sexta-feira, 28 de junho de 2019

O eu psicológico que o Buda não negou

Por Paulo Stekel


Atma X Anatma

Quando lemos ou ouvimos ensinamentos sobre Budismo, uma das primeiras coisas que causa estranheza a quem não está acostumado, incluindo psicólogos e psiquiatras, é a noção de anatma (Sânscrito) ou anatta (Páli). A tradução ocidental fornecida causa ainda mais confusão: “não-eu”.

O que não fica claro na definição é de qual “eu” se está falando. Se trata do “eu psicológico”? Mas, este conceito nem existia na época do Buda. O que existia era o conceito védico de “atma” ou “atman”, traduzido como “alma”, sopro vital e, especialmente, uma alma permanente, imortal.

No hinduísmo, atman é o mais elevado princípio humano, a Essência divina, profunda, sem forma e indivisível. O termo também é usado para expressar Brahman ou Paramatman. No Vedanta, na tese defendida por Shankara, o termo atman é usado para identificar a alma individual, o “verdadeiro eu”, traduzido como “Eu” para dar um caráter divino a esta alma, por ser idêntica ao Absoluto ou Brahman, e estar além da identificação com a realidade fenomenal da existência mundana.

No budismo, tal conceito de atman é explicitamente negado pelo conceito básico de anatta/anatman. Mas, o que constitui essa negação? O que realmente é negado? Parece óbvio, mas não é.

O eu psicológico

Para elucidar um pouco, apresentamos a opinião do Prof. Joaquim Monteiro, um monge budista brasileiro que é psicólogo e doutor em Budismo Chinês, em seu livro “O Budismo Yogachara” (Editora UFPB, 2015).

Em um trecho em que analisa a antiga escola budista chamada Yogachara, Monteiro esclarece o conceito de “vazio do atman” e afirma que o Buda não negou o eu psicológico:

Quando nos referimos ao vazio do atman estamos querendo indicar que o objeto de sua negação é a concepção hinduísta de uma alma eterna, não nascida e imperecível e não o conceito de ego conforme compreendido pela psicologia moderna. O termo vazio do eu ou vazio do ego conduz a uma compreensão do Budismo como negação da autoconsciência, compreensão essa que leva em geral a uma visão do Budismo como um primitivismo que conduziria a um estado infantil e pré-egóico. Essa visão é claramente falsa: o que o Budismo nega é a concepção metafísica do atman ou da alma e não a função psicológica da autoconsciência.”

O assunto se torna mais complexo quando jogamos isso contra os conceitos modernos da psicologia e das neurociências sobre o que gera a autoconsciência, mas fica claro que o Buda não se referia ao ego psicológico quando falava do anatman ou anatta. Buda disse que o Incondicionado é anatta, sendo essa uma das três características da existência (as outras duas são anicca - “impermanência” - e dukkha - “insatisfatoriedade”), conforme o artigo de Christopher Titmuss que já postamos aqui (ver: https://stekelblogue.blogspot.com/2019/06/o-que-o-buda-nao-ensinou.html). Ou seja, o que é incondicionado, não sujeito a causas e condições, é anatta/anatman, pois não é uma alma imortal, mas uma não-alma, que talvez seja a melhor tradução para anatman.

Etimologia e definições

Do ponto de vista etimológico, “atma(n)” vem do Sânscrito ātmán, “alma; essência; vento; sopro (vital)”, do Proto-Indo-Europeu *h₁eh₁tmṓ (*etmen), “sopro” (uma raiz encontrada em Sânscrito e Alemão; também no Inglês Antigo æðm, Holandês adem, Antigo Alto Alemão atum “sopro”, Inglês Arcaico eþian, Holandês ademen “respirar”). A ideia de “sopro” é semelhante à que encontramos na palavra Hebraica “Ruach” para definir o “espírito de Deus” no livro de Gênese.

O primeiro uso da palavra Atman em textos indianos está registrado no Rig Veda (RV X.97.11). Yaska, o antigo gramático indiano, comentando sobre este verso Rigvédico, aceita os seguintes significados para Atman: o princípio penetrante, o organismo no qual outros elementos estão unidos e o princípio senciente último.

A ideia, então, tem a ver com sopro, alma, espírito, essência profunda, mas não com o eu/self psicológico, apesar de algumas traduções citarem as palavras “eu” e “self”. É bom ressaltar que no Hinduísmo, Budismo, Jainismo e Vedanta, atman se refere não ao self psicológico, mas a um Self Real, um Self espiritual do ser que está além da identificação com os fenômenos universais, a essência do indivíduo, uma parte infinitesimal de Brahman. Um Self que sobrevive ao eu psicológico, ao ego, ao ser dentro de um corpo. Do ponto de vista da psicologia moderna, o Self se vai com o corpo. Quando se concebe algo que sobrevive ou preexiste ao corpo, se usa termos como Espírito (Ocidente) ou mesmo Mente (Oriente), incluindo, neste último caso, o Budismo. Mas, mesmo um termo como Mente tem muitos sentidos no Budismo e nas tradições indianas em geral. Mas, no Ocidente só possuímos o termo “mente”. Os indianos dividem o que nós chamamos de mente em diversas qualidades e características diferentes, o que confunde o estudante ocidental, com certeza.

Self X Self Real

Quando o Budismo diz que não há um Self transcendental ou uma Alma transcendental e diz que o Self Real é uma ilusão, está querendo dizer que o Self Real, o Atman do Hinduísmo, é que é ilusório, por não ser permanente e desaparecer com a morte. Não está negando a existência do eu psicológico que, como já dissemos, para a Psicologia está evidente que só existe pelo espaço de uma vida. Qualquer coisa, a partir desta visão, que preexista ou sobreviva à morte não é um eu psicológico (relacionado à personalidade, que depende de mente e corpo), não é um Self Real (uma alma imortal) e não é um espírito imortal, uma unidade imorredoura e imutável do Ser. Contudo, não está incluída nesta negação a noção de “consciência”. No Budismo Mahayana é muito importante a noção de um continuum mental de consciência que, todavia, não é um eu, um self, uma alma, um espírito ou um atma. Não é definido por termos fixos, porque não é algo fixo, permanente, uma personalidade eterna. É um conceito difícil de entender, e não pretendemos, com este texto curto, esgotar a polêmica.

Atman, no hinduísmo, não é considerado o mesmo que o corpo, a mente ou a consciência, mas é algo além que permeia tudo isso. Então, se Atman permeia a mente e a consciência, realmente, é algo que o Buda queria negar. Para ele, o corpo é perecível, a mente depende do corpo para que um indivíduo tenha autorreferência (o eu psicológico) e a consciência pode ser de duas naturezas: a consciência corporal que origina a noção de eu psicológico e a consciência além do corporal, não nascida e sempre existente, que não constitui um eu psicológico autorreferente. Isso é, como se vê, diferente do conceito de Atman, pois o aspecto mental que é esta segunda consciência é um continuum mental, uma continuidade dos processos mentais, mas não da personalidade ou de qualquer unidade autorreferencial. O eu psicológico só é ilusório porque ele não sobrevive ao tempo de uma vida, não porque não exista de modo algum. O Buda negou a inerência, a permanência e a existência sem causas e condições de qualquer coisa que seja no mundo.

Todas as escolas ortodoxas do hinduísmo sustentam a premissa de que o Atman existe como verdade evidente, mas o budismo sustenta que o Atman não existe como evidente, pois no âmago dos seres não há nada que seja eterno, essencial e absoluto. Segundo o Buda, para atingir o Nirvana, é condição sine qua non chegar a essa conclusão além da conceitualização, ou seja, por percepção sábia (prajña).

O conceito budista mahayana de Tathagatagarbha (natureza de Buda ou, literalmente, “útero do Tathagata”), que apareceu em Sutras do 1º milênio da era comum, sugere ideias semelhantes a um self. Ainda que isso seja um pomo da discórdia no Budismo desde então, estudos recentes, como os de Wayman e Wayman, afirmam que esses conceitos de “quase-self”, que também aparecem no Vajrayana, não são nem ego, nem ser senciente, nem alma, nem personalidade. Há quem postule que os Sutras Tathagatagarbha foram escritos para promover o budismo em meio a não-budistas (ver: https://books.google.com.br/books?id=JqLa4xWot-YC&pg=PA96&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false).

Para Johannes Bronkhorst, professor de indologia especializado em budismo e hinduísmo primitivos, embora possa haver dúvida quanto à existência ou não de um eu/self na literatura budista primitiva, fica claro, a partir dela, que buscar o autoconhecimento (o conhecimento de si, do self/eu) não é o caminho budista para a libertação, mas se afastar do autoconhecimento é. Isso faz sentido, porque não há motivo, do ponto de vista budista, para se autoconhecer um self ilusório e ficar fixado nele. O mero conhecimento do self ou eu psicológico não pode conduzir ao Despertar ou Nirvana, mas, de uma perspectiva da Iluminação, a transcendência desta busca sim, ir além do eu psicológico.

