 filhos, COM CERTEZA dois são gays. Já fui padrasto de 4 crianças e acertei em cheio com 8 anos de antecedência qual era o filho gay – sem que ele nunca soubesse desta minha avaliação (ele teve uma relação gay por volta dos 15 anos). Neste minha teoria pessoal, a taxa de homossexualidade sobre para 25%. Claro que ela é baseada na minha observação nestes meus quase 50 anos de vida, e tenho uma memória estatística, mas o fato é que o percentual varia muito de pesquisa para pesquisa, por mais científica que seja. Talvez a divergência maior se deva ao fato de desconsiderarmos a relação da homossexualidade com a bissexualidade no processo. Talvez pudéssemos considerar como um padrão inicial aceitável a cifra de 2 a 10% de homossexuais sem propensão à bissexualidade e de até 25% os bissexuais em variados graus. Neste caso, um quarto da humanidade teria propensão a experiências homossexuais frequentes ou esporádicas. Isso sem contar as experiências dos adolescentes, não envolvendo ato sexual completo, o que pode chegar a 50%, conforme pesquisas bem antigas.

Mas, o que isso quer dizer, do ponto de vista biológico? Uma pessoa comentou nas redes sociais quando publiquei os dois parágrafos da Introdução: Acho que a natureza é sábia, pois diante de tantas crianças abandonadas por pais irresponsáveis, casais do mesmo sexo adotam as mesmas, educando-as com valores atuais e com muito mais amor que muitos pessoas ou casais heterossexuais - também, é um controle de natalidade.” (V.M.A.)

Controle. É uma possibilidade, mas também o fato de que indivíduos e casais homossexuais são mais voltados às suas famílias do que os heterossexuais. Existe mesmo um clichê do gay que cuida dos pais (especialmente a mãe) com muito mais atenção que seus irmãos heterossexuais, que normalmente dão de ombros. Mas, considerando que pais já idosos não se reproduzem mais, qual seria o motivo da natureza favorecer filhos gays que os cuidem na velhice? Um fator possível é a conexão que os mais velhos mantém com os mais novos, visando a sobrevivência da espécie, algo de que a própria antropologia já falou bastante ao pesquisar o conceito de clã.

Este aspecto de um “controle de natalidade” deve ainda ser interpretado sob o ponto de vista biológico neodarwinista. A natureza tende ao equilíbrio, ao qual se chama de homeostase. O neurocientista português António Damásio prefere usar o termo homeodinâmica, pois entende que o equilíbrio natural não é uma espécie de “estasis”, ou seja, uma estática, mas uma condição variável que se mantém dentro de certos parâmetros viáveis para a manutenção e desenvolvimento da vida. Homeodinâmica faz mais sentido, portanto, que o termo homeostase, portanto.

Algumas teorias biológicas mais estranhas não encontraram nenhuma base firme, como a dos hormônios pré-natais, a de que os irmãos mais velhos interferem na sexualidade dos mais novos (o efeito “big brother”), a de que a mãe trata o caçula de vários filhos homens como a menina que não teve e a preconceituosa ideia de que o abuso sexual na infância causa homossexualidade. Em meus mais de 30 anos de atendimentos com aconselhamento espiritual atendi algumas dezenas de homens que afirmaram ter sofrido abuso sexual na infância e, a despeito do trauma, um percentual mínimo se “tornou” homossexual na fase adulta. Eu mesmo, sou o filho mais velho de quatro homens, nunca sofri abuso e o caçula não é homossexual.

Podemos concluir de modo prévio que, assim como tudo o mais que somos como indivíduos, é influenciado, mas não totalmente determinado pela biologia, a homossexualidade também deve ser influenciada, mas não totalmente determinada por fatores biológicos. Na verdade, a pesquisa deve ser realizada pelo mais óbvio: o que leva uma pessoa a ser heterossexual? Não, não é uma pergunta estranha ou que prescinda de resposta. Não é assim porque é assim. Isso não é científico. Responder a esta questão permitirá responder às dúvidas sobre a homossexualidade e a bissexualidade.

Aspectos sociológicos da homossexualidade

A recusa dos gays atuais de serem considerados como desviantes “outsiders” (Becker) ou fora da norma social tem sua razão de ser. Tem motivos biológicos, como já analisamos, mas também motivações sociais e antropológicas.

O primeiro registro de um casal homossexual na história é geralmente considerado o de Khnumhotep e Niankhkhnum, um casal egípcio do sexo masculino, que viveu por volta de 2400 a.C. Foram eternizados em um momento íntimo, beijando-se (ver figura abaixo).

(O casal gay egípcio Khnumhotep e Niankhkhnum, em um beijo eternizado há mais de 4400 anos)

Em muitas sociedades primitivas e outras ainda existentes, as relações entre pessoas do mesmo sexo não são vistas como algo ruim. São toleradas em algumas tribos africanas antes do meninos se casarem. Os antropólogos Stephen Murray e Will Roscoe relataram que mulheres do Lesoto envolviam-se em relações de “longo prazo e eróticas” chamadas motsoalle. Em tribos de nativos americanos, nos EUA e Canadá, pessoas homossexuais (orientação sexual) e mesmo transgêneros (orientação de gênero) são vistos com respeito e até como uma forma elevada de espiritualidade (a crença nos “dois-espíritos”, onde os homossexuais eram transformados em xamãs). Pierre Clastres pesquisou a homossexualidade aceita pelos índios Guayaki, no Paraguai. A homofobia é, em grande medida, moderna, abraâmica, masculina e amiga do fascismo e autoritarismo, pois a liberdade de ser quem se é fere a vontade de domínio social dos ditadores de sempre, sejam capitalistas ou comunistas.

