terça-feira, 28 de abril de 2020

Cinco Hipóteses para a Consciência

Por Paulo Stekel


https://youtu.be/UR2ArBfkP8M

Vlog 004 de "Ciência Espiritual", o novo vlog de Paulo Stekel, postado em seu canal no Youtube (youtube.com/paulostekel) e no Watch do Facebook em sua página de fãs Stekel (facebook.com/canalpaulostekel). Confira!

Neste quarto vlog, Stekel fala sobre Consciência, delineando as cinco principais hipóteses existentes para explicá-la, baseado no seu ensaio postado há pouco no Stekelblogue, intitulado "Um Inventário da Consciência" (leia o ensaio completo em: http://stekelblogue.blogspot.com/2020/04/um-inventario-da-consciencia.html

As cinco hipóteses para a consciência analisadas por Stekel neste vídeo, são:

- Hipótese materialista
- Hipótese metafísica
- Hipótese sistêmica
- Hipótese neurometafísica
- Hipótese neurometafísica sistêmica

O ensaio "Um Inventário da Consciência" foi escrito para ser material de estudo para grupos espirituais, sistêmicos, metafísicos e para todos os interessados em temas como mente, cognição e consciência. Este vídeo lhe serve como um complemento.

O vlog traz uma seleção de fotos e vídeos de UFOs de várias épocas e, no final, trechos de um contatado supostamente "canalizando" uma antiga escrita ET e lendo o que escreveu.

Este assunto, Ufologia, foi o mais solicitado nas sugestões enviadas pelos visualizadores do vlog por email, messenger e redes sociais em geral, nos últimos dias.

Confira os três vlogs já lançados:

Vlog 001 - A Busca da Verdade

https://www.youtube.com/watch?v=J5BgUbh5n2M&t=1s

Vlog 002 - Nosso Lado Sombrio

https://www.youtube.com/watch?v=Q3TKQCaEXUo&t=145s

Vlog 003 - Ufologia Interdimensional

https://www.youtube.com/watch?v=YYjJwnTYo38&t=101s


Música de abertura composta e produzida por Stekel
(ouça músicas de Stekel em https://www.reverbnation.com/stekelmusic/songs)

Vlog Ciência Espiritual é uma playlist do canal de Paulo Stekel no youtube e Facebook dedicada a Ciência, Espiritualidade, Religião, Filosofia, Arte, Cultura e Visão Sistêmica. Comentários sobre livros, artigos e filmes serão comuns neste novo vlog.

ENVIE suas perguntas, dúvidas, comentários e sugestões de tema para os próximos vídeos para o email pstekel@gmail.com

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Um Inventário da Consciência

Por Paulo Stekel


1 - Introdução

O que é Consciência? Ainda que a resposta pareça óbvia para qualquer pessoa que já tenha estado ou visto alguém inconsciente, não é tão simples assim. Nem cientistas, nem filósofos e nem mesmo as espiritualidades do mundo entram em consenso quanto ao que sejam coisas como mente e consciência. A grande verdade é que só podemos entender consciência a partir de seus efeitos, de sua fenomenologia. Mas, isso não significa que os efeitos, o modo como o fenômeno se nos aparece, seja “a” consciência em si. Para uns, ela é o efeito, o produto, o epifenômeno da atividade neuronal. Para outros, é a emergência de um sistema inteiro – o corpo. Para outros, vem de fora do cérebro, de um não-local ou de um “Campo A”, como propõe Ervin Laszlo.

Estudo o tema mente e consciência, que se encaixa no que se chama “filosofia do espírito” ou “filosofia da mente” e, mais recentemente, “filosofia da consciência”, há muitos anos. Uma de minhas primeiras influências no começo deste estudo foi o físico americano nascido na Grécia Menas Kafatos (se você lê em inglês, confira seu interessante website: https://www.menaskafatos.com), do qual li o livro “Consciência e Cosmos”, publicado no Brasil pela Editora Teosófica - dados do original em inglês: Kafatos, M., and Kafatou, T. (1991) Looking In, Seeing Out: Consciousness and Cosmos, Quest Books, ISBN: 978-0835606745.

