sexta-feira, 21 de junho de 2019

Como reconhecer uma experiência mística

Por Paulo Stekel


Uma questão de definição precisa

O que é uma “experiência mística”? Uma experiência não-dual é uma experiência mística? É o que buscaremos responder neste artigo.

No verbete “experiência religiosa”, a Wikipédia define experiência mística da seguinte forma:

Experiência religiosa, experiência mística ou experiência espiritual é uma experiência subjetiva em que um indivíduo tem um encontro ou uma união com uma entidade divina, ou diz ter tido contato com uma realidade transcendental. Muitas tradições religiosas e místicas veem a experiência religiosa como um encontro direto com Deus, deuses ou contato com outras realidades (1) e a visão científica normalmente afirma que a experiência religiosa é uma experiência normal do cérebro humano que evoluiu em algum momento durante o curso da evolução do cérebro (2).”

Esta definição foi construída em cima das obras de dois britânicos com visões antagônicas: (1) o especialista em Teologia Filosófica Richard Swinburne, e (2) o etólogo, biólogo evolutivo e famoso escritor Richard Dawkins.

Estas duas visões antagônicas sobre o fenômeno místico discordam sobre o QUE está sendo vivenciado, mas nenhuma delas discorda que a experiência é REAL para quem a descreve. Contudo, para os adeptos da teologia, há uma realidade transcendental vivenciada pelas testemunhas, seja lá como ela possa ser definida. O neurocientista dos EUA, Sam Harris (autor de “Despertar – um guia para a espiritualidade sem religião”, Companhia das Letras: 2015) diz que estas experiências são vivenciadas em todo o mundo e por pessoas de várias religiões ou nenhuma, mas as crenças pessoais interferem na interpretação de tais experiências. Os neurocientistas mais radicais dizem que todas as experiências místicas acontecem dentro do cérebro, e não possuem uma realidade fora dele. Neste caso, excluem a possibilidade de realidade dos fenômenos paranormais e de uma relação entre o que se vivencia na mente e uma energia externa de interação. Mas, será que esta é a melhor forma de considerar estas experiências?

No livro “A Dança da Vida” (The Dance of Life, 1923), do escritor, médico e psicólogo britânico Henry Havelock Ellis (1859-1939), a experiência mística é considerada uma extensão temporária da consciência a valores universais. Em certo momento é estabelecida uma relação singular entre as chamadas vidas interna e externa.

Contudo, tal definição de “valores universais”, vinda de um autor que defendeu até a eugenia, é controversa, pois não os vemos destituídos de seus relacionados “valores morais” como ditados pelos dogmas religiosos de todos os tempos. Se com “valores universais” se quer dizer os ditados pelo instinto biológico de sobrevivência, reduzimos a moral a apenas isso. Como, então, definir valores universais?

Uma outra definição é dada por Renato Mayol no site STUM (https://www.somostodosum.com.br/clube/artigos/autoconhecimento/a-experiencia-mistica-34007.html): “A experiência mística é a comunhão com a própria fonte do conhecimento e a consequente expansão da consciência, sendo que o indivíduo sabe que ficou sabendo, porém, não tem como explicar exatamente o que se passou para isso acontecer e dificilmente pode transmitir o que de transcendental ficou sabendo.”

Este argumento diz, de forma rasa, que numa experiência mística o indivíduo acessa “A” fonte (universal?) de conhecimento, sabe, sabe que sabe, não pode explicar o que sabe, mas não pode transmitir o que sabe. Neste caso, para que serve o que, supostamente, ele sabe, e a tal fonte de conhecimento?

O que deve ficar claro numa definição viável de “experiência mística” é o que realmente acontece, e se acontece unicamente na mente ou possui um deflagrador ou gatilho fora dela. Não há consenso a esse respeito.

Carlos Alberto Tinoco, em seu livro “Bases Neurofisiológicas das Experiências Místicas” (Editora do Conhecimento: 2017), define experiência mística do seguinte modo:

Experiência mística, religiosa, transcendental é a experiência do êxtase vivida por místicos, santos, pessoas comuns e ateus em todos os tempos e lugares. Há inúmeros registros desse fenômeno ao longo da história do Ocidente ao Oriente. A literatura sagrada do judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo e de outras religiões registra a presença de pessoas de várias idades e sexo que viveram esse tipo de experiência.”

