Por
Paulo Stekel
Uma questão de
definição precisa
O que é uma
“experiência mística”? Uma experiência não-dual é uma
experiência mística? É o que buscaremos responder neste artigo.
No verbete
“experiência religiosa”, a Wikipédia define experiência
mística da seguinte forma:
“Experiência
religiosa, experiência mística ou experiência espiritual é uma
experiência subjetiva em que um indivíduo tem um encontro ou uma
união com uma entidade divina, ou diz ter tido contato com uma
realidade transcendental. Muitas tradições religiosas e místicas
veem a experiência religiosa como um encontro direto com Deus,
deuses ou contato com outras realidades (1) e a visão científica
normalmente afirma que a experiência religiosa é uma experiência
normal do cérebro humano que evoluiu em algum momento durante o
curso da evolução do cérebro (2).”
Esta definição foi
construída em cima das obras de dois britânicos com visões
antagônicas: (1) o especialista em Teologia Filosófica Richard
Swinburne, e (2) o etólogo, biólogo evolutivo e famoso escritor
Richard Dawkins.
Estas duas visões
antagônicas sobre o fenômeno místico discordam sobre o QUE está
sendo vivenciado, mas nenhuma delas discorda que a experiência é
REAL para quem a descreve. Contudo, para os adeptos da teologia, há
uma realidade transcendental vivenciada pelas testemunhas, seja lá
como ela possa ser definida. O neurocientista dos EUA, Sam Harris
(autor de “Despertar – um guia para a espiritualidade
sem religião”, Companhia das Letras: 2015) diz que estas
experiências são vivenciadas em todo o mundo e por pessoas de
várias religiões ou nenhuma, mas as crenças pessoais interferem na
interpretação de tais experiências. Os neurocientistas mais
radicais dizem que todas as experiências místicas acontecem dentro
do cérebro, e não possuem uma realidade fora dele. Neste caso,
excluem a possibilidade de realidade dos fenômenos paranormais e de
uma relação entre o que se vivencia na mente e uma energia externa
de interação. Mas, será que esta é a melhor forma de considerar
estas experiências?
No livro “A
Dança da Vida” (The Dance
of Life, 1923), do escritor, médico e psicólogo
britânico Henry Havelock Ellis (1859-1939), a
experiência mística é considerada uma extensão temporária da
consciência a valores universais. Em certo momento é estabelecida
uma relação singular entre as chamadas vidas interna e externa.
Contudo, tal
definição de “valores universais”, vinda de um autor que
defendeu até a eugenia, é controversa, pois não os vemos
destituídos de seus relacionados “valores morais” como ditados
pelos dogmas religiosos de todos os tempos. Se com “valores
universais” se quer dizer os ditados pelo instinto biológico de
sobrevivência, reduzimos a moral a apenas isso. Como, então,
definir valores universais?
Uma outra definição
é dada por Renato Mayol no site STUM
(https://www.somostodosum.com.br/clube/artigos/autoconhecimento/a-experiencia-mistica-34007.html):
“A experiência mística é a comunhão com a própria fonte do
conhecimento e a consequente expansão da consciência, sendo que o
indivíduo sabe que ficou sabendo, porém, não tem como explicar
exatamente o que se passou para isso acontecer e dificilmente pode
transmitir o que de transcendental ficou sabendo.”
Este argumento diz,
de forma rasa, que numa experiência mística o indivíduo acessa “A”
fonte (universal?) de conhecimento, sabe, sabe que sabe, não pode
explicar o que sabe, mas não pode transmitir o que sabe. Neste caso,
para que serve o que, supostamente, ele sabe, e a tal fonte de
conhecimento?
O que deve ficar
claro numa definição viável de “experiência mística” é o
que realmente acontece, e se acontece unicamente na mente ou possui
um deflagrador ou gatilho fora dela. Não há consenso a esse
respeito.
Carlos Alberto
Tinoco, em seu livro “Bases Neurofisiológicas das
Experiências Místicas” (Editora do Conhecimento: 2017),
define experiência mística do seguinte modo:
“Experiência
mística, religiosa, transcendental é a experiência do êxtase
vivida por místicos, santos, pessoas comuns e ateus em todos os
tempos e lugares. Há inúmeros registros desse fenômeno ao longo da
história do Ocidente ao Oriente. A literatura sagrada do judaísmo,
cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo e de outras religiões
registra a presença de pessoas de várias idades e sexo que viveram
esse tipo de experiência.”
Sim, religiosos e
ateus são sujeitos a tais experiências. Parece ser algo ao qual o
ser humano está naturalmente sujeito, de algum modo.