A maior parte dos gays demora para fazer o “outing” (o “sair do armário”, assumir-se) porque tem medo da reação social, começando pela da família, dos irmãos de religião, dos colegas de trabalho e chegando à reação dos amigos, incluindo os de infância. Eu mesmo, só me assumi para mim mesmo aos 20 anos (o “aceitar a si mesmo”) e, para todos, aos 25 anos (o “ser aceito pelos outros”). Atualmente, vejo os jovens se assumindo aos 13 ou 14 anos, e para os demais, a partir dos 18 anos. Isso se deve à informação sobre a homossexualidade disponível por vários meios impressos e digitais, que permitem que estas pessoas encontrem respostas para seus sentimentos conflitantes muito mais cedo, evitando anos de sofrimento desnecessário. Escrevo artigos desta natureza exatamente na intenção de que possam ajudar estes jovens a entenderem que têm o mesmo direito dos demais a um lugar de felicidade neste mundo.

Do ponto de vista sociológico, as sanções impostas a quem assume a própria homossexualidade são de diversos tipos: sanções informais, violência física em vários graus (homofobia), violências morais, tais como olhares desaprovadores, observações negativas, chacotas ou injurias. A pessoa deixa de participar de eventos familiares, não é convidada para casamentos e aniversários, não pode levar seus companheiros ou namorados, tem que se valer de relacionamentos de fachada, apresentar companheiros como sendo “amigos”, evitar qualquer demonstração de carinho socialmente permitido para os heterossexuais e ainda sofrer a acusação hipócrita de ser uma “máquina de sexo”, como se os maridos das mulheres heterossexuais fossem menos predadores sexuais quando as traem a torto e a direito, como todos sabemos, mas raramente falamos. Sim, os homens (gays ou não gays) traem muito mais que as mulheres!

Numa análise Foucaultiana da sexualidade, temos que entender a equação poder-sexo através de duas chaves conceituais relacionadas: o dispositivo da sexualidade (conjunto de práticas, instituições e conhecimentos que desde o Séc. 18 fizeram da sexualidade um domínio coerente e uma dimensão absolutamente fundamental do indivíduo) e a scientia sexualis (conjunto de regras que disciplinavam os saberes sobre sexo e prazer, as quais levavam em conta uma biologia da reprodução humana ao lado de uma medicina do sexo). Foucault afirmava que a sociedade se viu obrigada a comentar mais objetivamente sobre o sexo para poder estabelecer um controle sobre o mesmo.

Aqui, é impossível não relacionar o dispositivo ao capitalismo. O dispositivo é algo estabelecido pelo poder como forma de controle e coerção, que pretende regular a relação com prazer. Concomitantemente ao advento deste, o advento do capitalismo (séculos XVI até o XIX) forçou o sexo a se confessar e a se manifestar por meio de várias instituições: a família, a Igreja, o Estado, na medicina, no Direito, na sociologia, na psicologia e psiquiatria. Tanto que o termo homossexualismo foi criado em 1869 pelo escritor húngaro Károly Mária Kertbeny, e a partir de então, a “visibilidade” que isso deu às pessoas que se orientam para as do mesmo sexo foi completamente negativa, por sugerir que se tratava de uma doença mental.

Mesmo quando analisamos o preconceito contra a homossexualidade no mundo comunista, o fantasma do capitalismo ressurge. Em geral, nos países comunistas, a homossexualidade era (e ainda é) considerada um comportamento burguês e capitalista. Ou seja, enquanto para as sociedades capitalistas, a homossexualidade é considerada um pecado contra a natureza e deve ser reprimida, para as sociedades comunistas, é considerada uma licensiosidade burguesa fomentada pelo capitalismo. Ambas as noções são totalmente equivocadas. O que ambas as sociedades têm em comum é o preconceito e o desejo de regulação do prazer, normatizando-o na esfera da heterossexualidade reprodutiva.

Quando a homossexualidade é vista de forma reducionista, preconceituosa, acaba-se relacionando-a com comportamentos também existentes entre os heterossexuais e não exclusivos da homossexualidade, como a pederastia, a prostituição, o estupro e o assédio de todos os tipos. Ser gay não é sofrer de uma patologia somática, mas, muitas vezes, padecer de uma carga traumática tão forte quanto a de sobreviventes de guerra, isso devido ao preconceito, à não aceitação social, à privação de direitos e à violência homofóbica.

Podemos concluir de modo prévio que, assim como tudo o mais que somos como indivíduos, é influenciado, mas não totalmente determinado pela cultura, a homossexualidade também deve ser influenciada, mas não totalmente determinada por fatores culturais. Na verdade, a pesquisa deve ser realizada pelo mais óbvio: o que influencia a sexualidade de uma pessoa dependendo da cultura em que é criada?

Aspectos psicológicos da homossexualidade

A teoria de Sigmund Freud sobre a homossexualidade é totalmente ultrapassada e não encontra nenhuma sustentação científica. Freud dizia que mães superprotetoras e pais ausentes poderiam levar o filho a ser gay. Mas, em vez de encontrar a causa, Freud possivelmente enxergou a consequência: a superproteção da mãe não seria a origem da homossexualidade, mas um ato de defesa para um filho que é rejeitado pelo pai por se comportar, desde cedo, de maneira feminina.

A psicologia foi uma das primeiras disciplinas a estudar a orientação homossexual como um fenômeno discreto. Mas, ao mesmo tempo que foi uma das responsáveis por retirar do âmbito religioso o preconceito contra os gays, o reposicionou, junto com a Psiquiatria, no terreno médico, criando a noção de “homossexualismo” como sendo uma doença mental que poderia ser tratada, o que só pirou as coisas (cfe. opinião de Daniel Borrillo em “Homofobia – história e crítica de um preconceito”, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, um clássico contra o preconceito). Em 1886 o sexólogo Richard von Krafft-Ebing propôs que a homossexualidade era causada por uma "inversão congênita" ou uma "inversão adquirida". Graças a pensamentos como este e também de Freud, no final do século XIX e início do XX, os modelos patológicos da homossexualidade eram o padrão. Tanto que a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade do DSM em 1973, afirmando que “a homossexualidade em si não implica qualquer prejuízo no julgamento, estabilidade, confiabilidade ou capacidades gerais sociais e vocacionais.” Por sua vez, a Associação Americana de Psicologia adotou a mesma posição em 1975, exortando seu profissionais a “assumir a liderança em eliminar o estigma de doença mental que há muito tem sido associado com orientações homossexuais.”