Kafatos alia física quântica, um monismo semelhante ao de Deepak Chopra e Amit Goswami, flerta com a neurociência, a Filosofia Perene e imagina o Universo como sendo consciente. Isso tem muito a ver com a teoria do Pampsiquismo, também preferida de David Chalmers, um filósofo australiano, notabilizado por seus estudos em Filosofia da mente e que cunhou a expressão “the hard problem of consciousness”, o problema difícil da consciência.

O principal livro de Chalmers (seu site em inglês: http://consc.net/), “The Conscious Mind” (1996), é considerado no meio científico e filosófico como sendo um trabalho essencial sobre a consciência e sua relação com o dilema mente-corpo na filosofia da mente. Ele afirma que todas as formas de Fisicalismo (reducionista ou não), que dominam a filosofia e ciência modernas não são suficientes para provar a existência (a presença na realidade) da consciência em si. Por isso, propõe uma alternativa dualista (mas que também poderia ser caracterizada por formulações mais tradicionais, como dualismo de propriedades, monismo neutro, ou teoria do duplo aspecto). Também é um defensor do Pampsiquismo, a visão de que a mente ou um aspecto semelhante a ela é uma característica fundamental e onipresente da realidade.

Muitos pampsiquistas atuais sustentam que a senciência ou a experiência subjetiva é onipresente, embora distanciam essas qualidades dos complexos atributos mentais humanos. Contudo, atribuem uma forma primitiva de mentalidade a entidades no nível fundamental da física, mas não a atribuem à maioria dos agregados, como rochas ou edifícios. Por outro lado, alguns teóricos históricos imputaram atributos como vida ou espírito a todas as entidades, o que é contestado por Steve Taylor, um psicólogo transpessoal britânico que, para contrapôr-se a esta ideia, cunhou outro termo: Panespiritismo (ou Panspiritismo). Confira seu interessante site em inglês: http://www.stevenmtaylor.com/.

A ideia deste artigo é apresentar as principais hipóteses envolvendo a pesquisa científica, filosófica e espiritual sobre a mente e a consciência. Apresento aqui uma classificação em cinco hipóteses principais, com suas variações. Como cheguei a esta lista? Na verdade, baseado nas centenas de livros que li em minha vida sobre o tema. Ao longo de décadas fui mudando minhas posições sobre o assunto, e a noção desta classificação foi se formando naturalmente.

Mas, para facilitar o entendimento da classificação a seguir, é necessário apresentarmos algumas definições importantes. Dois tipos de definições nos interessam. As duas primeiras são a diferença entre Pampsiquismo e Panespiritismo. O segundo tipo são as definições de três conceitos que permearão as cinco hipóteses apresentadas na sequência: Teísmo/Ateísmo, Alma-Espírito e Reencarnação/Renascimento.

2 - Pampsiquismo e Panespiritismo

Já expliquei em outro artigo as diferenças entre as duas noções, e as reproduzo a seguir.

No que se refere ao Pampsiquismo, é importante a pesquisa do neurocientista Christof Koch, especialista em estados de consciência, que em 2013 foi à Índia discutir por um dia inteiro o tema com monges budistas ligados ao Dalai Lama. Reproduzo alguns trechos do artigo https://mindmatters.pt/2016/05/14/neurocientistas-e-budistas-de-acordo-a-consciencia-esta-em-toda-a-parte/ sobre a pesquisa de Koch:

O pampsiquismo, a ideia de uma consciência universal, é um pensamento relevante presente em alguns ramos da filosofia da Grécia antiga, do paganismo e do budismo. Até recentemente, vinha sendo largamente desvalorizado pela ciência moderna.

No seu trabalho sobre consciência, Koch colaborou com o pesquisador Giuliu Tononi. Tononi é o pai da teoria da consciência mais aceita atualmente, a chamada Teoria da Informação Integrada (TII), à qual Koch se referiu uma vez como sendo ‘a única teoria fundamental da consciência que é verdadeiramente promissora.’