O importante é dizer que o eu psicológico existe dentro de seu escopo limitado, ilusório, impermanente e pelo espaço de uma vida. Qualquer terapia para resolver problemas ligados ao eu psicológico vai contemplar soluções temporárias também, pelo tempo desta vida. Mas, a busca do que está além do eu psicológico, ainda que não negue este eu como algo relativamente existente (mas, não inerentemente, como disse o Buda), não se fixa nele e o transcende, procurando acessar o continuum de consciência que não é uma personalidade, nem um agregado neuronal que tem como epifenômeno a consciência de autorreferência, nem um atma, alma ou espírito imortal com uma espécie de “personalidade cósmica”. O que o praticante busca em sua meditação, seja gradual ou não-dual, é acessar o que não é nada disso, a Mente de onde tudo isso se gera, de alguma forma.

O que é Cabala – múltiplas definições

Por Jay Michaelson (tradução do artigo publicado em Learn Kabbalah - https://learnkabbalah.com/whatiskabbalah/ -, feita por Paulo Stekel, sob autorização expressa do autor)


Cabala é:

1 - Literalmente, “receber”, como em uma tradição recebida. Alguns ensinamentos cabalísticos remontam a milhares de anos e foram passados de mestre para discípulo. Outros foram inventados ontem.

2 - Figurativamente, "receber", como em receber a verdade do que está acontecendo agora. A verdade é que você é Deus lendo sobre Deus, no processo de Deus se tornar Deus. Mas, é provável que você não "receba" totalmente essa verdade por causa de como sua mente, corpo e coração funcionam. As formas da Cabala podem ajudá-lo a realmente perceber a verdade deste momento.

3 - Especificamente, um sistema antigo, fascinante e complexo de misticismo judaico e conhecimento esotérico. Rica em símbolos, mitos e mérito literário, a “biblioteca” da Cabala contém milhares de livros escritos ao longo de muitos séculos. Os estudiosos geralmente datam o início desta literatura escrita por volta do século XII, com “ondas” adicionais no século XVI e início do século XIX.

4 - Possivelmente, uma maneira de ler textos e o mundo, em múltiplos níveis de profundidade. A Cabala tem tudo a ver com níveis de realidade e equilíbrio entre eles. Nós nos esforçamos não para passar do “inferior” para o “superior”, mas para integrá-los; não para favorecer um lado de nossas vidas em detrimento de outro, mas para equilibrá-lo. Ler e ver profundamente nos permite fazer isso.

5 - Contemplativamente falando, corpo de conhecimentos e práticas que possibilitam uma compreensão mais profunda do eu e do universo.

A Cabala está enraizada na tradição judaica, que fala do Uno em termos de “Deus”. No entanto, como verá se aprender Cabalá, essa palavra não significa o que você acha que significa. De fato, podemos dizer que isso significa o oposto. Eis como gosto de apresentar o assunto para novos alunos.

A Cabala, como outras tradições contemplativas, está frequentemente preocupada com questões fundamentais. O que é o mundo? Quem somos nós? Qual é o significado de nossas vidas e ações? O que é Deus? Como podemos chegar a conhecer a realidade última em nossa própria experiência? Como o corpo, coração, mente e espírito se encaixam? E quais são os papéis do mito, ritual, moralidade, erotismo, meditação, êxtase, texto sagrado e oração no caminho espiritual?

Estas são algumas das perguntas feitas pela Cabala. Você provavelmente sabe que, nos últimos anos, a Cabala se tornou muito popular - até mesmo, uma moda passageira. Mas o que está realmente, por trás disso?

Dissemos que a Cabala literalmente significa receber, e isso significa que a própria Cabala é uma tradição recebida e que ela nos permite receber a luz do Infinito. Esta forma de leitura dual - uma simples, uma sutil - é em si uma característica essencial da Cabala. Se você aprender Cabala, aprenderá que tudo pode ser lido em múltiplos níveis, com o significado mais profundo geralmente escondido atrás dos véus. Essa é a natureza da realidade, do texto, do eu - é a natureza de Deus. Existem camadas e camadas para nossa experiência e várias “verdades” que existem nessas diferentes camadas. Deixar de lado nossas ideias convencionais de que existe um verdadeiro significado de uma coisa - esse é um bom primeiro passo.

Os estudiosos geralmente definem a Cabala como “misticismo judaico”. Misticismo significa uma experiência direta da Realidade Suprema - que, nas religiões ocidentais, significa uma experiência direta de Deus. Em vez de ler sobre Deus na Bíblia ou orar a um Deus que não experimentamos, um místico encontra Deus “face a face”, por assim dizer.

Essa definição acadêmica, o misticismo judaico, é quase a metade certa. A Cabala contém relatos de experiências místicas e técnicas para obtê-las você mesmo. Essas técnicas funcionam na minha experiência, e você também pode experimentá-las. Mas, a Cabala é mais do que apenas relatos e guias para experiências místicas. Também contém o que pode ser chamado de “esoterismo” ou leituras mais profundas de textos e da vida. Ele contém folclore, magia, lenda, mito, filosofia, guias para meditação, música.

Os mais antigos textos escritos da Cabala datam do segundo século da era comum. Muitos datam do período medieval, especialmente do décimo terceiro e décimo quarto séculos. Muitos foram escritos nos últimos anos.

A Cabala é um corpo de conhecimento que questiona a verdadeira natureza do universo, a alma e Deus, e um corpo de práticas que nos permite experimentá-lo.


Sobre o autor


Dr. Jay Michaelson é autor de seis livros e mais de trezentos artigos sobre religião, sexualidade, direito e prática contemplativa. Ph.D. em pensamento judaico pela Universidade Hebraica , é colunista do jornal The Daily Beast e do Forward. Em sua “outra” carreira, Jay é professor assistente afiliado ao Seminário Teológico de Chicago, ensina meditação em linhagens budistas theravadas e judaicas e possui ordenação rabínica não-denominacional.

De 2003 a 2013, Jay foi um ativista LGBT profissional. Fundou duas organizações LGBT judaicas e apoiou o trabalho de ativistas em todo o mundo na Arcus Foundation, no Democracy Council, e seu novo projeto no Daily Beast, Quorum: Global LGBT Voices.

A realidade que cada um vê

Por Paulo Stekel



A pesquisa escocesa

Acaba de ser publicada uma matéria da BBC sobre a realidade quântica e a pesquisa que afirma que, no nível quântico, não há fatos subjetivos.

Intitulada "Existe a realidade? O experimento que indica que, no nível quântico, não há fatos objetivos", a matéria assinada por Carlos Serrano (BBC News Mundo), apresenta a pesquisa realizada na Escócia pela equipe do físico Alessandro Fedrizzi.

Conforme a matéria: "A teoria quântica afirma que o observador de um fato influencia em como esse fato é percebido. É como dizer que uma mesma bola de tênis para uma pessoa pode representar uma esfera, mas para outra, um cubo.

Para provar isso, físicos da Universidade Heriot-Watt, na Escócia, criaram uma experimento que envolveu quatro observadores: Alice, Amy, Bob e Brian. Esses personagens não são pessoas. Eles são, na verdade, quatro máquinas sofisticadas em um laboratório.

No teste realizado com eles, Alice e Bob recebiam uma mensagem, que nesse caso era um fóton, ou seja, uma partícula quântica da qual a luz é composta. Depois, Alice e Bob enviavam esse fóton a Amy e Brian, ou seja, transmitiam a mensagem a eles.

Eis o que surpreendeu os pesquisadores: apesar de Alice e Bob terem enviado a mesma informação a Amy e Brian, os dois últimos a interpretaram de maneira diferente. O processo é bastante complexo, mas poderia ser exemplificado como um telefone quebrado em que uma mesma mensagem se transforma à medida que passa de uma pessoa para outra.

Este resultado está relacionado a um conceito de mecânica quântica que diz que as partículas podem se entrelaçar e mudar dependendo de quem as observa."

A matéria contém uma entrevista com o físico Alessandro Fedrizzi que pode ser acessada diretamente em https://www.bbc.com/portuguese/geral-47529442.

A realidade entrelaçada

O que pesquisas como esta representam para a visão não-dualista da realidade? Dizer que a realidade depende de quem a vê é compatível com a teoria da mente do não-dualismo. Também encontra respaldo nas neurociências que dizem que o que nossos sentidos captam do mundo é interpretado por nosso cérebro e misturado com percepções anteriores através da memória e depois viram a narrativa final da realidade que imaginamos ser verdadeira (o cientista português António Damásio tem este pensamento).

Se o observador influencia em como um fenômeno é percebido, na verdade, o que ele vê é uma "criação" de sua mente, e não a realidade absoluta em si. É o que dizem os ensinamentos do Budismo Mahayana: quem criou tudo o que vemos como a realidade foi a mente.

A grande verdade é que cada mente observa o mundo e o interpreta à sua maneira. Sendo assim, existem tantas interpretações da realidade quantas mentes interpretando, de modo que podemos dizer que há uma coexistência de realidades e um entrelaçamento quântico destas mentes através de suas interpretações. No final, o mundo com o qual interagimos é uma mescla da nossa interpretação, a forma como a realidade é, e a reação dos outros a partir de suas próprias interpretações ao mundo como ele se lhes apresenta. esta mescla entre a realidade tal como é e a realidade multi-interpretada é o que podemos chamar de "a realidade entrelaçada", samsara, na visão budista.