Após um período trevoso promovido pela Psiquiatria e Psicologia, o atual consenso das ciências comportamentais e sociais e dos profissionais de saúde e saúde mental é que a homossexualidade, por si só, é uma variação normal e positiva da orientação sexual humana. Assim, a homossexualidade não é mais listada na CID (Classificação Internacional de Doenças).

No Brasil, um país sempre atrasado, somente em 1985 o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade como um desvio sexual e, somente em 1999, estabeleceu regras para a atuação dos psicólogos em relação à questões de orientação sexual, declarando que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade. Mas, os grupos neopentecostais fundamentalistas sempre andam às voltas tentando ressuscitar os centros de reabilitação da homossexualidade, a que chamam de centros de “cura gay”.

Atualmente, gays, lésbicas e bissexuais que procuram psicoterapia o fazem pelas mesmas razões dos heterossexuais: estresse (especialmente por conta do preconceito), dificuldades de relacionamento, dificuldade de adaptação às novas situações sociais ou de trabalho, etc.

Do ponto de vista da Psicobiologia, uma neurociência, parece que os seres humanos estimulam suas zonas erógenas porque estas provocam recompensas no cérebro, como o orgasmo, e são observadas no nível da consciência como sensações de prazer erótico e satisfação. Entre humanos, chimpanzés, orangotangos e golfinhos, o comportamento sexual não é mais exclusivo da reprodução, mas se tornou um comportamento erótico. A evolução teria sido a responsável pela diminuição da importância e influência dos hormônios e dos feromônios sobre o comportamento sexual.

A partir disto, se pode deduzir que, biologicamente a sexualidade humana seria um tanto bissexual, mas que a influência do contexto cultural e das experiências pessoais é maior no desenvolvimento da orientação sexual. A homossexualidade, a heterossexualidade e a bissexualidade são possibilidades “biologicamente normais” do desenvolvimento. “Fatores biológicos (como genes e hormônios) são certamente responsáveis por mais de 50% da orientação sexual”, diz Dean Hamer, o pai do “gene gay”, que aqui admite que há espaço para fatores psicológicos.

Podemos concluir de modo prévio que, assim como tudo o mais que somos como indivíduos, é influenciado, mas não totalmente determinado pela estrutura psíquica, a homossexualidade também deve ser influenciada, mas não totalmente determinada por fatores psicológicos. Na verdade, a pesquisa deve ser realizada pelo mais óbvio: o que influencia a sexualidade de uma pessoa dependendo da estrutura de sua psique?

Aspectos espirituais da homossexualidade

Após analisar fatores biológicos, sociológicos e psicológicos que certamente influenciam a sexualidade das pessoas, agora nos resta avaliar a questão sob o ponto de vista espiritual. Por “espiritual” entendemos aqui, não o conceito religioso formal, ligado às religiões instituídas, mas uma noção de tendência natural do ser humano à transcendência, ao conhecimento de si e da realidade que o cerca em bases emocionais e intuitivas, não científicas, nem dogmáticas. Mas, antes, vamos partir de algumas ideias inovadoras da biologia.

O desafio dos que apoiam uma base genética para a orientação sexual é explicar a permanência e adaptação dos genes gays ao longo da evolução. “Ser atraído pelo sexo oposto é útil porque leva o indivíduo a gerar filhos – por isso os genes da heterossexualidade dominam o planeta. Mas como os genes da homossexualidade também parecem existir, é provável que sirvam ou tenham servido a algum valor reprodutivo ao longo da evolução”, diz o cientista inglês Qazi Rahman. Que propósito seria este?

Para a bióloga Joan Roughgarden, a homossexualidade é um traço natural que mantém indivíduos unidos através do contato. “Estamos muito preocupados com o contato genital, mas tudo não passa de intimidade física”, diz. Ou seja, o contato entre as pessoas favorece a sobrevivência da espécie. E, como somos mamíferos, o contato nos é uma questão de vida ou morte.

Para o psicólogo Daryl Bem, da Universidade Cornell (EUA), criador da teoria “exótico se torna erótico”, os indivíduos são atraídos por outros de quem se sentiram diferentes na infância. Assim, meninos (ou meninas) que gostam de futebol conviverão com grupos semelhantes na vida adulta e se interessarão por grupos opostos (as meninas ou meninos que brincam de bonecas); meninos ou meninas que gostam de bonecas conviverão com grupos semelhantes na vida adulta e se interessarão por grupos opostos (os meninos ou meninas que gostam de futebol). “Isso ocorre porque nossa sociedade polariza as diferenças de gênero. Se não as polarizasse tanto, mais homens e mulheres escolheriam parceiros com base em outros atributos além do sexo biológico”, diz Daryl. Ainda que esta teoria pareça clichê, pode ter alguma lógica.

Independente da teoria biológica, parece que a pesquisa tende a demonstrar que não só a homossexualidade, lesbianismo e bissexualidade são perfeitamente naturais, como tais comportamentos encontram respaldo genético e também evolutivo em várias espécies de animais, especialmente mamíferos. Do ponto de vista evolutivo, poderia ajudar tanto no controle de natalidade, quanto na proteção aos mais desvalidos, aos órfãos e mesmo favorecer o contato entre os membros da espécie. E, espiritualmente, qual seria a função?

As teorias espirituais para a sexualidade fora do padrão exclusivamente heterossexual variam muito. Encontrei muitas noções até hoje. Algumas muito preconceituosas, outras mais abertas.

A espiritualidade abraâmica vê a questão com preconceito, ou como algo a ser tolerado, ou como uma alternativa ou teste de Deus, o que não faz o menor sentido.