Os Siddhis ou
Poderes Ocultos
Contrariamente ao
que pensam muitos neurocientistas, que atribuem todo o fenômeno
místico à atividade neuronal, tradições religiosas, como o
budismo mahayana, que possui linhagens bastante místicas, ainda que
ensinem que realmente tudo acontece na mente, não duvidam dos
potenciais místicos escondidos na mente humana, potenciais chamados
na literatura budista e indiana em geral como “siddhis”, as
perfeições ou poderes ocultos. Como veremos, eles correspondem
exatamente ao que chamados de capacidades ou habilidades paranormais.
O Oxford
Dictionaries define como sendo Siddhi
(https://en.oxforddictionaries.com/definition/siddhi):
“1. Compreensão
e iluminação completas.
2. Um poder
paranormal possuído por um “siddha” [um iogue que desenvolve
tais poderes].”
Vale a pena ler a
definição de “siddhi” no verbete de mesmo nome na Wikipédia em
Inglês (https://en.wikipedia.org/wiki/Siddhi).
Ali se afirma que siddhi é um “poder milagroso transmitido nos
últimos estágios de meditação intensa”. Em Páli o termo
siddhi se diz “iddhi” e é assim citado na literatura budista
mais antiga. Também se diz que os poderes psíquicos chamados
“siddhis” são “poderes espirituais, paranormais, sobrenaturais
ou mesmo mágicos, habilidades e realizações que constituem os
produtos do avanço espiritual com sadhanas (práticas) como
meditação e yoga.
Etimologicamente, o
termo “siddhi” vem do Sânscrito e se traduz como “perfeição”,
“consumação”, “realização” ou “sucesso”. Entre as
habilidades dos antigos mestres orientais que são consideradas
siddhi, estão a de voar pelos ares, transpor paredes sólidas,
afundar no chão, andar sobre as águas e até a habilidade de
transmutar um elemento em outro (terra em ar, por exemplo).
No Xivaísmo (onde
se cultua Shiva), se diz que os siddhis são poderes extraordinários
da alma, desenvolvidos através de meditação consistente e de
concentração estrita (tapas), ou mesmo despertados naturalmente
através da maturidade espiritual de um iogue.
Para os xivaítas,
estes poderes são, classicamente, oito: reduzir o corpo ao tamanho
de um átomo (anima), expandir o corpo para um tamanho muito grande
(mahima), tornar-se infinitamente pesado (garima), tornar-se muito
leve (laghima), ir aonde se queira (prāpti), realizar o que quer que
se queira (prakamya), supremacia sobre a natureza (ishitva) e
controle sobre as forças naturais (vashitva).
Na verdade, a maior
parte das experiências místicas está longe de qualquer um destes
oito poderes, mas muitas pessoas relatam a sensação de serem muito
pequenas, grandes, pesadas, leves e até de conseguir ir a lugares
apenas com o pensamento quando experimentam estados místicos de
consciência.
No Vixenuísmo (onde
se cultua Vishnu), os principais siddhis são cinco: conhecer o
passado, o presente e o futuro (trikalajnatvam); tolerar calor, frio
e outras adversidades (advandvam); conhecer a mente dos outros (para
citta adi abhijnata); verificar a influência do fogo, sol, água,
veneno, etc. (agni arka ambu visha adinam pratishtambhah); tornar-se
invencível pelos outros (aparajayah).
Os dez siddhis
secundários no Vixenuísmo, são: ser imperturbável diante da fome,
sede e outros apetites corporais (anurmimattvam); ouvir sons muito
distantes (durashravana); ver coisas muito distantes (duradarshanam);
teletransportação e projeção astral (manojavah); assumir qualquer
forma desejada (kamarupam); entrar no corpo de outros (parakaya
praveshanam); morrer apenas quando desejar (svachanda mrityuh);
testemunhar e participar das atividades dos deuses, seus passatempos
(devanam saha krida anudarshanam); perfeita realização do desejo de
alguém (yatha sankalpa samsiddhiḥ); ordens e comandos desimpedidos
(ajnapratihata gatih).
Segundo Patanjali em
seu Yoga Sutras, há cinco meios pelos quais se pode atingir os
siddhis: através do renascimento (em condições favoráveis, por
bom carma), pelo uso de certas ervas (alucinógenas?), por
encantamento (mantras), por autodisciplina e pelo samadhi meditativo.