Acima do entrelaçamento, ou além dele, seria possível perceber a realidade tal como ela é? Sim. O budismo chama essa realidade de "tathata" (talidade ou "tal-como-é"), que se diz ser da mesma natureza do Nirvana e da Iluminação. Contudo, nos é difícil imaginar, sem sermos iluminados, como é esta realidade nua e crua sem as interpretações da mente.

O físico Alessandro Fedrizzi, de Brisbane (Austrália), chefe da pesquisa escocesa



Meditação, Mindfulness e Não-dualismo: uma reflexão

Por Paulo Stekel


O objetivo deste texto é fazer uma rápida reflexão sobre os vários aspectos do que se chama meditação no Ocidente. No Oriente, há vários termos relacionados à mente, à consciência e ao cultivo de diversos estados de tranquilidade, permanência e acesso a níveis mais profundos da mente. São diversos termos em línguas como o sânscrito, o páli e o tibetano. Mas, em geral, o Ocidente utiliza para todas estas técnicas o nome “meditação”. E como existem inúmeras escolas tradicionais que se valem da meditação, não é fácil saber de que tipo de meditação se está falando.

Métodos tradicionais em meio a escândalos

A Índia atual não está menos imune à fraude espiritual que o mundo ocidental. A falcatrua anda sendo globalizada a passos largos. O mundo de Gandhi é assolado por gurus aproveitadores, abusadores e que não possuem o conhecimento e sabedoria que declaram ter. Muitos agem da mesma forma que certos pastores evangélicos no Brasil: se valem da espiritualidade simplesmente para enganar as pessoas e lhes tirar dinheiro. Não citarei nomes porque, muitos casos são sujeitos à mera opinião e outros, mais graves, ainda estão sob investigação judicial. Mas, como onde há fumaça, há fogo, é válido desconfiar de que há algo muito podre do reino de Krishna, de Buda e de Mahadeva.

Há décadas que vejo chegar ao Brasil um sem-número de novos gurus e seus discípulos propondo técnicas de meditação. Os que aparecem representando as incontáveis tradições de Yoga da Índia sempre vendem o seu produto como a técnica derradeira. Há até professores de Yoga do Brasil (que também têm sido acusados de abuso de discípulos) que criaram sistemas pedantes, querendo se adonar do Yoga e até patentear o mantra OM! (sério)

No meio budista não é diferente. Apesar de ser um meio considerado mais sério pelo público em geral, há muitos mestres que só detêm o título, mas são tão indignos quanto os gurus do “ioguismo” não-budista. Se incluirmos aí os tântricos, budistas ou não-budistas, então a polêmica pega fogo. O tantrismo, tradicionalmente a linha meditativa mais incompreendida na própria Índia, que já é complexo e perigoso se praticado sem as ressalvas e os preparos devidos, acaba sendo o deflagrador de muitas polêmicas atuais. E, podemos nos arriscar a dizer, nem é pelo sexo, mas por outro princípio tão forte quanto este: a importância do mestre, o guru. Esta doutrina é chamada de “guru ioga”, a “união com o mestre” ou “através” do mestre, como podemos definir a grosso modo. Parece-nos que esta doutrina tem sofrido muitos excessos e incompreensões motivadas pelo materialismo espiritual (termo cunhado pelo lama tibetano Chögyam Trungpa) dos próprios gurus, que se beneficiam material, emocional e sexualmente desta autoridade. A sabedoria parece ter ficado em segundo plano. Bons exemplos são as denúncias feitas por um grande número de discípulos contra mestres como Sogyal Rinpoche, Mipham Rinpoche, Somartana (condenado a 7 anos de prisão) e Shi Xuecheng. Mas, o Buda condenaria estes abusos severamente (como leitura complementar sobre a visão budista do sexo, recomendo o grupo de artigos no site Olhar Budistaclique aqui).

Sogyal Rinpoche, lama do budismo tibetano acusado de abusos sexuais

O fato é que as religiões formais, instituídas, tanto as teístas (Cristianismo, Islamismo, etc.) quanto as não-teístas (budismo, jainismo, taoismo), estão em decadência. Diante disso, vocês poderiam perguntar como isso pode ser verdade, se o interesse pela espiritualidade nunca esteve tão presente. Sim, pela espiritualidade, inclusive em temas relacionados às religiões citadas. Mas, o interesse em seguir tais religiões formalmente tem diminuído rapidamente. Por isso, usamos a expressão “nova espiritualidade” e “novo dharma” para nos referir a esta tendência. As pessoas querem saber sobre o conhecimento espiritual e religioso, mas não estão dispostas a ser mais as ovelhinhas caladas e abusadas que foram durante séculos. E, isso é muito bom!

O próprio Dalai Lama, em diversas ocasiões, falou que a ética é mais importante que a religião, e sugere que as religiões sejam deixadas de lado e se concentre esforços em ensinamentos sobre a ética, que parece ser algo universal.

A Plena Atenção não-religiosa

Nesta perspectiva, também têm surgido opções de meditação num contexto secular ou minimamente religioso. Podemos citar a técnica de mindfulness (atenção plena ou consciência plena) como desenvolvida pelo Dr. Jon Kabat-Zinn, médico dos EUA que descobriu como integrar os seus conhecimentos budistas (do zen e do Theravada) e a prática de yoga na ciência médica ocidental. Ainda que o que ele desenvolveu seja muito criticado pelos budistas puristas arraigados à tradição, o movimento de plena atenção que ele incitou tem produzido muitos benefícios à saúde das pessoas.

Dr. Jon Kabat-Zinn, divulgador da técnica meditativa de Mindfulness

O fato do Dr. Kabat-Zinn não apresentar a meditação num contexto religioso, permite que a técnica seja acessível a qualquer um que sofra de stress, independentemente de cultura, religião ou crença, no sentido de reduzir os níveis de stress o máximo possível. Por isso, o mindfulness tem se tornado popular em clínicas norte-americanas.

Apesar da antiguidade de cerca de 5 mil anos da meditação de atenção plena (mindfulness), foi apenas a partir da década de 1950 que métodos meditativos começaram a ser estudados a sério por clínicos ocidentais. Faz pouco que tais métodos passaram a ser introduzidos no sistema de tratamento clínico e psicológico na Europa e EUA. No Brasil, isso ainda engatinha, mas é questão de tempo.

Meditação que não é meditação: o não-dualismo

Em meio a este quadro, tem se tornado popular no mundo e, mais recentemente, no Brasil, um tipo de ensinamento sobre meditação que, paradoxalmente, é chamado de “não-meditação” ou, mais corretamente, de “além da meditação”. O que causa muita confusão nos meios meditativos é exatamente o não entendimento do sentido que é dado à expressão “não-meditação”. Tradições com nomes estranhos como advaita vedanta, neoadvaita, Dzogchen, neodzogchen, mahamudra e lamdre são realmente complexas para Ocidentais. Mesmo porque, seus ensinamentos estão numa linguagem milenar não atualizada, com exemplos orientais pouco conectados com o que os ocidentais estão acostumados.

Mas, isso pode ser corrigido. Quando dizemos isso, os puristas “piram”, como se diz popularmente, mas este é o único caminho para que tais ensinamentos sobrevivam como práticas espirituais. Por que devem sobreviver? Porque possuem algo valioso para a humanidade: a ideia de que vivemos de um modo dual, desconectado, fragmentado, em extremos. Fragmentamos o eu e o outro, o corpo e a mente, o material e o espiritual, o bem e o mal, a vida e a morte. Isso tudo causa muito sofrimento. Na verdade, nossa mente original é não-fragmentada, não-dual, sem extremos, ampla, clara, potencialmente sábia, eterna, nunca nasce e nunca morre, não é um “espírito” (no sentido ocidental de um espírito como o contrário de um corpo, seu outro extremo), não é uma “alma eterna” (no sentido de uma alma, que na Índia inclui a noção de personalidade, um conceito moderno que não existia na época do Buda) e está além das noções, incluindo a de bem e mal. Ela não está sujeita aos pares de opostos. Isso é não-dualismo.

Peter Fenner PhD, um instrutor de Dzogchen num contexto não-religioso

Em meditação, o não-dualismo implica em afirmar que quaisquer técnicas meditativas que reforcem o dualismo não são adequadas para libertar o ser da noção de que ele sofre, de que é infeliz e de que nada vale a pena. O não-dualismo ensina que tudo já está aqui e, exatamente como deve ser: perfeito, pleno e espontâneo. Não perceber isso é querer colocar mais alguma coisa em algo que não precisa de nada. O fracasso é óbvio.

Escolhas

Para finalizar, se você deseja se envolver com meditação, precisa decidir inicialmente, embora possa mudar ao longo do caminho, que tipo tem mais a ver com suas inclinações.

Se deseja tentar a meditação formal em estágios, aquela do yoga clássico, do budismo e do tantrismo, tudo bem. É o que chamamos de método gradualista, pois se vai avançando em estágios até o que se considera a libertação do ser das amarras de samsara, o ciclo de sofrimento, doença, miséria, velhice, morte e renascimento. Em geral, esta primeira opção é cheia de aspectos religiosos e requer uma adesão forte ao mestre (como no guru yoga), o que pode incomodar a muitos.