A espiritualidade extremo-oriental é menos repressora, mas entre aqueles que acreditam em reencarnação e carma, a tendência é pensar que as pessoas gays estão pagando alguma coisa ou que não conseguem se adaptar ao corpo em um determinado gênero após muitas reencarnações em outro gênero. Esta opinião absurda, aliás, é muito comum no Espiritismo brasileiro.

A nova espiritualidade, ou também “neo-espiritualidade”, como a chamo, e que é baseada não somente em antigos ensinamentos de diversas fontes religiosas, mas também em conhecimentos da Ciência moderna, da Psicologia e das Neurociências, vê a sexualidade de modo fluido e sem preconceito. As pessoas são naturalmente bissexuais e os fatores que as predispõem a voltar-se a um gênero ou a outro são de várias naturezas, como já analisamos. O fato da recente divisão em heterossexualidade e homossexualidade ter causado uma nítida polarização da sexualidade humana, tem impedido que percebamos a fluidez da sexualidade em si. Não se trata de cancelar sexo biológico de ninguém, de impedir que alguém seja homem ou mulher (ou o que quiser), de impedir que alguém se vista de modo A ou B, mas de evitar que alguém seja impedido de vivenciar o seu ser psicológico e profundo por completo, pois esta completude inclui seu prazer sexual. A espiritualidade que extirpa o sexo é uma espiritualidade morta, porque normatizadora, repressora e recalcada.

Acredito que, do ponto de vista espiritual, estamos em evolução biológica (algo confirmado pelos neodarwinistas a cada dia mais), psicológica (nossa psique se amplia com o tempo) e espiritual (nossa visão da transcendência adquire cada vez mais conceitos novos, conforme ampliamos nosso conhecimento da Realidade). A evolução biológica é algo quase que exclusivo da espécie, pois não se observa de modo relevante num único indivíduo. A evolução psicológica tanto é influenciada pela biologia, que vem da espécie, quanto das vivências individuais (esta seria a opinião da Psicobiologia). Já, a evolução espiritual, se processa em duas frentes: há a evolução espiritual da espécie humana e a evolução espiritual do indivíduo humano. A evolução espiritual da espécie pode ser analisada através da visão sistêmica, que mostra as relações entre os constituintes de um grupo e como todos se retroalimentam. A evolução espiritual individual pode ser analisada por vários tipos de “teorias espirituais” ou, como prefiro chamar “teorias espirituais da mente”.

Minha teoria espiritual da mente preferida é uma mescla de teoria budista da mente e da noção de Panespiritismo, como definido pelo psicólogo Steve Taylor em seus livros, especialmente em “Spiritual Science: Why Science Needs Spirituality to Make Sense of the World”, publicado em 2018 e ainda sem tradução para o Português. O Panespiritismo se insere na neo-espiritualidade e possui um cárater mais científico que religioso, o que interessa mais em uma época em que se faz necessário derrubar antigos dogmas sem sentido que só conduzem a ostracismo, preconceito e repressão.

A partir desta visão, nossas experiências neste mundo devem nos conduzir espontaneamente à expressão da consciência primordial a qual todos já temos acesso, embora não a percebamos. Na verdade, temos pequenos vislumbres dela e, assim, lhes damos vários nomes diferentes, alguns se referindo a algo externo a nós (Deus, Absoluto, Áiyn [O Nada, da Cabala], Brahman, etc.), outros a algo mais interno ou permeante (Tao, Vazio, Rigpa, Consciência luminosa, etc.).

Como existem muitos mundos e planos de manifestação, os sexos e as divisões por gênero variam muito nestes lugares, de modo que quem está na antiga perspectiva polarizada macho-fêmea não consegue entender esta complexidade cósmica. A separação em dois sexos como forma de garantir a reprodução é, do ponto de vista universal, uma solução local e temporária da natureza. Em outros mundos a coisa pode ser totalmente diferente, incluindo aí a androginia, a partenogênese, a reprodução assexuada (como ocorre com as gramíneas) e outras formas de reprodução que nem imaginamos. Talvez a taxa de homossexuais em nossa espécie seja um regulador. Em momentos mais críticos, talvez diminua, em momentos mais tranquilos, pode aumentar. Ou, em momentos de pouca população, tenda a diminuir, e em momentos de superpopulação, como atualmente, tenda a aumentar. Contudo, devemos ter cuidado com este argumento, pois o que impede a reprodução não é a homossexualidade, mas a esterilidade. E, até onde sei, a maior parte dos gays e lésbicas não é estéril!

Num nível espiritual mais profundo, talvez a principal função daqueles indivíduos que tendem para uma sexualidade não exclusivamente heteronornativa seja a de fazer a humanidade evoluir para um próximo estágio, um no qual o sexo não é mais exclusivo para reprodução, em que não é mais visto como sujo ou como pecado, em que não é usado como forma de domínio ou para jogos de poder, e em que, finalmente, o direito de todos ao prazer é reconhecido. Os recalcados que sempre tentaram taxar o prazer (com dogmas, proibições, assassinatos ou, se pudessem, com taxas monetárias para o sexo de cada indivíduo) continuam de pé, mas precisam ser derrubados pela resistência. É preciso resistir ao recalque, ao desprazer, ao moralismo e à falta de amor ao próximo. O resto faz parte de uma antiga espiritualidade que já está em seus estertores.

Conclusão

Do ponto de vista clínico e biológico, a sexualidade compreende três dimensões básicas: biológica (corresponde ao impulso sexual determinado por processos fisiológicos e cerebrais - sistema límbico e hormonal), psicológica (corresponde aos desejos eróticos subjetivos ligados à vida afetiva e sexual) e cultural (corresponde aos padrões de desejos, comportamentos e fantasias sexuais, criadas e sancionadas historicamente por diversas sociedades).