Sim, religiosos e ateus são sujeitos a tais experiências. Parece ser algo ao qual o ser humano está naturalmente sujeito, de algum modo.

Os Siddhis ou Poderes Ocultos

Contrariamente ao que pensam muitos neurocientistas, que atribuem todo o fenômeno místico à atividade neuronal, tradições religiosas, como o budismo mahayana, que possui linhagens bastante místicas, ainda que ensinem que realmente tudo acontece na mente, não duvidam dos potenciais místicos escondidos na mente humana, potenciais chamados na literatura budista e indiana em geral como “siddhis”, as perfeições ou poderes ocultos. Como veremos, eles correspondem exatamente ao que chamados de capacidades ou habilidades paranormais.

O Oxford Dictionaries define como sendo Siddhi (https://en.oxforddictionaries.com/definition/siddhi):

1. Compreensão e iluminação completas.
2. Um poder paranormal possuído por um “siddha” [um iogue que desenvolve tais poderes].”

Vale a pena ler a definição de “siddhi” no verbete de mesmo nome na Wikipédia em Inglês (https://en.wikipedia.org/wiki/Siddhi). Ali se afirma que siddhi é um “poder milagroso transmitido nos últimos estágios de meditação intensa”. Em Páli o termo siddhi se diz “iddhi” e é assim citado na literatura budista mais antiga. Também se diz que os poderes psíquicos chamados “siddhis” são “poderes espirituais, paranormais, sobrenaturais ou mesmo mágicos, habilidades e realizações que constituem os produtos do avanço espiritual com sadhanas (práticas) como meditação e yoga.

Etimologicamente, o termo “siddhi” vem do Sânscrito e se traduz como “perfeição”, “consumação”, “realização” ou “sucesso”. Entre as habilidades dos antigos mestres orientais que são consideradas siddhi, estão a de voar pelos ares, transpor paredes sólidas, afundar no chão, andar sobre as águas e até a habilidade de transmutar um elemento em outro (terra em ar, por exemplo).

No Xivaísmo (onde se cultua Shiva), se diz que os siddhis são poderes extraordinários da alma, desenvolvidos através de meditação consistente e de concentração estrita (tapas), ou mesmo despertados naturalmente através da maturidade espiritual de um iogue.

Para os xivaítas, estes poderes são, classicamente, oito: reduzir o corpo ao tamanho de um átomo (anima), expandir o corpo para um tamanho muito grande (mahima), tornar-se infinitamente pesado (garima), tornar-se muito leve (laghima), ir aonde se queira (prāpti), realizar o que quer que se queira (prakamya), supremacia sobre a natureza (ishitva) e controle sobre as forças naturais (vashitva).

Na verdade, a maior parte das experiências místicas está longe de qualquer um destes oito poderes, mas muitas pessoas relatam a sensação de serem muito pequenas, grandes, pesadas, leves e até de conseguir ir a lugares apenas com o pensamento quando experimentam estados místicos de consciência.

No Vixenuísmo (onde se cultua Vishnu), os principais siddhis são cinco: conhecer o passado, o presente e o futuro (trikalajnatvam); tolerar calor, frio e outras adversidades (advandvam); conhecer a mente dos outros (para citta adi abhijnata); verificar a influência do fogo, sol, água, veneno, etc. (agni arka ambu visha adinam pratishtambhah); tornar-se invencível pelos outros (aparajayah).

Os dez siddhis secundários no Vixenuísmo, são: ser imperturbável diante da fome, sede e outros apetites corporais (anurmimattvam); ouvir sons muito distantes (durashravana); ver coisas muito distantes (duradarshanam); teletransportação e projeção astral (manojavah); assumir qualquer forma desejada (kamarupam); entrar no corpo de outros (parakaya praveshanam); morrer apenas quando desejar (svachanda mrityuh); testemunhar e participar das atividades dos deuses, seus passatempos (devanam saha krida anudarshanam); perfeita realização do desejo de alguém (yatha sankalpa samsiddhiḥ); ordens e comandos desimpedidos (ajnapratihata gatih).

Segundo Patanjali em seu Yoga Sutras, há cinco meios pelos quais se pode atingir os siddhis: através do renascimento (em condições favoráveis, por bom carma), pelo uso de certas ervas (alucinógenas?), por encantamento (mantras), por autodisciplina e pelo samadhi meditativo.