No Budismo
Vajrayana, um desenvolvimento tântrico a partir do Mahayana, os
siddhis se referem especificamente à aquisição de poderes ocultos
na mente do praticante através de meios mágicos ou a suposta
faculdade assim adquirida. Estes poderes incluem habilidades como
clarividência, levitação, bilocação, tornar-se tão pequeno
quanto um átomo, materialização e acesso às lembranças de vidas
passadas.
A Yogapedia
(https://www.yogapedia.com/definition/5172/siddhi)
diz que: “Siddhis são geralmente poderes para controlar a si,
aos outros e ao mundo natural. É dito que, ainda que sejam
considerados sobrenaturais, eles são, na realidade, acessíveis a
todos os seres humanos e podem ser explicados por meios racionais.
Eles surgem naturalmente quando, pelas práticas espirituais, o vazio
e a abertura da mente são realizados.”
Estados Místicos
de Consciência (EMC)
No ótimo artigo “A
Experiência Mística entre a Psicologia e a Metafísica”
(http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/viewFile/6203/5729),
o Doutor em Filosofia Pablo Enrique Abraham Zunino afirma que o
misticismo admite graus, e discorre sobre os tipos de estados
místico, mais especificamente chamados de EMC – Estados Místicos
de Consciência:
“(…) o
místico não é um ser de outra natureza, capaz de perceber um mundo
completamente inapreensível para os demais mortais comuns, mas sim
um ser que desenvolve o sentimento místico, isto é, a abertura para
uma pluralidade de eventos profundamente significativos que sugerem a
possibilidade de uma realidade e de uma experiência mais
abrangentes.
Um primeiro grau
de misticismo pode ser encontrado em nossas próprias vidas, naqueles
eventos simples que nos fazem sentir em conexão com a totalidade do
universo: o enigma oculto nos versos de um poema, por exemplo, pode
dar lugar a uma experiência desse tipo. Ainda no plano da nossa vida
ordinária, a sensação de leveza e até certa alegria passageira
que acompanha o consumo de bebidas alcoólicas, pode ter uma
significação mística, evidentemente, muito mais acentuada naqueles
casos em que se tem visões ou alucinações. E a vida religiosa, por
sua vez, representa o mais alto grau de misticismo, incorporado nas
diferentes práticas religiosas do mundo: o ioga da Índia, o
budismo, o sufismo e o misticismo cristão. Com efeito, a experiência
religiosa pessoal tem sua raiz e centro nos estados místicos de
consciência (EMC). (…)
Para circunscrever melhor o tema, distinguimos os quatro
traços fundamentais dos EMC:
1)
Inefabilidade: sentido negativo. Uma descrição adequada do seu
conteúdo não pode ser dada em palavras; sua qualidade deve ser
diretamente experimentada; trata-se de estados de sentimento;
comparação com o ouvido musical daquele que sabe apreciar uma
sinfonia. Também se compara o EMC ao estado daquele que está
apaixonado, pois só quem esteve apaixonado consegue compreender esse
estado mental.
2) Qualidade
noética: Além de serem “estados de sentimento”, os EMC são
também “estados de conhecimento” na forma de insights sobre as
profundezas da verdade que não podem ser sondadas por meio do
intelecto discursivo. Iluminações, revelações, cheias de
significância e importância que sempre carregam algum sentido de
autoridade.
3)
Transitoriedade: uma ou duas horas parece ser o limite de duração
dos EMC, embora seu desenvolvimento possa ser contínuo no que diz
respeito à riqueza interior.
4)
Passividade: Se bem que o advento dos EMC pode ser propiciado por
meio de certas operações voluntárias preliminares (fixando a
atenção, por exemplo); quando esse tipo de consciência se
manifesta ‘o místico sente como se sua própria vontade ficasse
suspendida, e na verdade às vezes como se ele fosse segurado e
possuído por um poder superior’ (James, 2002, p.381).”
A partir deste
trecho podemos definir melhor a experiência mística como: o
acesso a um estado de consciência de caráter sensorial, em que
impera o sentimento (e não o raciocínio), no qual o conhecimento
surge apenas por insight não-linguístico (por
isso, é difícil transmiti-lo), de duração transitória
(muitas vezes não mais que poucos segundos) e no
qual o eu ou a identidade do self permanece em suspenso, bem como a
capacidade de volição.