Se deseja algo mais secular, o mindfulness pode ser ideal. Contudo, a diferença é que métodos como o do Dr. Kabat-Zinn não estão preocupados em levar as pessoas até o estado de “iluminação”, mas apenas a um estado de mais saúde e paz mental, o que já é bom, com certeza.

Se nenhuma das opções parece ser adequada, o ideal é o não-dualismo. Mas, como há escolas não-dualistas em contextos religiosos (como o Dzogchen, no budismo tibetano), se isso não lhe interessa, o ideal é buscar as versões não religiosas mais abertas, que eliminam o excesso de culturalismo religioso do ensinamento e não levam o guru yoga como uma bandeira para prender as pessoas a seus instrutores. Exemplos de instrutores (neo)Dzogchen que não são religiosos: Peter Fenner e Jackson Peterson.

Jackson Peterson, instrutor de Dzogchen e Mahamudra em contexto não-religioso

Na dúvida, pesquise, leia bastante, converse, até saber do que se trata aquilo no qual está se envolvendo. Nem tudo é a mesma coisa, nem tudo serve para o mesmo objetivo e nem tem o mesmo sabor. Discernimento é crucial aqui.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O que o Buda NÃO ensinou

Por Christopher Titmuss


Nota do Tradutor e Editor: Este artigo foi publicado originalmente em Inglês sob o título "What the Buddha did not teach" no boletim digital Dharma e-News Nº 13 (Janeiro a Abril de 2008), organizado pelo próprio Christopher Titmuss. Também pode ser encontrado em seu original em Inglês em Buddhism Without Boundaries. Traduzimos e publicamos aqui o texto sob autorização expressa do autor. Esta tradução foi publicada pela primeira vez em 2008, no blog da extinta Revista Horizonte.

Os Discursos em Páli (Suttas) são o corpo original de textos das palavras do Buda. O propósito deste artigo é destacar alguns aspectos daquilo que o Buda não ensinou. Os Suttas em Páli mostram que o Buda refutou muitas idéias que hoje lhe atribuímos. Os praticantes do Dharma, aqueles que consideram o Buda como seu professor principal, precisariam verificar o que o Buda disse nos Suttas. Permitam-nos aplicar uma sabedoria perspicaz. Obviamente, há percepções mais profundas que vão além da sabedoria do Buda.

Conforme os textos, o Buda não ensinou:

1 – Abhidhamma. Conforme a Tradição Budista Theravada, o Abhidhamma constitui os ensinamentos de Buda concedidos à sua mãe no paraíso de Tusita. A pesquisa histórica mostra que monges budistas especialistas escreveram o Abhidhamma como um comentário às palavras do Buda. Consistindo de sete livros, o Abhidhamma fornece uma classificação detalhada e analítica da mente e do corpo numa variedade de grupos e elementos. O Abhidhamma foi composto durante um longo período e não é a palavra do Buda, mas só uma interpretação. O Abhidhamma é uma entre um certo número de escolas budistas de interpretação dos Suttas.

2 – Aceitação. Nos 5 mil discursos do Buda não é possível encontrar uma palavra Páli para “aceitação”. Ele aponta mais para uma investigação profunda do que uma aceitação daquilo que não podemos mudar.

3 – Anicca, Dukkha e Anatta são a verdadeira realidade da existência. O Buda nunca fez tal afirmação a respeito da impermanência [anicca], da insatisfatoriedade [dukkha] e do não-eu [anatta]. Ele disse que estas são três características da existência. Se fossem a verdadeira realidade, não haveria alívio nem liberação. O Incondicionado é anatta [não-eu], mas não anicca ou dukkha.

4 – Crença em Deus. O Buda considera a crença no Deus Criador do monoteísmo como só mais uma das diversas espécies de crença religiosa. Ele a rejeitou, bem como a várias outras crenças religiosas. No Judaísmo, Cristianismo e Islamismo isso é considerado como a única crença religiosa. Na antiga Índia, o Deus criador era chamado Brahma. No entanto, o Buda apontou o caminho para permanecer com Brahma (Brahma Viharas). É importante entender que o Deus Criador da Índia antiga não pode ser comparado ao Deus Criador Ocidental, que é absoluto e todo-poderoso. Brahma é um Deus entre os Deuses. A profunda e liberadora força de amor, compaixão, grata alegria e equanimidade revela uma permanência com Brahma, uma força criativa. O Buda nunca hesitou em seu foco na liberação completa, ao invés de uma experiência de união com Brahma.

5 – Estar no aqui e agora. O Buda não deu ensinamentos do tipo “estar aqui e agora”. Os especialistas budistas traduziram muito livremente “ditthe dhamme” como “aqui e agora”. “Ditthe” significa “visão” e “dhamme” refere-se ao Dharma, isto é, a todos os objetos (na mente e no mundo, passado, presente ou futuro), aos ensinamentos e à verdade. O Buda não reconheceu qualquer tipo de entidade egóica [self entity] nem adotou uma idéia de substância para o momento presente. “Ditthe dhamma” pode ainda significar “o ato de ver com atenção cuidadosa o Dharma”.

6 – Crença em Deus, um salvador, um livro sagrado, profeta ou guru. A linguagem de “Deus” é a linguagem do “Eu”. Afinal de contas, a crença em Deus e no Eu são os dois lados da mesma moeda, a primeira crença reconfirmando a segunda. Um “Deus Absoluto” não é uma grande questão nos Suttas porque ela não foi um ensinamento influente quando o Buda destacou o ver claramente, o amor desapegado (metta) e a compreensão da natureza da originação dependente. Ele não se opôs à linguagem de “Deus” (Brahma), como usada na Índia. Ele considerou a noção de Deus inteiramente dependente dos sentimentos, percepções e crenças. Não referiu-se a si mesmo como um profeta, guru, deidade ou avatar (encarnação de Deus). Não referiu-se a si mesmo como um mortal comum. Ele disse: Eu estou desperto. O Buda não apontou um sucessor antes de morrer. Ele ordenou que sua Sangha confia-se no Dharma.

7 – Causa. O Buda observou estritamente a originação dependente. Ele não adota uma causa e efeito simplista, de A para B, pensando algo como “esta técnica de meditação conduz diretamente à liberação”. O Buda referiu-se à causa (Páli, hetu) como uma condição distintiva (paccaya). Ele tendeu a colocar as duas questões juntas. Qual é a causa? Qual é a condição? (ko hetu ko paccayo) Numerosas causas ou condições para numerosos efeitos são mencionados nos Suttas. O Buda não aplica qualquer espécie de modelo simplista – “isto exclusivamente causará aquilo” – para o despertar. Ele se refere a um caminho direto (eke-yana) para o despertar.

8 – Escolha. A idéia de que somos sempre livres para fazer uma escolha não está de acordo com a experiência. Não escolhemos nascer, parar de envelhecer, de ficar doentes ou de sofrer dor. Não podemos escolher viver para sempre. Não podemos escolher ser felizes em cada momento do dia. Não podemos escolher os resultados dos eventos que realizamos em nossas vidas. Poderíamos pensar que fazemos escolhas livres e independentes somente para constatar mais tarde que a suposta livre escolha que fizemos acabou se tornando um pesadelo. Nossas supostas escolhas são limitadas. Fazemos escolhas sem conhecer as incontáveis condições que influenciam tais escolhas, ou do passado, presente, ou que poderiam surgir no futuro. Somos herdeiros de nosso karma e amarrados a nosso karma. Isso é uma escolha? É aconselhável usar a linguagem de “escolha”? É a noção da escolha do consumidor deixando-nos iludidos e aprisionados como fregueses? O Buda enfatizou mais a intenção afetando corpo, fala e mente. Na clareza, naturalmente cultivamos ética, samadhi [N.T. “êxtase” - o autor o define como “poder de concentração”] e sabedoria. É uma prioridade natural. A Sabedoria diz que neste caso não se sente haver qualquer escolha. É simplesmente algo conduzente a um modo de vida liberado. Num sentido profundo, realmente não há uma escolha.

9 – Determinismo e fatalismo. O passado certamente pode determinar o processo de originação dependente. O fato de que o passado pode determinar o presente não significa que somos prisioneiros, porque o passado não é um agente que, afinal de contas, possa aprisionar-nos. Isto também significa que não há eventos que simplesmente ocorram sem causas e condições. O Buda também não ensina o fatalismo. Se o passado de modo absoluto determinasse nossa vida, então os ensinamentos das Quatro Nobres Verdades seriam irrelevantes. Seríamos um total prisioneiro de nosso passado. Novamente, não haveria liberação do passado, das forças não-resolvidas do karma. O Buda ensina a originação dependente e a liberação.

10 – Iluminação. A palavra “iluminação” não aparece em lugar algum dos textos budistas. Iluminação é um conceito Ocidental relacionado à era moderna no Ocidente, onde a ciência e a razão gradualmente substituíram o Deus que distribuía punições e recompensas pelas crenças e conduta humana. A palavra bodhi significa “despertar”. Ela vem da raiz budh - “acordar”. Soa arrogante dizer “eu estou iluminado”. Isso soa como crença em um “Eu” que diz “eu estou iluminado”, já que implica em um Eu chegando à Luz e que podemos apreciar aqueles que despertaram. Em Sete Fatores da “Iluminação” a palavra Páli é bojjhanga bodhi, despertar e anga, aspectos de ou membros de. Uma década atrás eu escrevi um livro chamado Light on Enlightenment [Luz sobre a Iluminação]. Anos depois, um especialista Páli me fez a distinção entre despertar e iluminação. Vivendo e aprendendo!