No Budismo Vajrayana, um desenvolvimento tântrico a partir do Mahayana, os siddhis se referem especificamente à aquisição de poderes ocultos na mente do praticante através de meios mágicos ou a suposta faculdade assim adquirida. Estes poderes incluem habilidades como clarividência, levitação, bilocação, tornar-se tão pequeno quanto um átomo, materialização e acesso às lembranças de vidas passadas.

A Yogapedia (https://www.yogapedia.com/definition/5172/siddhi) diz que: “Siddhis são geralmente poderes para controlar a si, aos outros e ao mundo natural. É dito que, ainda que sejam considerados sobrenaturais, eles são, na realidade, acessíveis a todos os seres humanos e podem ser explicados por meios racionais. Eles surgem naturalmente quando, pelas práticas espirituais, o vazio e a abertura da mente são realizados.”

Estados Místicos de Consciência (EMC)

No ótimo artigo “A Experiência Mística entre a Psicologia e a Metafísica” (http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/viewFile/6203/5729), o Doutor em Filosofia Pablo Enrique Abraham Zunino afirma que o misticismo admite graus, e discorre sobre os tipos de estados místico, mais especificamente chamados de EMC – Estados Místicos de Consciência:

(…) o místico não é um ser de outra natureza, capaz de perceber um mundo completamente inapreensível para os demais mortais comuns, mas sim um ser que desenvolve o sentimento místico, isto é, a abertura para uma pluralidade de eventos profundamente significativos que sugerem a possibilidade de uma realidade e de uma experiência mais abrangentes.

Um primeiro grau de misticismo pode ser encontrado em nossas próprias vidas, naqueles eventos simples que nos fazem sentir em conexão com a totalidade do universo: o enigma oculto nos versos de um poema, por exemplo, pode dar lugar a uma experiência desse tipo. Ainda no plano da nossa vida ordinária, a sensação de leveza e até certa alegria passageira que acompanha o consumo de bebidas alcoólicas, pode ter uma significação mística, evidentemente, muito mais acentuada naqueles casos em que se tem visões ou alucinações. E a vida religiosa, por sua vez, representa o mais alto grau de misticismo, incorporado nas diferentes práticas religiosas do mundo: o ioga da Índia, o budismo, o sufismo e o misticismo cristão. Com efeito, a experiência religiosa pessoal tem sua raiz e centro nos estados místicos de consciência (EMC). (…) Para circunscrever melhor o tema, distinguimos os quatro traços fundamentais dos EMC:

1) Inefabilidade: sentido negativo. Uma descrição adequada do seu conteúdo não pode ser dada em palavras; sua qualidade deve ser diretamente experimentada; trata-se de estados de sentimento; comparação com o ouvido musical daquele que sabe apreciar uma sinfonia. Também se compara o EMC ao estado daquele que está apaixonado, pois só quem esteve apaixonado consegue compreender esse estado mental.

2) Qualidade noética: Além de serem “estados de sentimento”, os EMC são também “estados de conhecimento” na forma de insights sobre as profundezas da verdade que não podem ser sondadas por meio do intelecto discursivo. Iluminações, revelações, cheias de significância e importância que sempre carregam algum sentido de autoridade.

3) Transitoriedade: uma ou duas horas parece ser o limite de duração dos EMC, embora seu desenvolvimento possa ser contínuo no que diz respeito à riqueza interior.

4) Passividade: Se bem que o advento dos EMC pode ser propiciado por meio de certas operações voluntárias preliminares (fixando a atenção, por exemplo); quando esse tipo de consciência se manifesta ‘o místico sente como se sua própria vontade ficasse suspendida, e na verdade às vezes como se ele fosse segurado e possuído por um poder superior’ (James, 2002, p.381).”

A partir deste trecho podemos definir melhor a experiência mística como: o acesso a um estado de consciência de caráter sensorial, em que impera o sentimento (e não o raciocínio), no qual o conhecimento surge apenas por insight não-linguístico (por isso, é difícil transmiti-lo), de duração transitória (muitas vezes não mais que poucos segundos) e no qual o eu ou a identidade do self permanece em suspenso, bem como a capacidade de volição.