As três dimensões, em geral, se manifestam de forma conjunta na vida sexual humana. Contudo, incluiria uma quarta dimensão, a espiritual (corresponde à busca pela transcendência através do contato mais íntimo com um outro ser, seja de modo permanente ou não, mas em que ambos os parceiros assimilam a experiência e ela contribui para seu crescimento como indivíduos completos). Exemplos de dimensão espiritual da sexualidade são o sexo tântrico (com uma moralidade mais aberta) e a noção de “casamento espiritual” (mais exclusivista e monogâmico).

No momento em que abdicarmos de controlar a vida sexual dos nossos irmãos de espécie, a sexualidade da espécie e a espécie como um todo evoluirá para o próximo passo em todas estas quatro dimensões. Quando isso acontecer, não necessitaremos mais das velhas definições, nem das sopas de letrinhas (LGBTQXYZ…), nem das cartilhas para saber como tratar vários tipos conceituais novos que surgem a cada dia (infelizmente, isso tudo ainda é necessário). Nos relacionaremos apenas com seres humanos e como seres humanos, e teremos prazer como seres humanos em contato – familiar, amistoso ou mesmo sexual – uns com os outros, sempre baseados na máxima do amor e do não causar sofrimento a ninguém.

Sobre o autor

(Paulo Stekel, palestrante e pesquisador de espiritualidade e sexualidade LGBT. Foto de Wolney Garcia)

Paulo Stekel é ativista LGBT e especialista na temática "espiritualidade gay" e "visão espiritual da sexualidade humana". É instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Audição e Visão Não-Duais

Por David Loy (Este artigo contém parte do Capítulo 2 do livro Nonduality, intitulado “Percepção Não-dual”, que está sendo traduzido por Paulo Stekel. Para uma maior compreensão, sugerimos a leitura dos trechos anteriores desta mesma obra já postados aqui: https://stekelblogue.blogspot.com/search/label/David%20Loy)

 
O Olho do Homem, um pequeno orbe estreito, fechado e escuro,
Mal vendo a Grande Luz, conversando com o chão:
O Ouvido, uma pequena concha, em pequenas voltas,
Impedindo as verdadeiras harmonias e compreendendo as grandes como muito pequenas...
(William Blake, Milton)

A não-dualidade da percepção é um princípio central de algumas importantes filosofias asiáticas, particularmente o budismo e (com algumas qualificações) o Advaita Vedanta. Precisamos elaborar o que essa afirmação pode significar, embora sem esperança de poder entender completamente esse assunto. Não podemos esperar entender claramente a percepção não-dual através de conceitos, se nossa percepção dualística usual é ilusória precisamente porque é conceitualizada.

Como a audição é o mais fácil dos sentidos de se “entender” de maneira não dualista, ela é examinada primeiro. Embora a audição não-dual seja de modo algum comum, a música é provavelmente o meio da maioria das experiências não-duais. O “silêncio” que a audição não dual revelará nos ajudará a entender melhor a diferença de perspectiva entre o budismo Mahāyana e o Advaita Vedanta, que são tão semelhantes e também diametralmente opostos. Nossa discussão sobre a visão não-dual usará os argumentos de Berkeley e Hume para nos ajudar a entender a crítica não-dualista do objeto visual como material, discreto e auto-existente. Em contrapartida, o “objeto de luz” não-dual é shunya, um evento auto-luminoso.

... música ouvida tão profundamente
Que não é ouvid
a, mas você é a música
Enquanto a música dura.

(T. S. Eliot, The Dry Salvages)

Uma declaraç
ão de Yasutani Hakuun, um mestre zen japonês contemporâneo, tratava especificamente da natureza da audição:

Existe uma frase que um famoso mestre zen escreveu na época em que se tornou iluminado, onde se lê: “Quando ouvi o sino do templo tocar, de repente não havia sino e nem eu, apenas som.” Em outras palavras, ele não estava ciente de uma distinção entre ele mesmo, a campainha, o som e o universo. Este é o estado que você precisa atingir.

Yasutani explica isso em outro dokusan com um aluno diferente.

Geralmente, quando você ouve uma campainha tocando, pensa consciente ou inconscientemente: “Estou ouvindo uma campainha.” Três coisas estão envolvidas: eu, uma campainha e a audição. Mas quando a mente está madura, ou seja, tão livre de pensamentos discursivos quanto uma folha de papel branco puro não é manchada por uma mancha, há apenas o som do sino tocando. Isso é
kensho [iluminação ou auto-realização].

Embora dificilmente se possa dizer que tal audição não dual seja comum, também não se limita aos adeptos das tradições asiáticas não dualistas. As linhas de T. S. Eliot citadas acima aludem claramente a uma experiência muito semelhante, e outros exemplos podem ser citados. O de Eliot é especialmente interessante porque se refere ao meio pelo qual a maioria das experiências não-duais provavelmente ocorre. A experiência descrita é inconfundivelmente incondicional. Não apenas não há ouvinte, mas não há música objetiva que é ouvida. Sem dúvida, registra uma experiência que Eliot teve, talvez muitas vezes, e que suspeito que muitas pessoas tenham tido ocasionalmente. A pessoa literalmente se torna “absorvida” na música; a sensação de um eu que está ouvindo desaparece e, ao mesmo tempo, a música deixa de ter algo "lá fora". Especialmente se o trabalho musical é familiar, normalmente (e dualisticamente) ouvimos cada nota ou acorde no contexto de toda a frase, lembrando-se das notas anteriores e antecipando as que estão por vir, como se a frase inteira estivesse presente simultaneamente diante de nós e nós a “lemos” do começo ao fim. Mas este é um exemplo de determinação mnêmica
savikalpa do som nirvikalpa. Isso muda na audição não-dual: não importa quão bem eu conheça o trabalho, deixo de antecipar o que está por vir e me torno aquela nota ou acorde que parece dançar “para cima e para baixo”. A música é o meio ideal para experiência não-dual, já que a ouvimos por prazer - ou seja, não ouvimos por outra razão ou intenção fora de si; não precisamos atribuir um significado aos sons, ou seja, fazê-los se referir a outra coisa. O som não precisa ser o som de alguma coisa, e sem essa construção de pensamento, temos “um som puro, um latido sem o cachorro” (Neruda). Para aqueles de inclinação religiosa, como Eliot, esses momentos de audição não-dual têm uma qualidade espiritual ou mística, mas suspeito que, para todos os que os tiveram, eles são estimados como um "aumento da consciência". Isso apesar do fato de que, no momento, não se pode dizer que estamos cientes de que estamos “curtindo” a música, pois quando me torno consciente de que estou gostando, a não dualidade da experiência já desapareceu na audição dualística e não pode ser trazida à tona de volta por qualquer esforço de vontade ou atenção. A experiência não-dual não pode ser repetida ou produzida pelo eu porque é algo que acontece com ele - o sentido do eu evapora-se temporariamente. Só é possível criar condições em que isso é mais provável de ocorrer (por exemplo, meditação), mas mesmo assim a expectativa de tal experiência interferirá em sua ocorrência, como sabem os meditadores experientes.