11 – Fé. No sentido Ocidental, fé é freqüentemente associada com fé religiosa, como a de que há vida após a morte ou ter fé em um livro sagrado, um profeta ou Deus. Não há palavra equivalente nos ensinamentos do Buda. Saddha, a palavra Páli traduzida como fé, ou às vezes confiança ou crença, significa sad - coração, dha - pôr ou colocar. Quando nosso coração se dirige à ação, como para explorar os ensinamentos, então saddha surge enraizada na direção do maior aprofundamento.

12 – Livre-arbítrio. Para a vontade ser livre, teria que ser independente, suportada pelo Eu e não condicionada por circunstâncias interiores e exteriores. O Buda não ensina o livre-arbítrio. O Buda ensinou o caminho do meio entre livre-arbítrio e determinismo. O Eu está ligado à noção de livre-arbítrio e igualmente ligado à noção de determinismo. Verdadeiramente, conhecer e perceber a originação dependente é liberar-se. Isso revela o vazio de um Eu real e das coisas reais.

13 – Escape. Os textos falam do escape do sofrimento. A palavra Páli nissarana significa saída. Nós geralmente associamos escape com evasão, com o medo que nos obriga a fugir de nós mesmos, da responsabilidade. Precisamos lembrar o suporte que o Buda deu-nos para encontrar a saída. Gautama, o futuro Buda, fugiu de suas responsabilidades como um príncipe, um marido e um pai. Após seu despertar, seis anos depois, ele pensou a respeito da gratificação da busca de prazer, o perigo nisso e a saída disso.

14 – Extinção do desejo. A palavra khaya geralmente traduzida como extinção, destruição ou dissolução, significa o “esgotamento” do desejo. No esgotamento do desejo, podemos envolver-nos em atenção sábia e ação sábia não corrompida com as preocupações do Eu e com aquilo que ele persegue.

15 – Cinco Preceitos. É extraordinariamente difícil encontrar o conjunto de Cinco Preceitos nos ensinamentos do Buda. Esta lista dos cinco aparece em uma única ocasião em um texto obscuro em todos os Suttas. O Buda nunca limitou sila (ética) a cinco preceitos. Ele falou muito mais extensamente sobre ética, sobre moralidade, do que tem feito a tradição budista. Ele falou a monges e monjas sobre a importância do controle dos sentidos, da purificação do meio de vida e do habilidoso uso de comida, vestimenta, abrigo e medicina como características igualmente importantes de sila. Foi conveniente para o rico que a tradição budista ignorasse o Buda e confinasse a ética aos cinco preceitos. O rico poderia buscar a gratificação sensual e privilégios incontidos assim que a tradição em grande parte excluiu-os como uma questão moral. O Buda ainda lista 10 caminhos de ação inábil e ação hábil, 3 de corpo, 4 de fala, 3 de mente (os 4 primeiros sendo a base dos 4 primeiros preceitos). MN 41, Saleyyaka Sutta.

16 – Interconexão. Isto implica que cada “coisa” está conectada a cada outra “coisa”. É uma idéia baseada na noção de que há alguma “coisa” no primeiro lugar. É o carro o motor? Não. Então, tire o motor. É o carro as rodas? Não. Então, tire as rodas. É o carro qualquer outra parte? Não. Então, jogue fora o resto das partes. O que restou do carro a ser conectado? Nada daquele “eu”. Há a convenção de que existe um carro. Muitas mulheres juntaram-se ao Buda no modo de vida renunciado da exploração do Dharma. Uma destas mulheres, chamada Vajira, experimentou pensamentos perturbadores na meditação.

Por quem este homem foi criado?
Onde está o Artífice do ser?
De onde o ser humano se originou?
Onde o ser humano cessa?
Então isto veio à sua mente.
Quem se dedicou a esta questão? Um ser humano ou um ser não-humano?
Ah, isso vem da tentação (Mara) para despertar medo e apreensão? Ela compreendeu.
A verdade despertou nela. Ela respondeu:
Exatamente como numa união de partes a palavra carruagem é usada.
Então, quando os agregados existem,
Há a convenção de um ser humano.
Então, foi dito ao final do discurso pela voz para despertar medo.
Vajira reconheceu-me e então a voz desapareceu dali completamente.
SN. 1. pag. 230.

17 – A vida é sofrimento. Está é uma declaração incorreta da primeira nobre verdade. Novamente, não há tal declaração do Buda. Se isso fosse realidade, então não haveria escapatória. Quando o sofrimento surge na vida, é devido às condições. Quando as condições para o sofrimento não estão presentes, então o sofrimento não surge.

18 – Mantras. Os Mantras são geralmente uma prática devocional para um Eu Supremo, para um Deus ou que se utiliza da pura repetição de uma palavra para condicionar a mente a reduzir o estresse ou o pensamento excessivo. O Buda ensinou a experiência direta com a respiração, o corpo, os sentimentos, os estados da mente e o dharma ao invés de qualquer mantra como a prioridade da atenção. Mantras podem, entretanto, ser uma meditação útil para acalmar a mente.

19 – Metta é bondade amorosa. Muitos tradutores Páli definiram metta como bondade amorosa. O Pali-English Dictionary, da muito respeitada Pali Text Society, na Grã-Bretanha, usa a palavra “amor” para metta. Percepções da bondade dos monges budistas podem ter influenciado a moderna tradução de metta. O dicionário diz que metta deriva de mid - amar. Bondade amorosa é uma tradução inadequada. Metta expressa amor incondicional, amizade profunda e bondade ilimitada, aberta e sem amarras. O Buda falou a Anuruddha de liberação através do amor (metta ceto-vimutti) e novamente em Itivuttaka 27.19-21. Ananda também incentivou meditar nas características de metta para se atingir a liberação.

20 – Método e técnica para desenvolver Metta. No Metta Sutta, o Buda simplesmente revelou as qualidades, atitude e estado de ser de alguém profundamente fixado em metta. Amor sem limites é a marca de uma pessoa verdadeiramente realizada. O Buda apenas ensinou a direção de metta em todas as direções assim que se esteja desapegado. Metta, que é amor, é uma força transformadora e divina que compartilha características similares à liberação. Ambas, liberação e amor, não conhecem limites. Os métodos e técnicas modernas para desenvolver metta têm muito pouca relação com a realização de metta como uma imersão permanente. Apesar disso, a aplicação de métodos e técnicas para desenvolver metta pode ser muito proveitosa. Em seu livro clássico da tradição Theravada do século V, o Visuddhimagga (o Caminho de Purificação), o Venerável Acharya Buddhaghosa aproveitou algumas das afirmações do Buda e usou-as como frases para desenvolver metta. Ex.: “Possam todos os seres estar livres da inimizade. Possam eles viver venturosamente.”

21 – Atenção plena é o elo mais importante no Caminho Óctuplo. O Buda nunca isolou um elo acima dos outros. No Discurso sobre as Quatro Aplicações de Atenção Plena, ele disse que “atenção plena é cultivada até o ponto necessário para o conhecimento, a fim de se permanecer livre e independentemente no mundo”. Não há qualquer instrução nos ensinamentos do Buda para se estar “cônscio em cada momento”. Ele não poderia corresponder a tamanho ideal. Nem ninguém poderia. É um empreendimento impossível. O Buda não foi sempre cioso das conseqüências de suas decisões e mudaria sua mente depois. Tomar um dos aspectos do caminho e elevá-lo acima dos demais abandona a originação dependente. Isso daria caráter de Eu à atenção plena. No MLD 117, o Buda declarou que visão correta, esforço correto e plena atenção correta sustentam uma à outra enquanto fornecem uma explicação abrangente da sustentação mútua e dos significados de cada elo no Nobre Caminho Óctuplo.

22 – Prática momento a momento. O Buda não adota esse tipo de idéia. Ele defende a aplicação da plena atenção ao corpo, sensações, estado da mente e dharma. É um meio de realizar uma liberação eterna. Ele não ensina o concentrar-se na plena atenção para seu próprio benefício. Ele não admite qualquer tipo de egoidade à plena atenção. Não há palavras para “momento a momento” em qualquer dos Suttas. Desenvolvemos plena atenção juntamente com seis outros membros para atingir o despertar, a saber, investigação, energia, alegria profunda, tranqüilidade, concentração meditativa e equanimidade, para chegar à verdadeira sabedoria da liberação. (MLD 118).

23 – Conhecer e perceber as coisas como elas são. Não proferido pelo Buda. Uma má tradução comum de yathabhutam-ñana-dassana. Esta célebre declaração do Buda significa literalmente “conhecer e perceber conforme o que vem a ser”. Bhuta vem da raiz bhu, vir-a-ser. Isso se refere à ação de conhecer e perceber. Não há menção de coisas nesta afirmação. Esta tradução correta é uma aproximação mais dinâmica e desafiadora do que a má tradução que sugere uma idéia fixa. “O que vem a ser” se refere à originação dependente.