Características das experiências místicas

As principais características da experiência mística, no entendimento de Pierre Weill (Antologia do Êxtase. São Paulo: Palas Athena, 1993), são:

- a vivência do espaço como abertura do Ser;
- a vivência de uma luz intensa;
- o caráter inefável: não há palavras para traduzir sua beleza, poder e a natureza;
- o caráter imediato e súbito: a experiência ‘acontece’ no momento em que menos se espera;
- a dissolução de toda espécie de dualidade: sujeito-objeto, interior-exterior, bem-mal, verdadeiro-falso, sagrado-profano, relativo-absoluto, etc.;
- a dissolução das três dimensões do tempo e a tomada de seu valor relativo ligado ao caráter discriminativo do pensamento e da memória;
- a inexistência de um eu ou ego;
- manifestações de ordem parapsicológica acompanham a vivência ou se manifestam posteriormente a ela (…);
- vivências regressivas (…) de fases da vida passada (…);
- a convicção de ter vivido a ‘realidade’ tal como ela é;
- mudanças de sistema de valores e de comportamento posterior;
- perda do medo da morte.”

Conforme Tinoco (em “Bases Neurofisiológicas das Experiências Místicas”):

As experiências místicas podem vir acompanhadas de efeitos físicos, como curas paranormais, levitação de objetos e outros tipos de fenômenos que contrariam as leis físicas conhecidas. Visões, audições, toques e odores paranormais também são experiências místicas. As mais importantes são as dos êxtases dos santos, iogues e místicos.

(…) Os seres humanos estão sujeitos a vivenciar experiências religiosas ou místicas se expostos às seguintes situações:

- aplicação de campos magnéticos de baixa intensidade nos lobos temporais;
- parto;
- orações;
- compaixão profunda;
- prática de caridade de modo continuado;
- prática de hatha yoga;
- prática regular de meditação;
- ingestão de substâncias psicoativas que não causem dependência (substâncias enteógenas);
- rituais de iniciação espiritual;
- entoação de mantras;
- devoção profunda;
- relações sexuais;
- paternidade;
- quase-morte [EQM – experiência de quase-morte];
- trabalhos espirituais sob orientação de mestre espiritual (guru);
- falta de oxigenação no cérebro;
- choque elétrico.”

A partir desta lista, podemos nos perguntar o que de real existe nas experiências místicas. Se hiperoxigenação, choques elétricos e campos magnéticos podem induzir esses estados, há algo no cérebro que é “ligado” através desses estímulos? O mesmo acontece quando se experimenta certas drogas e enteógenos como a ayahuasca? E, qual o risco que isso oferece? O quanto isso interfere na experiência? É tudo um misto de estímulo de partes do cérebro, sugestão, autossugestão, histeria, devoção extrema, fanatismo e alucinação ou pode haver algo mais consistente em casos que não se encaixem em nenhuma dessas conclusões?

Na verdade, a mente humana possui potenciais desconhecidos, potenciais que recém começam a ser analisados pelas neurociências. A Psicologia não foi suficiente para abrir a caixa de Pandora dos poderes ocultos da mente, e as neurociências fazem a próxima tentativa. Já se provou a relação de certos estados de consciência durante a meditação ou durante o uso de substâncias psicoativas e enteógenos com a atividade neuronal. Estímulos em certas partes do cérebro geram espontaneamente alucinações. Seria essa a explicação para os estados místicos? Não cremos que isso responda a todos os casos.

Somente quem teve uma experiência mística profunda sabe como parece real. Para uma mente que pensa ter um self ela é bem real e tem implicações que interferem, a posteriori, no desenvolvimento do indivíduo como pessoa no mundo e na sociedade. Então, definitivamente, algo acontece, pois algo se experimenta, algo se percebe e um insight é acessado relativamente a algum tipo de conhecimento não-linguístico ainda hoje da mesma forma que parece ter sido acessado há milhares de anos, no período pré-histórico, época dos primeiros xamãs da humanidade. Talvez, então, estejamos tratando de uma capacidade da mente humana que sempre nos influenciou, mas que a cultura moderna não aceita como natural, reprimindo sua manifestação.

Se você teve ou tem alguma experiência que se encaixa em algo do que leu aqui, saiba que todas as pessoas, em algum momento da vida, passa por experiências desse tipo. Mas, devido ao ceticismo, ao medo do ridículo ou, por outro lado, por uma crença limitante que vê isso como demoníaco, a maioria das pessoas esconde tais experiências. É algo muito íntimo, do qual a pessoa se torna convicta. E, ser confrontada pelo preconceito de outros parece uma heresia diante da maravilha que é sentir-se una com o todo de um modo inexplicável.

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