Características
das experiências místicas
As principais
características da experiência mística, no entendimento de Pierre
Weill (Antologia do Êxtase. São Paulo: Palas Athena, 1993), são:
“- a
vivência do espaço como abertura do Ser;
- a vivência
de uma luz intensa;
- o caráter
inefável: não há palavras para traduzir sua beleza, poder e a
natureza;
- o caráter
imediato e súbito: a experiência ‘acontece’ no momento em que
menos se espera;
- a dissolução
de toda espécie de dualidade: sujeito-objeto, interior-exterior,
bem-mal, verdadeiro-falso, sagrado-profano, relativo-absoluto, etc.;
- a dissolução
das três dimensões do tempo e a tomada de seu valor relativo ligado
ao caráter discriminativo do pensamento e da memória;
- a
inexistência de um eu ou ego;
-
manifestações de ordem parapsicológica acompanham a vivência ou
se manifestam posteriormente a ela (…);
- vivências
regressivas (…) de fases da vida passada (…);
- a convicção
de ter vivido a ‘realidade’ tal como ela é;
- mudanças de
sistema de valores e de comportamento posterior;
- perda do
medo da morte.”
Conforme Tinoco (em
“Bases Neurofisiológicas das Experiências Místicas”):
“As
experiências místicas podem vir acompanhadas de efeitos físicos,
como curas paranormais, levitação de objetos e outros tipos de
fenômenos que contrariam as leis físicas conhecidas. Visões,
audições, toques e odores paranormais também são experiências
místicas. As mais importantes são as dos êxtases dos santos,
iogues e místicos.
(…) Os seres
humanos estão sujeitos a vivenciar experiências religiosas ou
místicas se expostos às seguintes situações:
- aplicação de
campos magnéticos de baixa intensidade nos lobos temporais;
- parto;
- orações;
- compaixão
profunda;
- prática de
caridade de modo continuado;
- prática de
hatha yoga;
- prática
regular de meditação;
- ingestão de
substâncias psicoativas que não causem dependência (substâncias
enteógenas);
- rituais de
iniciação espiritual;
- entoação de
mantras;
- devoção
profunda;
- relações
sexuais;
- paternidade;
- quase-morte
[EQM – experiência de quase-morte];
- trabalhos
espirituais sob orientação de mestre espiritual (guru);
- falta de
oxigenação no cérebro;
- choque
elétrico.”
A partir desta
lista, podemos nos perguntar o que de real existe nas experiências
místicas. Se hiperoxigenação, choques elétricos e campos
magnéticos podem induzir esses estados, há algo no cérebro que é
“ligado” através desses estímulos? O mesmo acontece quando se
experimenta certas drogas e enteógenos como a ayahuasca? E, qual o
risco que isso oferece? O quanto isso interfere na experiência? É
tudo um misto de estímulo de partes do cérebro, sugestão,
autossugestão, histeria, devoção extrema, fanatismo e alucinação
ou pode haver algo mais consistente em casos que não se encaixem em
nenhuma dessas conclusões?
Na verdade, a mente
humana possui potenciais desconhecidos, potenciais que recém começam
a ser analisados pelas neurociências. A Psicologia não foi
suficiente para abrir a caixa de Pandora dos poderes ocultos da
mente, e as neurociências fazem a próxima tentativa. Já se provou
a relação de certos estados de consciência durante a meditação
ou durante o uso de substâncias psicoativas e enteógenos com a
atividade neuronal. Estímulos em certas partes do cérebro geram
espontaneamente alucinações. Seria essa a explicação para os
estados místicos? Não cremos que isso responda a todos os casos.
Somente quem teve
uma experiência mística profunda sabe como parece real. Para uma
mente que pensa ter um self ela é bem real e tem implicações que
interferem, a posteriori, no desenvolvimento do indivíduo como
pessoa no mundo e na sociedade. Então, definitivamente, algo
acontece, pois algo se experimenta, algo se percebe e um insight é
acessado relativamente a algum tipo de conhecimento não-linguístico
ainda hoje da mesma forma que parece ter sido acessado há milhares
de anos, no período pré-histórico, época dos primeiros xamãs da
humanidade. Talvez, então, estejamos tratando de uma capacidade da
mente humana que sempre nos influenciou, mas que a cultura moderna
não aceita como natural, reprimindo sua manifestação.
Se você teve ou tem
alguma experiência que se encaixa em algo do que leu aqui, saiba que
todas as pessoas, em algum momento da vida, passa por experiências
desse tipo. Mas, devido ao ceticismo, ao medo do ridículo ou, por
outro lado, por uma crença limitante que vê isso como demoníaco, a
maioria das pessoas esconde tais experiências. É algo muito íntimo,
do qual a pessoa se torna convicta. E, ser confrontada pelo
preconceito de outros parece uma heresia diante da maravilha que é
sentir-se una com o todo de um modo inexplicável.
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