24 – Nenhum Eu. O Buda permaneceu em nobre silêncio quando perguntado se havia um eu ou nenhum eu. Ele simplesmente declarou que corpo, sentimentos, percepções, formações mentais, incluindo os pensamentos, e a consciência não eram alguém e não pertenciam ao eu. Ele não ensinou o eu como sendo um veículo para a liberação da falsa percepção. Anatta literalmente significa “não-eu”; se o Buda tivesse dito “nenhum eu”, ele teria falado na-atta.

25 – A Unidade é a realidade fundamental. O Buda não negou a importância da Unidade. Ele se refere a ela na experiência de Brahma Viharas (Permanência Divina ou Presença de Deus). Ele não se refere a esta Permanência como realidade fundamental, uma vez que isso traz a noção de um Eu que se une a outro. O Buda refuta que O Todo é Um e igualmente refuta que O Todo é Muitos e aponta para a originação dependente. Em MLD 117, o Buda disse: a Unificação da mente, equipada com os outros sete elos do Caminho Óctuplo, é chamada nobre concentração correta com seus suportes e requisitos.

26 – Abrir-se ao desejo. O desejo (tanha), tanto quanto a ânsia e a sede que se seguem, conduz à insatisfatoriedade e ao sofrimento. O Buda nunca endossou uma idéia como a de se abrir ao desejo. O desejo resulta do contato, da identificação com sensações particulares que condicionam o desejo e alimentam o apego. A idéia de que podemos obter aquilo que desejamos sem vínculo com os resultados compromete os ensinamentos do Buda sobre a insatisfatioriedade do desejo. Abrir-se ao desejo emite uma mensagem aos consumidores budistas para que estejam abertos a seus desejos desde que, por meio deles, sigam sem ânsia. A paz temporária da mente que experimentamos quando somos bem-sucedidos em conseguir o que queremos é devida à suspensão temporária do desejo em nossa mente. Abrir-se ao desejo dilui os ensinamentos do Buda para adequá-los à ideologia Ocidental de ir atrás do que queremos. É uma visão comum no Budismo Americano contemporâneo, onde geralmente a jangada que vai para a outra margem tem se tornado a partida de um transatlântico. O Buda usa outras palavras para “desejo”, como dhamma-canda, zelo pelo dharma, quando referindo-se à intenção, práticas e ações necessárias para o despertar e a liberação.

27 – A Paixão (raga) deve ser erradicada. O Buda incentivou a paixão como Dhamma rage (Paixão pelo Dharma). Não devemos confundir raga com desejo. Ele referiu-se a abandonar qualquer raga que dá cor e distorce os objetos. A palavra raga significa dar cor ou tingir.

28 – Paramitas (Perfeições). O Buda não ensina as 10 Perfeições. Elas não são encontradas em nenhum lugar dos Suttas. Ele refutou a crença de que podemos alcançar uma perfeição da mente, não importa o quanto cultivemos dana (generosidade), ética, renúncia, sabedoria, energia, paciência, honradez, decisão, metta (amor, bondade amorosa) e equanimidade. As 10 Perfeições são encontradas nos comentários do Theravada e Seis Perfeições são encontradas na tradição Tibetana. O Buda ensinou a liberação a partir da noção de perfeição e imperfeição.

29 – Salvação pessoal. Salvação pessoal importa para aqueles que acreditam em um Eu que deva ser salvo.

30 – Renascimento. Não há nenhuma palavra nos ensinamentos do Buda que se traduza literalmente como renascimento. Esta noção parece vir da palavra Páli punnabbhava, que literalmente significa “novo vir-a-ser” [rebecoming]. No Kalama Sutta, um dos mais queridos de todos os discursos sobre a investigação, o Buda presume uma idéia provisória sobre o “novo vir-a-ser” ao invés de referir-se a isso como um fato indubitável. Há o “novo vir-a-ser” devido a estar-se amarrado à força do desejo.

31 – Reencarnação. O Buda refutou a crença numa alma, Eu [self] ou essência que vai de uma vida à outra. Nossa meditação não pode mostrar algo interno permanente a deixar o corpo ao chegar a morte.

32 – Visão correta. A palavra Páli para “correto”, no caso de “visão correta”, “intenção correta” e nos seis elos restantes no Nobre Caminho Óctuplo, é SammaSamma significa “conduzente” - conduzente ao completo despertar. Uma visão conduzente revela uma profundidade de compreensão do que é a liberação. Samma não tem qualquer implicação de um mandamento moral, de certo ou errado. Miccha Magga significa um Caminho Não-conduzente que se segue na vida.

33 – Samatha (tranqüilidade) e vipassana (discernimento) são práticas separadas uma da outra. O Buda nunca refere-se em nenhum lugar a samatha vipassana como técnicas. Se fossem, seriam opostas uma à outra. Ele ensinou samatha-vipassana como qualidades de experiência e percepções essenciais para a compreensão do Dharma. Ele disse que algumas pessoas são desenvolvidas em ambas, tranqüilidade e discernimento; algumas são desenvolvidas em tranqüilidade; algumas são desenvolvidas em discernimento e algumas permanecem não-desenvolvidas em ambas. O Buda nunca disse que samatha (a consciência plena da respiração) é uma técnica e que Vipassana ou meditação do discernimento (consciência do corpo ou pensamentos que surgem) é outra técnica. Diferentes tradições budistas separaram uma da outra.

34 – A visão da impermanência é tudo o que importa. O Buda nunca tomou a exploração da impermanência isoladamente do resto do corpo de seus ensinamentos. Quanto à impermanência, incentivou uma perspectiva quíntupla – vemos a originação, o desvanecimento (de eventos, fenômenos, experiências, relacionamentos, etc), a satisfação, o risco e o caminho para fora do mundo da impermanência. A experiência de impermanência (anicca – literalmente “não-permanente”) está disponível como um passo em direção ao desapego.

35 – Partícula subatômica (kalapas). O Buda não ensinou o desenvolvimento do poder de concentração (samadhi) na meditação a fim de experimentar partículas subatômicas. A palavra kalapas não aparece em nenhum lugar dos suttas. O Buda não sustentou tais coisas, como visões materialistas ou não-materialistas.

36 – A Verdade está dentro de você. Nunca declarado pelo Buda. Ele disse que preservamos a verdade quando não fazemos reinvindicações de a possuirmos. A verdade não está dentro, nem dentro de outro, nem no meio. Nós não podemos encontrar uma coisa chamada Verdade interior. A verdade é aquilo que nos desperta (bodhi-sacca), a verdade da sabedoria (sacca-ñana). Não é uma entidade substancial que alguns têm e outros não têm.

37 – Vipassana como uma técnica. Não há nada nos ensinamentos do Buda indicando que Vipassana seja uma técnica. A palavra simplesmente significa “discernimento” [insight]. Um momento de discernimento é um momento de vipassana que pode surgir em qualquer lugar a qualquer momento. A tranqüilidade sustenta o discernimento e o discernimento sustenta a tranqüilidade. Calma e discernimento indicam liberação.

38 – Eu Real. Diversos professores budistas mais graduados inevitavelmente usam em suas conferências e escritos o conceito de Eu Real. Não há nada que valide um Eu Real. Quem ou o que internamente determina o que é esse meu Eu Real e o que não é esse meu Eu Real?

39 – Dieta vegetariana. O Buda estava mais interessado no que saía de nossas bocas, do que naquilo que entrava nelas. Ele não se opôs que os buscadores renunciados recebessem carne para comer, desde que animais não fossem mortos por eles. (MLD 55). Na Índia vegetariana todos os dias andarilhos, iogues, sadhus e ascetas muito, muito raramente tocam carne. Os hindus tratam as vacas na Índia com reverência sagrada por seu modo tranqüilo e seus laticínios. É improvável que os hindus oferecessem à Sangha desabrigada do Buda qualquer coisa com aspecto de carne – isto é, animais, aves ou peixe. O Buda necessitaria revisar radicalmente sua visão hoje a respeito da ingestão de carne. Há crueldade para com os animais em nossos grandes matadouros. Animais são abastecidos com uma dieta prejudicial. Vacas, ovelhas, porcos e aves consomem uma enorme quantidade de comida, quer confinados em fábricas animais, quer ocupando terras valiosas que poderiam fornecer grãos, frutas e vegetais. Milhões de budistas entoam para salvar todos os seres sencientes e dispensar bondade amorosa aos animais, aves e peixes, mas continuam a comê-los, geralmente no dia-a-dia.

40 – Meditações com visualização. O Buda forneceu práticas diretas para vermos e conhecermos por nossas próprias experiências o que vem a ser, ao invés de aplicar sobre a experiência visual figuras, imagens ou arquétipos mentais. Do mesmo modo que com os métodos para metta, o uso de práticas com mantras, visualização, podem, contudo, ser uma forma muito benéfica de meditação.