A teoria de Toroni defende que a consciência apresenta-se em sistemas físicos que contêm muitas partes diferentes de informação altamente interligadas. Baseado nesta premissa, a consciência pode ser mensurada como uma quantidade teórica, a que os cientistas chamaram de phi.

(…) Existe já uma necessidade prática premente para encontrar uma forma de medir a consciência. Médicos e cientistas poderão usar o phi para saber se uma pessoa em estado vegetativo está efetivamente morta, qual o estado de consciência de uma pessoa demente, quando é que o feto desenvolve consciência, qual o grau de percepção dos animais ou, até mesmo, se um computador é capaz de sentir.

(…) A TII casa igualmente esta aplicação prática com ideias muito profundas. A teoria diz que qualquer objeto com um phi maior do que zero tem consciência. Isto significa que animais, plantas, células, bactérias e se calhar ate os prótons são seres conscientes.

(…) O budismo associa a mente à senciência. O falecido Traleg Kyabgon Rinpoche declarou, uma vez, que enquanto a mente, junto com os objetos, é vazia, é porém, ao contrário deles, luminosa. Com sinal semelhante, a TII afirma que a consciência é uma qualidade intrínseca a tudo, porém apenas se revela de forma significativa em determinadas condições – no mesmo sentido como tudo é possuidor de massa, mas apenas objetos maiores possuem gravidade perceptível.

(…) Christof Koch, o qual começou a interessar-se pelo budismo durante os seus tempos de faculdade, diz que a sua visão do mundo é coincidente com os ensinamentos budistas sobre o ‘não eu’, impermanência, ateísmo e pampsiquismo.

(…) No Mosteiro de Drepung, o Dalai Lama disse a Christof Koch que Buda ensinou que a senciência está em todos os lugares a vários níveis e que os humanos devem ter compaixão por com todos os seres sencientes. Até aquele momento, Koch ainda não se havia apercebido do peso desta filosofia.”

A ideia de um “universo consciente” é pampsiquista. É como se tudo tivesse consciência. Contudo, Steve Taylor, em seu livro ainda não traduzido, “Spiritual Science”, faz uma bela diferença entre Pampsiquismo e o que ele chama de Panspiritism (podemos traduzir por “Panespiritismo” ou mesmo “Panspiritismo”) – todos os trechos do livro de Taylor neste artigo foram traduzidos por Paulo Stekel:

Eu chamo essa perspectiva de panespiritismo. Literalmente, ‘pan’ significa ‘tudo’ ou ‘todo’, então panespiritismo literalmente significa ‘todo-espírito’ ou ‘tudo é espírito’. Isso é semelhante a outra abordagem filosófica, chamada pampsiquismo (que literalmente significa ‘tudo-mente’). No entanto, existem algumas diferenças significativas. O pampsiquismo sugere que as partículas mais básicas da matéria têm alguma forma de ser interior e alguma forma de experiência; não concebe uma força espiritual que permeia todas as coisas, incluindo o espaço vazio. O panespiritismo sugere que a força espiritual permeia todas as coisas, mas não necessariamente que as imbui em uma vida interior. (Na minha opinião… alguma forma de consciência ou sensibilidade e experiência só surge com as primeiras formas de vida simples.)”

Esta é uma diferença crucial. Esta “força espiritual” que permeia a tudo é compatível com a ideia de Campo A (ou “akáshico”), criada pelo cosmologista húngaro Ervin Laszlo. Este campo permeia tudo, mas não necessariamente equivale a dizer que há uma vida interior em tudo. Para Laszlo, a principal qualidade do Campo A é informação. É isto que ele transmite. Então, consciência é um processo um nível acima do informacional. A confusão entre Pampsiquismo e Panespiritismo estaria exatamente aí: para um panespiritista, a informação é um estágio subjacente ao estágio de consciência, sendo que este último não se manifesta em tudo. Para os pampsiquistas, informação e consciência permearia a tudo. É uma diferença importante de se entender. A visão sistêmica será um argumento que utilizaremos adiante para justificar a hipótese panespiritista de emergência a partir de níveis, evitando o nivelamento do pampsiquismo.