Há outro aspecto da audição não-oral, que é evidenciado claramente em uma carta pela recente filósofa francesa Simone Weil. Ela escreveu que costumava recitar o “
Pai Nosso” em grego todas as manhãs com atenção absoluta - em outras palavras, sua oração era um exercício de meditação.

Às vezes, as primeiras palavras arrancam meus pensamentos do meu corpo e o transportam para um lugar fora do espaço, onde não há perspectiva nem ponto de vista. A infinidade das extensões ordinárias da percepção é substituída por uma infinidade no segundo ou às vezes no terceiro grau. Ao mesmo tempo, preenchendo todas as partes dessa infinidade do infinito, há um silêncio, um silêncio que não é ausência de som, mas que é objeto de uma sensação positiva, mais positiva que a do som. Ruídos, se houver, só me alcançam depois de atravessar o silêncio.

Não é claro, a partir desse relato, se a experiência de Weil pode ser chamada de não-dual, mas contém um aspecto que pertence à audição não-dual: junto com o som, há também uma consciência daquilo que está além do som, que no contexto de som é silêncio, mas é um silêncio que é “ouvido” - “o som de nenhum som”, podemos dizer. (Vamos nos deparar com esse paradoxo curioso nos próximos capítulos também. Por exemplo, a ação não-dual é "a ação da não-ação" - chin
ês, wei-wui-wei - e o pensamento não-dual foi chamado "o pensamento do não-pensamento.") Isso é parte do que o Mahāyana quer dizer com “vazio” dos fenômenos: quando um som é experimentado como não se referindo a qualquer outra coisa (não ao som de um cão latindo), então, no lugar de (poderíamos dizer) uma consciência do referente construído pelo pensamento (cão), há uma consciência do silêncio. É assim que se é capaz de "parar o som daquele sino do templo distante" (um koan zen comum); quando alguém se torna aquele “bong” não-dual, também toma consciência daquele silêncio “além” - isto é, a “vacuidade” do som. (Este parágrafo se referiu três vezes a uma "consciência do silêncio", mas é claro que esse modo de expressão dualista não deve ser considerado como implicando que a experiência do silêncio seja dualista. Em vez disso, a posição não dualista é que o silêncio e a consciência do silêncio não são duas.)

Qual a relação entre o som não dual e esse silêncio que também é "ouvido"? A resposta a esta pergunta revela a diferença de perspectiva entre
o Advaita e o Mahāyana. No relato de Weil, os dois parecem distintos: ruídos devem atravessar esse silêncio para serem ouvidos. O Advaita, que distingue o Absoluto sem atributos de todos os fenômenos efêmeros, concordaria com o seguinte: neste caso, Brahman corresponde ao "silêncio ouvido" e o ruído serve como exemplo de fenômenos ilusórios aos quais nos apegamos, sobrepondo nomes-e-formas, com a consequência de que nunca “ouvimos o silêncio” que está sempre lá, imutável. A resposta do Mahāyana é um pouco, mas significativamente diferente. Aceita a análise acima com a ressalva de que o ruído não é apenas algo que oculta o silêncio, mas é uma expressão ou manifestação do silêncio. O Mahāyana não permite dualidade entre o silêncio e o som. De uma perspectiva, podemos dizer que o ruído (ou som) é como o silêncio se manifesta; de outra perspectiva, esse silêncio é o “lado de baixo” do som, revelando que o som não tem “essência própria” (svabhāva). O importante é que a mesma experiência não-dual possa se prestar tanto às interpretações - quanto a outras também.

Por muitos anos a neve cobriu a montanha,
Este ano a neve é a montanha.

(Dogen)

A visão, de longe o sentido mais importante, também é o mais difícil de entender de maneira não dualista. O fato de nossa compreensão da experiência ser dualística pode ser devida ao fato de que a visão tende a servir como o "caso padrão" para a percepção em geral e, portanto, como a medida para todos os outros sentidos - e também para o conhecimento, o que é por isso que a maioria das línguas é abundante em símiles visuais para saber. Estamos inclinados a distinguir o "som ouvido" do "som objetivo por lá", porque seguimos o modelo de visão, que parece exigir uma ontologia tripartite, distinguindo aquele que vê da aparência visual (que muda de acordo com a perspectiva) e também do objeto visual (que se entende persistir inalterado). A visão nos fornece uma “variedade co-temporal”, enquanto todos os outros sentidos constroem suas “comunidades de uma variedade” perceptivas a partir de uma sequência temporal de sensações. A predominância da visão, portanto, nos dá uma sensação de tempo diferente da de todos os outros sentidos: o presente não é apenas a passagem agora, mas também uma dimensão em que as coisas podem ser observadas para permanecerem as mesmas. “Somente a visão, portanto, fornece a base sensual na qual a mente pode conceber a ideia do eterno, aquilo que nunca muda e está sempre presente.” Isso torna possível a distinção filosófica traçada por Platão e pelo Advaita entre Ser e Tornar-se, o primeiro concebido como uma realidade imutável que persiste "por trás" do mundo enganoso da mudança.