41 – Nós criamos nossa própria realidade. O Buda nunca fez essa declaração. Você vê essa frase atribuída ao Buda em posters e calendários. É uma idéia bizarra. Pode a mente criar o céu, a terra, a natureza e incontáveis seres sencientes? A crença de que criamos nossa própria realidade é uma projeção primitiva. Não podemos criar nem mesmo nosso próprio sofrimento. A noção de “eu” e “meu” simplesmente surge com condições que têm um suporte. As condições da originação dependente dão forma à realidade. A mente não pode criá-la. O Eu substituiu Deus, o Criador, pelo Eu, o Criador. É outra projeção. Isso vem da má tradução do primeiro verso do Dhammapada. O buda disse que “todos os dharmas são fabricados pela mente”. Isso significa que a mente constrói o Eu pelo que é percebido. A mente concede substância, essência, alma ou egoidade àquilo que é originação dependente.

42 – Atenção sábia. Uma tradução simples. As palavras Páli são yoniso-manasikaraYoni é o útero da mãe. Manas é mente. Kara é ação. É a ação da mente que emerge da profundeza de nosso ser. Yoni é usada metaforicamente. Manas é mente. Kara é ação. Yoniso-manasikara indica o estabelecimento da mente.

Sobre o autor

Christopher Titmuss, escritor e monge budista na Tailândia e Índia, ensina Meditação do Despertar e do Discernimento no mundo todo. Vive em Totnes, Devon, Inglaterra. Ele é o fundador e diretor do Dharma Facilitators Programme [Programa de Facilitadores do Dharma] e do programa Living Dharma [Dharma Vivo], um programa de aconselhamento online para praticantes do Dharma. Ele organiza retiros, participa de peregrinações (yatras) e conduz assembléias sobre o Dharma. Christopher tem ensinado em retiros anuais em Bodh Gaya, Índia, desde 1975, e conduz uma reunião anual sobre o Dharma em Sarnath desde 1999. Um instrutor do Dharma graduado no Ocidente, é autor de vários livros, como Light on Enlightenment [Luz na Iluminação], An Awakened Life [Uma Vida Desperta] e Transforming Our Terror [Transformando Nosso Terror]. Um batalhador pela paz e outras questões globais, Christopher é um membro do conselho consultivo internacional da Buddhist Peace Fellowship [Comunidade Budista da Paz]. Poeta e escritor, é co-fundador da Gaia House [Casa Gaia], um centro internacional de retiro em Devon, Inglaterra.

Acesse o interessante Website: www.insightmeditation.org [apenas em inglês]

Como aderi ao Dharma além do Budismo

Paulo Stekel


Um Dharma além da instituição

Este texto tem um caráter nitidamente autobiográfico, mas isso é só um detalhe. Seu principal objetivo é apresentar uma noção de Dharma além da institucionalizada pelo Budismo e outras tradições orientais que, na verdade, não possuem a tutela ou o direito inalienável sobre algo que faz parte da essência de todas as coisas.

Um dia, por volta de 2015, conversava com um mestre vajrayana sobre a visão de Dharma que havia acessado em minhas meditações. Disse-lhe que, em meu insight, Dharma estava muito além da instituição do Buddhadharma, e que alguém poderia acessá-lo sem participar da instituição formal que se criou após a morte de Siddhartha Gautama. Afinal, o Buda o fez assim! Buda não era budista! Ele praticou o Dharma – hoje chamaríamos simplesmente de “espiritualidade” - com as técnicas disponíveis em sua época, e chegou ao resultado final. Seu caminho percorrido foi discutido, experimentado, virou um sistema e um conjunto complexo posteriormente, que é o que hoje chamamos de “budismo”. Muitos continuaram praticando além e testando, e novas percepções surgiram, gerando outras versões do budismo. Por isso, deveríamos dizer, como muito bem o faz o decano do budismo brasileiro, Ricardo Mário Gonçalves, “budismos”. Ele concordou comigo.

Disse-lhe ainda que não me sentia à vontade tendo que recorrer a um simbolismo arcaico, linguagem antiga e um ambiente religioso e cultural em nada conectado à realidade moderna. Preferia ver o Dharma a partir da perspectiva atual, como fez o Buda em seu tempo. Ele ensinou o Dharma de um modo perfeitamente conectado ao seu tempo. Minha meditação, desta forma, traria mais resultado. Ele novamente concordou e disse que achava que essa era a percepção real, mas que ele mesmo não a poderia manifestar publicamente, pois como lama de uma instituição, ao concordar publicamente com minha posição, ficaria inabilitado para continuar dirigindo-a no Brasil. O que pensar? É a verdade, mas não pode ser anunciada! Que disparate! O Buda ensinou a coerência.

O equívoco da devoção extrema ao guru

Por coerência, me afastei oficialmente das linhagens a partir de 2016. Em 2017 fiz isso de modo oficial. Não significa que sou contra as linhagens instituídas. Pelo contrário, creio que são úteis e até necessárias para muitos indivíduos que precisam que alguém lhes digam minuciosamente qual o caminho que suas mentes devem seguir. Mas, há uma parcela de praticantes, e não sou o único, que percebe as coisas de outra forma. Eu, e meus companheiros de pensamento, buscamos uma prática do Dharma que seja mais viva, mais natural, menos institucionalizada, menos regulada, menos excesso de “guru yoga” do tipo “infalibilidade do Lama”. Para muitos praticantes budistas equivocados (ou mal-intencionados) o Dalai Lama é infalível como guru, os Lamas são infalíveis, pois assim ensina a tradição do Guru Yoga. Isso é um absurdo! Temos que separar o símbolo do real, o divino do humano, para que não percamos ainda mais a sanidade em meio a esse mar de egos inflados.

Minha visão do verdadeiro “Guru Yoga” é a direção da devoção à semente de Buda em nós, não a um mestre terreno. Os próprios ensinamentos se referem ao Guru Interno como sendo o verdadeiro guru, do qual o guru externo é como um facilitador. O mestre físico deve ser respeitado enquanto preceptor e alguém mais graduado, praticante mais antigo. Há, aí, um grande respeito. Mas, ir além disso, como se faz no guru yoga hinduísta e no vajrayana, não parece adequado à minha conformação. O excesso desta visão no Tibete, por exemplo, permitiu aberrações como o excesso de autoimportância do guru, os abusos cometidos por muitos mestres, atos violentos e uma deturpação da tradição de Tulkus (Nirmanakayas) instituídos, pessoas consideradas o renascimento de outros mestres e, assim, instituídas mestres também desde a tenra infância. É uma ideia estranha ao Budismo antigo, mas comum no sistema devocional indiano, e que se incorporou ao vajrayana no Tibete. Durante séculos esta instituição tulku serviu aos interesses políticos dos governantes eclesiásticos, e pouca conexão tem com um suposto renascimento de antigos mestres no corpo de crianças. É uma invenção que serviu muito bem para aumentar a devoção do povo aos mestres e, mais ainda, serviu como um modo de controle social por muito tempo. Não há como negar este fato. Mas, hoje em dia este tipo de crença não se sustenta mais e deveria ser deixada de lado. A instituição tulku mais polêmica é a dos renascimentos dos Dalai Lamas. O próprio atual Dalai Lama já sinalizou que a instituição talvez devesse ser abolida e ele mesmo não renascer mais tendo este status.

Ainda que minha opinião possa chocar aqueles praticantes mais devotados ao guru yoga e os caçadores de bênção de tulkus, não tenho como dizer que acredito nisso. O próprio Dalai Lama fica claramente desconfortável quando lhe perguntam sobre ser um tulku, uma emanação de Avalokiteshvara, o buda patrono do Tibete. Ele muda de assunto e diz ter só uma certeza: a de que é um simples monge. Não é humildade, é a realidade!

Já não bastasse a tradução errônea difundida pelos chineses de “buda vivo” dada aos tulkus, a continuação da instituição não contribui em nada para a causa tibetana, nem para um Dharma vivo no século XXI, nem para o entendimento da real proposta do Buda Shakyamuni. Ela deveria ser abolida. É uma crença meramente cultural.

Dissolvendo o status quo e as reservas de mercado do conhecimento

Devido a isso e à evidente decadência da qualidade dos mestres que têm ensinado dentro das instituições budistas, sendo apenas mantenedores do status quo e das reservas de mercado que os ensinamentos constituem, fenômeno que atinge em cheio em especial o budismo vajrayana, tomei a decisão de me afastar oficialmente dessas instituições cujos objetivos me parecem duvidosos.

Quando vi um dos meus mestres budistas brasileiros quebrando seus votos, buscando prostitutas na Tailândia em intervalos de retiros, batendo na mulher, manipulando a verdade para ter a guarda do filho e demonstrando falta de engajamento social por estar mais interessado em ser sustentado pela comunidade de praticantes (sangha), vi que a era escura se instalou de vez e não é mais possível confiar em instituições que estão morrendo um pouquinho mais a cada dia.

Seguindo um conselho do Buda, melhor é seguir só quando não se encontra “bons amigos espirituais”. Mas, na verdade, tenho encontrado bons amigos depois que tomei essa decisão. Amigos que passaram pelas mesmas coisas e se tornaram praticantes independentes do Dharma. Amigos que também desejam praticar e divulgar os ensinamentos a todos os interessados sem ficar à mercê de gurus duvidosos que só querem manter reservas de mercado.