Para esclarecer de vez a diferença entre os dois conceitos, Taylor, em “Spiritual Science”, diz, flertando com a visão sistêmica:

(…) uma das principais diferenças entre panespiritismo e pampsiquismo é que o primeiro não sugere que todas as coisas tenham sua própria mente ou ser interior e, portanto, sua própria experiência. Minha opinião é que, embora a força espiritual esteja em todas as coisas, nem todas as coisas têm seu espírito individual. Ou, para ser mais claro, embora a consciência esteja em todas as coisas, nem todas as coisas são conscientes. Ou seja, nem todas as coisas têm sua própria consciência individualizada. Somente as estruturas - começando pelas células - que possuem a complexidade e a forma organizacional necessárias para receber e canalizar a consciência são individualmente conscientes e individualmente vivas. Na minha opinião, esta é a função principal das células: facilitar a canalização da força espiritual em seres individuais. Uma célula atua como um ‘receptor’ da consciência, de modo que até uma ameba tem seu próprio tipo muito rudimentar de psique e, portanto, é individualmente viva. E à medida que os seres vivos se tornam mais complexos - à medida que suas células aumentam em número e se organizam de maneira mais complexa - eles se tornam capazes de ‘receber’ mais consciência. A essência bruta da consciência é canalizada de maneira mais poderosa através deles, e eles se tornam mais intensamente vivos, com mais autonomia, mais liberdade e uma percepção mais intensa da realidade. É por isso que os seres humanos, com cérebros incrivelmente complexos e intrincados, são um dos seres mais conscientes (talvez ao lado de golfinhos e baleias) que a evolução já desenvolveu.

No entanto, as formas mais simples de matéria, que não possuem células, não são capazes de canalizar a consciência e, portanto, não são conscientes ou vivas individualmente. Formas simples de matéria não têm interior e não são capazes de experiência ou sensação. Estes só emergem no nível celular e acima.

De certo modo, todas as coisas estão vivas, como muitos povos indígenas acreditam, uma vez que são permeadas pela consciência ou força espiritual. Mas há uma diferença na maneira como as rochas e os rios estão vivos e na maneira como um inseto ou até uma ameba estão vivos.
Rochas e rios não têm sua própria psique e, portanto, não têm consciência individual. A consciência os invade, mas eles não são conscientes. Não podem, porque não possuem células - e muito menos cérebros ou sistemas nervosos - para canalizar a consciência.

Portanto, existe uma distinção entre
seres conscientes individuais e a consciência como um todo. Os seres individuais ainda existem, com células ou cérebros que canalizam a força espiritual onipresente para eles em diferentes graus. Há uma distinção entre coisas materiais, que são permeadas de força espiritual (sem ter suas próprias mentes interiores) e seres vivos, que são permeadas de força espiritual e também têm sua própria mente ou consciência interior.

A força do espírito, portanto, se manifesta de duas maneiras: como matéria e mente. Você poderia dizer que a matéria é a manifestação externa do espírito, enquanto a mente é sua manifestação interna. Toda matéria é a manifestação do espírito, mas algumas formas complexas da matéria também têm o espírito como uma qualidade interna. Outra maneira de encarar isso é pensar em termos de dois estágios diferentes. O primeiro estágio, no início do universo, 13,7 bilhões de anos atrás, foi o surgimento da matéria fora do espírito. O segundo estágio, que ocorreu cerca de nove bilhões de anos depois, foi o surgimento da mente na matéria, que começou com as primeiras formas de vida simples. (Pelo menos, esse processo começou na Terra nove bilhões de anos depois - pelo que sabemos, pode ter acontecido anteriormente em outros planetas.)”

Este último parágrafo invoca, nitidamente, as ideias da visão sistêmica defendida por Fritjof Capra e outros.

3 - Deus, Espírito e Renascimento

Todas as cinco hipóteses para a consciência analisadas no próximo tópico dependem muito de como cada uma considera três conceitos comuns às religiões, espiritualidade e filosofias de todos os tempos: Deus, Espírito e Renascimento.