O que realmente vemos? Essa pergunta nos leva à longa controvérsia filosófica sobre se é correto dizer que vemos objetos físicos ou se, de fato, existem apenas "dados sensoriais" (por exemplo, uma imagem visual elíptica) a partir da qual o objeto físico (um prato redondo) é construído mentalmente. É importante não resolver essa questão linguisticamente, apelando para o uso comum da linguagem, pois se é possível dizer adequadamente que a percepção nua do nirvikalpa é o que vemos, a questão é a relação entre consciência ocular e pensamento: se e de que maneira o mundo físico aparentemente objetivo é construído por sua interação com a prapanca.

Normalmente - isto é, em um contexto não filosófico - sabemos como responder prontamente: vemos canetas, xícaras, livros... objetos físicos, que têm peso, cor e assim por diante. Se nos aprofundarmos no significado do que é algo ser um objeto físico, encontraremos três características importantes para o não-dualista, porque ele quer negar todas elas:

Matéria. Um equivalente para o "físico" em "objeto físico" é "material". Que objetos são materiais significa que são compostos de matéria. Consideramos a matéria uma substância independente e auto-existente, que é real, se alguma coisa é real, mas nossa experiência sobre esse assunto está amplamente limitada a dois de seus aspectos: que ela é a fonte das imagens visuais e que é impermeável. Um objeto material é geralmente impermeável a outro. O copo é sólido ao meu toque; nem meu dedo nem a água podem penetrá-lo, e é por isso que funciona como um copo.

Auto-existência. Um objeto físico é auto-existente. Tem uma existência própria que não depende de outros objetos ou sujeitos (uma consciência que está ciente disso), embora possa ser afetada por eles. O copo condiciona outros objetos e é afetado por eles, mas ainda tem sua própria existência até ser destruído. Este conceito de svabhāva difere do da Mādhyamika, segundo a qual nada que tenha auto-existência jamais poderia ser mudado ou destruído, mas incorpora a noção de senso comum. A bolha pode ter uma vida muito curta, mas ainda existe até aparecer.

Persistência. Um corolário da característica anterior é que o objeto tende a persistir inalterado, a menos que seja afetado externamente por outra coisa. É fácil pensar em contra-exemplos para isso, mas eles não refutam o fato de que isso descreve nossa noção usual de como é um objeto: ele permanece o mesmo, a menos que interfira. O copo não muda, a menos que alguém o lasque ou o derrube no chão.

Quando as principais características do objeto visual são especificadas dessa maneira, os argumentos do não-dualista contra sua objetividade são previsíveis.

Contra a matéria. Seguindo o exemplo de Berkeley, o não dualista pode negar que alguma vez vejamos uma coisa como matéria ou objeto material; dada a natureza dos olhos, tudo o que podemos ver é luz. Como Berkeley sustentou em sua Nova Teoria da Visão, a noção de matéria é um construto de pensamento criado pela combinação das percepções devidas à visão (isto é, luz) e ao toque (impermeabilidade, etc.) Estritamente falando, nunca podemos ver a impermeabilidade de qualquer objeto. O fato de eu considerá-lo impermeável faz parte da determinação savikalpa da percepção luminosa do nirvikalpa. Em sua discussão sobre causalidade, Hume observou que Adam não poderia deduzir da fluidez e transparência da água de que isso o sufocaria. O não-dualista acrescentaria que Adam não poderia ter inferido da visão da água como ela se sentiria ao toque. É claro que esse relacionamento dos sentidos deve ocorrer muito cedo e agora é tão automatizado ou "inconsciente" que é normalmente impossível ver "objetos" como impermeáveis. No entanto, os não dualistas afirmam que essa “comunidade de apercepção” construída por pensamentos pode ser desfeita.

Essa dissolução deve incluir a eliminação do sujeito da percepção. Por sua afirmação de que não "nos distanciamos", Berkeley deduziu muito rapidamente que todos os objetos visuais estão realmente na mente, o que ele entendeu subjetivamente. Teria feito melhor argumentar, como Hume, que na própria experiência não há nada correspondente a um eu:

Eu nunca me pego a qualquer momento sem uma percepção e nunca consigo observar nada além da percepção... Todas as nossas percepções particulares são diferentes e distinguíveis… e podem existir separadamente e não precisam de nada para sustentar sua existência.

Ao combinar esses dois argumentos empiristas - Berkeley contra o objeto material percebido, Hume contra o sujeito que percebe - o significado da alegação de que a percepção é não-dual surge mais claramente.

Se existe apenas luz, sem objetos físicos para serem vistos e sem quem os vê, então a luz deve ser muito diferente do que normalmente consideramos ser e da maneira como os fenomenalistas costumam descrever os dados dos sentidos. Nossa compreensão usual da luz depende de uma ontologia dualística, que a relega ao papel de meio entre objeto e sujeito, refletindo mecanicamente uma sobre o olho no outro. Mas se não existe tal ontologia de objeto, a luz deve ser reavaliada para incorporar não apenas o objeto a que se acredita se referir, mas também a consciência que se acredita estar ciente disso. Isso significa que as "coisas" visuais são compostas não de matéria, mas de algo que poderíamos chamar de "Luz", e tais "Coisas-luz" são shunya porque não "remetem" a qualquer outra coisa (por exemplo, um substrato material) quando são experimentados como são em si mesmos, não periodicamente.

As muitas referências à luz nas tradições religiosas e "iluminativas" sugerem isso. Por exemplo, existe a "auto-luminosidade" (svayamprakasha) de Brahman:

O sol não brilha lá, nem a lua e as estrelas, nem esses relâmpagos - para não falar desse fogo. Ele brilha, em todo lugar brilha depois Dele. À Sua luz, tudo isso é iluminado.
[Brahman] é a luz das luzes; É aquilo que eles sabem que conhecem o Ser.
Eles [conhecedores de Brahman] veem em toda parte a Luz Suprema, que brilha em Brahman, que é onipresente como a luz do dia.