Vivemos um momento em que o conhecimento deve ser espalhado. Não pode mais ficar escondido. O mundo mudou, e os métodos também devem mudar. O budismo sempre se adaptou ao momento, ao lugar e à cultura nesses 2500 anos de existência. Não há motivo para não fazê-lo agora.

E, o Dharma é a busca espiritual viva, não engessada em dogmas e limitações. Deve ser algo espontâneo, natural, benéfico, além da rigidez e da vassalagem exigida por muitos mestres de seus discípulos. Neste contexto têm surgido vários movimentos, como o neoadvaita, neodzogchen, nova espiritualidade, espiritualidade integral, neocabala e a ideia de um “budismo ocidental” destituído do culturalismo oriental que nada nos diz sobre nossa realidade.

Novas perspectivas

O nascimento do blog “Novo Dharma” segue nessa linha. Uma proposta abrangente incluindo todas as forças da nova espiritualidade que se distanciam do dogma das religiões, dos mestres fraudulentos, das reservas de mercado do conhecimento espiritual, do abuso dos buscadores, da desautorização do ser para simplesmente repousar em sua natureza primordial sem intermediários, sem iniciações e sem grandes somas de dinheiro envolvidas. Um dharma simples, mas eficaz. Esta é, também, a proposta do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa que passei a desenvolver em 2017.

O mau uso da espiritualidade deve ser denunciado. O bom uso, elogiado. O que não podemos é ficar mornos enquanto há tanto sofrimento, ilusório na perspectiva da mente primordial, mas sofrimento para nossas mentes relativas. Devemos espalhar, debater, praticar, vivenciar, permanecer na presença radiante da natureza verdadeira da mente, e assim, simplesmente sentar e apreciar a vida como ela se nos desenrola, como flui, e como passa…

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Canalização: formas modernas de um fenômeno antigo


Por Paulo Stekel


Tipos de mediunidade

Na segunda metade do Séc. XX, a mediunidade Ocidental se desenvolveu em duas vias diferentes.

Um tipo envolve psíquicos ou sensitivos que falam com espíritos e depois retransmitem o que ouvem a seus clientes. Chamo isso de "canalização por proximidade" ou, como se diz popularmente no Brasil, o "encostar" da entidade, sem se manifestar completamente.

A outra forma de mediunidade não-física é uma forma de canalização em que o canalizador entra em transe, ou "deixa o corpo", permitindo que uma entidade espiritual tome de empréstimo o seu corpo, que então fala através dele. Quando em transe o médium/canalizador parece estar sob o controle do espírito de uma alma que partiu, às vezes entrando em um estado cataléptico, embora os canalizadores modernos não entrem neste estado, necessariamente. Alguns canalizadores abrem os olhos quando canalizam, e continuam a ser capazes de andar e de se comportar normalmente. O ritmo e a entonação da voz também pode mudar completamente.

À medida que o tempo passa, a Canalização tem se tornado um fenômeno mais leve, enquanto a qualidade da informação se torna mais clara e conectada aos conhecimentos da Ciência Moderna. Há, inclusive, muitas canalizações que versam sobre conhecimentos científicos e tecnológicos, com dados ainda não-confirmáveis pelos nosso cientistas.

Um canalizador bem conhecido desta variedade é J. Z. Knight, que afirma canalizar o espírito de Ramtha, um homem de 30 mil anos de idade. Outros dizem canalizar espíritos de "futuras dimensões", mestres ascensos, ou, no caso dos médiuns em transe da Brahma Kumaris, Deus. Outros canais notáveis são Jane Roberts (canal de "Seth"), Esther Hicks (canal de "Abraão") e Carla L. Rueckert (canal de "Ra").

Canalizações modernas

Ainda que o que chamamos de Canalização exista há milhares de anos, provavelmente, devido à evolução da humanidade, o fenômeno foi sofrendo modificações e adaptações. A lista abaixo apresenta alguns exemplos do que podemos chamar de "canalizações modernas", ocorridas em várias doutrinas diferentes (cristã, mórmon, nova era, magia, etc.):

1828-1844 Livro dos Mandamentos (chamado "Doutrina e Convênios" nas edições mais antigas), por Joseph Smith Jr.

1880-1881 - Bíblia Oahspe, através de escrita automática, por John Ballou Newbrough

1900 em diante - A Tradição Cósmica de Max Theon e Alma Theon

1904 - Livro da Lei, por Aleister Crowley

1913-1918 - Em Direção à Luz, por Johanne Agerskov e publicado por Michael Agerskov

1952-1978 - Ashtar (um ser extraterrestre), por George Van Tassel

1953-1971 - Deus, por Eileen Caddy

1963-1984 - Seth, por Jane Roberts

1965-1972 - A Course In Miracles [Um Curso em Milagres], ditado por Jesus, por Helen Schucman (com a assistência de William Thetford)

1973–presente - Os Ensinamentos de Miguel, por Chelsea Quinn Yarbro

1977–presente - Ramtha, por JZ Knight

1981-1984 - Ra, por Carla Rueckert

1988–presente - Abraham, por Esther Hicks

1989–presente - Kryon, por Lee Carroll

1991-2005 - Deus, por Neale Donald Walsch

1992-presente - Arten e Pursah, por Gary Renard

1997–presente - Tobias, por Geoffrey Hoppe

No Brasil, a extinta Revista Amaluz (década de 1990 até o ano 2000), ajudou a divulgar a Canalização, pois muitos dos canalizadores dos EUA apareceram nela. Alguns brasileiros, também. Ali, era possível se ler canalizações de entidades como Bashar, Luz Pleiadiana, Tsade Diesté, Gaia, Os Nove Senhores do Tempo, P'taah, Sananda, Assembleia de Luz, Kuthumi, Salem, Germane, O que fala muitas Verdades, Obehon, etc.

Nesta época, mais especificamente por volta de 1995, também comecei a tornar públicas algumas das canalizações minhas através de meu mentor principal, Danea Tage, além de alguns outros. Depois de cerca de 20 anos ministrando o Curso de Canalização, muita gente já conhece o assunto no Brasil, e ele já não causa mais tanta estranheza como antes. Digo isso, porque Canalização é um fenômeno que se processa fora das casas espíritas convencionais, onde a mediunidade é entendida como algo que não se pode praticar fora. Canalização não funciona assim! Qualquer pessoa pode canalizar, se estiver preparada, mesmo que não seja em um centro espírita. Devemos entender estas diferenças e respeitá-las. Os canalizadores dos EUA, em geral, canalizam para grandes públicos ou mesmo em atendimentos particulares. É o processo que utilizo há anos.

Mediunidade como forma de Canalização

Na Revista Amaluz (nºs 119 e 120), no artigo “Salvo pela Luz”, de Dannion Brinkley e Paul Perry, (nº 119, pág. 127 e nº 120, pág. 30), aparece uma das primeiras definições do que é Canalização em Português, bem como uma diferenciação clara entre Canalização e Mediunidade:

Neste século, a canalização passou por grande transformação. (...) A canalização não exige necessariamente que o canal entre em estado de transe, voltando sem nenhuma lembrança ou responsabilidade sobre o que vem através dele. (...) O termo "mediunidade" é frequentemente usado em lugar de "canalização". Mediunidade é um termo mais antigo e canalização vem sendo usado principalmente desde a década de sessenta. Ambos significam sintonizar finamente em um mostrador (dial) específico no espectro eletromagnético (semelhante a um rádio), que permite a conexão com outras partes de nós mesmos, com a Fonte e com outras entidades. Pode-se ser ou um médium ou um canal; algumas pessoas são ambos.

Tanto a mediunidade quanto a canalização são co-criações, embora existam diferenças entre elas. Gosto desta explicação, e a compartilho aqui com vocês com a permissão de um de meus instrutores, Shawn Randall, canalizando Torah: ‘Canalização é quando se está fornecendo um serviço de aconselhamento, ensinamento ou cura, para si mesmos e para os outros. Mediunização é prestar um serviço para entidades espirituais que têm suas agendas (intenções) específicas.’

A canalização permite que nos abramos para conectar com nosso próprio Eu Superior (nossa própria essência) e com a Fonte. Ela permite que uma amorosa entidade se expresse através de nós. O foco dessa entidade é compartilhar a sabedoria, o conhecimento, a ajuda através de conselhos, a cura, o auto-poder e outras formas de criatividade que beneficiam o canal e também a humanidade como um todo. Os canais também são abastecidos de informações por um mentor, telepaticamente, sem estar completamente em transe. Canalizar é compartilhar energias, uma criação de novas energias, e um processo reflexivo, no qual o canal, o auditório, e até o ser que está sendo canalizado, estão recebendo muito desse processo.

Mediunidade é a forma de canalização que permite que nos comuniquemos, ou que canalizemos diretamente, energias astrais que desejam comunicar mensagens para membros da família ou que desejam ou pedem ajuda para se transformar e fazer a transição de uma dimensão para outra, ajudando em seu crescimento. Esses espíritos têm suas próprias agendas. A mediunidade ao longo dessas linhas é uma prática muito específica e às vezes exige que se trabalhe com outros médiuns a fim de realizar a tarefa.

Seja canalização ou mediunidade, a energia atrai energia semelhante. Assim, seja qual for nosso sistema de crenças, focos ou agendas escondidas ou abertas, é isso que atrairemos em nossa prática.”