Comecemos com o conceito de “Deus”. As hipóteses a se analisar adiante consideram este princípio de modo positivo (Teísmo), negativo (Ateísmo) ou neutro (Não-teísmo). A ciência cartesiana tem como base um ateísmo, religiões abraâmicas são teístas e outras, como o budismo e o taoismo, podem ser consideradas não-teístas.

Steve Taylor, em “Spiritual Science”, argumenta claramente sobre a noção de Deus nas filosofias religiosas:

Nas tradições contemplativas associadas às religiões monoteístas do judaísmo, cristianismo e islamismo, a força espiritual costumava ser associada a Deus. Nessas tradições, Deus não era interpretado como um ser pessoal que negligencia o mundo e controla seus eventos, mas como uma energia ou força espiritual impessoal e sem forma que irradia por toda a criação, trazendo todas as coisas para a unidade. Também irradia através da alma humana, de modo que somos essencialmente um com Deus. Os místicos cristãos se referiam à força espiritual como a ‘divindade’ ou ‘escuridão divina’. No misticismo judaico da Cabala, isso era chamado en sof - literalmente, ‘sem fim’.

Certamente há alguma variação entre esses conceitos devido aos conceitos dos sistemas religiosos ou metafísicos aos quais eles estavam associados. (Por exemplo, o
Tao é mais dinâmico e tangível que o Brahman, e nas tradições monoteístas a força espiritual é geralmente vista como transcendente e imanente.) No entanto, a similaridade essencial dos conceitos - e sua similaridade com os conceitos de espírito-força dos povos indígenas, e com os conceitos gregos antigos de pneuma e anima mundi - é muito impressionante. Parece que estamos lidando com uma qualidade fundamental do mundo que pode ser percebida diretamente. A qualidade pode ser interpretada de maneira um pouco diferente, da perspectiva de diferentes tradições, da mesma maneira que, digamos, uma paisagem pode ser descrita diferentemente por pessoas que a olham de diferentes pontos de vista. Nas palavras do monge cristão e hindu Bede Griffiths: ‘Este é o grande Dao [Tao]... É o nirguna brahman... É o dharmakaya do Buda, o ‘corpo da realidade’... É o de Plotino que está além da Mente (o Nous) e só pode ser conhecido em êxtase. Em termos cristãos, é o abismo da Divindade, a ‘escuridão divina’ de Dionísio, que ‘excede toda a existência’ e não pode ser nomeada, da qual as Pessoas da Divindade são as manifestações.”

Aqui, algumas coisas parecem ter sido misturadas por Taylor, evidenciando uma tendência ao Perenialismo (saiba o que é: http://dicionario.sensagent.com/perenialismo/pt-pt/), algo que me parece forçado filosoficamente falando. Reconheço publicamente que não sou guenonista, apesar de saber que dizer isso enfurece os fãs de René Guénon. Já fui fã da teosofia de Blavatsky, mas hoje isso é passado, e retenho pouca coisa daquela fase. Descarto tanto o Perenialismo evidente de Frithjof Schuon quanto o velado de Ken Wilber.

Voltando à citação de Taylor, temos que entender a diferença entre a visão imanentista e a visão transcendentalista de Deus.

O Transcendentalismo ao qual nos referimos não é apenas o chamado “transcendentalismo kantiano”, mas o conceito utilizado em filosofia religiosa como uma doutrina filosófica e religiosa norte-americana, difundida especialmente pelo poeta Ralph Waldo Emerson (1803-1882), conhecida como “transcendentalismo estadunidense”, que prega a existência de um estado espiritual transcendendo o físico e estabelecendo a possibilidade de se perceber o empírico por meio de uma sábia consciência intuitiva. Por extensão, acaba sendo qualquer doutrina que adota métodos como intuição, fé ou revelação, por transcenderem a razão e o empirismo do conhecimento humano, e é este último sentido que nos interessa aqui. Nesta visão, “Deus”, como entendido pelas religiões abraâmicas e outras, é um “algo”, na verdade, um Ser, que transcende a realidade material e só pode ser percebido pela intuição ou por meios espirituais e invisíveis, não mensuráveis cientificamente.