Uma visão semelhante da luminosidade é central na tradição tibetana:

Em todo o curso da experiência religiosa do homem tibetano, em todas as suas manifestações da religião Bon ao budismo, uma verdade fundamental comum é evidente: fotismo, a grande importância atribuída à luz, seja como princípio gerador, como símbolo da suprema realidade, ou como uma manifestação visível e perceptível dessa realidade; luz da qual tudo sai e que está presente dentro de nós.

... a conexão entre luz e mente, que é definida como “não dualidade do profundo e do luminoso”, caracteriza o estado da consciência transcendente... a conexão entre
sems [consciência não-dual transcendente] e luz e a identidade desses dois termos forma a base da soteriologia budista no Tibete.

Tal luminosidade da Mente é inconsistente com a maioria das interpretações
Páli do budismo, mas no Digha Nikaya há uma passagem curiosa em que o Buda diz que no nirvana “existe essa consciência sem uma marca distintiva, infinita e brilhante" em todos os lugares.” No Anguttara Nikya também o Buda descreve essa consciência como “luminosa” (pabhassara) e livre de impurezas adventícias. Muitas outras referências, tanto orientais quanto ocidentais, poderiam, é claro, ser citadas. Não faltam tais alusões, mas sim tantas que não as notamos mais e seu significado se perde. Tomamos a referência como metafórica, mas talvez seja literal. Talvez “a Grande Luz Branca” do Bon e do budismo tibetano não seja outra coisa senão o que a luz realmente é se fosse “vista” como é.

Contra a auto-existência. Se visualmente existe apenas Luz não dual e se tudo o que consideramos um objeto material é auto-luminoso, isso explica porque, de acordo com as tradições não dualistas, não existem seres sencientes: existe apenas senciência. O conceito de um ser senciente tem significado apenas em contraste com algo não-senciente. No lugar desse dualismo negado (e seu corolário negado, vida versus morte), "todos os fenômenos são como um sonho, uma ilusão, uma bolha e uma sombra, como orvalho e relâmpago", como conclui o Sutra de Diamante.

O Bodhisattva não salva realmente nenhum ser sens
iente, porque não há nenhum para salvar. Nesse ponto, Shankara, Lao Tzu e o místico cristão Eckhart concordam com o Mahayana.

Eckhart: “Todas as criaturas, na medida em que são criaturas, como 'são em si mesmas' (
quod sunt in et per se), nem sequer são ilusão, não são nada puro.” Shankara: “Toda essa multiplicidade de produção existente sob nome e forma, na medida em que é o próprio Ser, é verdadeira. Por si só (svatas tu - isto é, como auto-existente), é falso.” O capítulo 5 do Tao Tê Ching descreve o sábio como não humano, pois ele considera as pessoas como “cães de rua”; existe apenas o Tao, ele próprio vazio como um fole. Ainda há alguma diferença, mais acentuada entre o Vedānta e o Mahāyana. Para Shankara, as criaturas são verdadeiras na medida em que são o Ser (Brahman) - uma formulação que o Mahāyana não aceitaria, pois nega qualquer Ser. Ambas as explicações podem ser vistas como soluções opostas ao antigo problema de como algo (neste caso, a consciência) pode surgir do nada (matéria não inconsciente). De fato, suas respostas são as duas únicas soluções possíveis: ou nunca houve um "nada" - isto é, a "matéria" nunca esteve inconsciente porque sempre foi auto-luminosa (a solução advaítica)" – ou os seres sencientes ainda não são nada (o Shunyata do Mahāyana). Como veremos mais adiante, essas duas formulações não são realmente opostas, pois na análise final a escolha entre elas se torna linguística. “É realmente difícil distinguir entre ser puro e puro não-ser como uma categoria” (Dasgupta).

Contra a persistência. Geralmente, distinguimos entre a aparência visual de um objeto, que muda conforme nossa perspectiva ou a luz, e o objeto, que se acredita persistir inalterado. Se não há objeto físico, não há nada para "permanecer o mesmo" e a distinção que fazemos entre objetos e suas interações - entre coisas e eventos - desmorona. Pode-se objetar que a Luz não dual possa permanecer constante, mas o sentido da mesma é diferente nos dois casos. Faz parte do que entendemos por um objeto material que sua permanência não precisa ser explicada, pois é a natureza do que entendemos como importante fazer, a menos que seja perturbado de alguma maneira. Mas permanecer o mesmo de uma coisa-Luz deve ser uma persistência ativa ou duradoura; sua presença contínua é um ato, poderíamos dizer. Essa noção, algumas escolas budistas, tentaram expressar na afirmação de que a realidade é momentânea (kshanika) - uma formulação que, argumento mais tarde, é apenas meia verdade. Talvez Heidegger tenha tornado o mesmo argumento melhor quando disse que “as coisas são tudo”. A experiência não dualista não são objetos auto-existentes que interagem causalmente, mas eventos ou processos vazios. A xícara "mora" na minha mesa. O conceito de um objeto é uma maneira "branda" de explicar o fato de que certos eventos de Luz tendem a persistir e mudar em um padrão previsível. Essa estabilidade nos permite relacionar esses eventos causalmente e formar expectativas. Por si só, uma taquigrafia é obviamente muito útil, mas quando ela se torna tão automatizada que esquecemos que é taquigrafia, interpretamos mal o evento persistente (por exemplo, a auto-luminosidade de Brahman) como um objeto físico (matéria auto-existente).

De acordo com o não dualista, então, o que é visto? Em vez de um objeto material auto-existente, que persiste passivamente inalterado, existe
shunya, senciência auto-luminosa, que habita ativamente.


Sobre o autor

David Robert Loy é professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia, Existencialismo e Budismo" [Lack and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy, Existentialism, and Buddhism] e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada" [Nonduality: A Study in Comparative Philosophy], além de vários artigos. (www.davidloy.org)