O Imanentismo, por outro lado, em filosofia e teologia, se refere a qualquer doutrina que postula a existência de uma divindade imanente em todo o Universo criado, inclusive nos indivíduos. Ou seja, um “Deus” que permeia a tudo, não separado do mundo material, como pensam os transcendentalistas. O imanentismo teológico e metafísico sustenta que Deus abrange ou se manifesta no mundo material, e Deus, mente ou espírito abstrato pervade o mundo. Giordano Bruno era imanentista evidente.

Então, podemos falar em um Deus Imanentista (integrado, que permeia toda a realidade, material e espiritual) e um Deus Transcendentalista (separado, que transcende a realidade material, pertencendo a uma realidade espiritual). O Deus Transcendentalista é dualista, enquanto o Imanentista é panteísta, sistêmico, engajado na realidade total. Escolha sua visão de Deus no balcão de oportunidades!

Agora, o conceito de “Espírito”. Seu principal significado se refere à energia vital que se manifesta no corpo físico. Mas, a palavra “espírito” é muitas vezes usada pela metafísica para se referir à consciência ou à personalidade. Às vezes, “espírito” se confunde com “alma” - o espírito num ser vivente (a distinção entre alma e espírito só ocorreu com a atual terminologia judaico-cristã), é entendido como “fantasma” e ainda como a manifestação energética de um falecido (conceito comum no Espiritismo). Por fim, o termo ainda se refere a qualquer entidade incorpórea ou imaterial (demônios, divindades, deidades, etc.), em vários contextos religiosos e espirituais.
Não podemos ignorar, sob pena de erros crassos, que a palavra espírito é usada em dois contextos, o metafísico e o metafórico. Em filosofia, espírito é o conjunto total das faculdades intelectuais; em religião e filosofia espiritualista, é um princípio ou essência da vida incorpórea; em neurociências, é um princípio material (conjunto de leis da física que geram nosso sistema nervoso); em psicologia, é a atitude mental dominante de uma pessoa ou de um grupo; para a espiritologia (ou “psicologia espiritual”), é o corpo psíquico, que entra em contato com a quarta dimensão (ou Mundo Astral), onde não existem problemas de espaço ou tempo; para o espiritismo codificado por Kardec, é o princípio inteligente do Universo que, quando encarnado, é chamado de alma, mas sendo alma e espírito essencialmente a mesma coisa, e que quando reencarna para se aperfeiçoar, mantém a personalidade e as características individuais; em Teosofia, é associado aos dois princípios mais elevados do Homem, o Atman-Buddhi, a essência imortal do Homem. Escolha, então, sua visão de “espírito” para efeito das hipóteses que seguirão em breve.

Por fim, o conceito de “Reencarnação” e de “Renascimento”. Por que a diferença? Simples! O conceito de “reencarnação” é relacionado às doutrinas que acreditam num espírito como algo separado do corpo, uma essência que reencarna, que adentra um corpo, múltiplas vezes ao longo da eternidade. É o caso do espiritismo e do hinduísmo. O conceito de “renascimento” é relacionado a doutrinas que não acreditam num espírito como uma essência transcendente que migra de vida a vida, mas só concebe um continuum mental de consciência que anima novos corpos. É o caso da visão budista. Esta ideia de continuum mental do budismo é muitas vezes difícil de se entender, mas encontro paralelos com a teoria do Campo A de Ervin Laszlo e, um pouco de longe, com a teoria da Mente Una do Dr. Larry Dossey.

Seja reencarnação ou renascimento, ambas as doutrinas se valem do conceito de “karma” (ação) e de seus “frutos” ou resultados (karma e vipaka), também chamado de “lei de causa e efeito” por alguns, como forma de justificar a necessidade de um retorno ao mundo físico. Escolha, então, se você acha que retorna ou não da próxima vez!

4 – Cinco Hipóteses para a Consciência

Depois de introduzidos todos os conceitos necessários, agora podemos passear pelas hipóteses que temos disponíveis até aqui para explicar o fenômeno da Consciência, em suas várias implicações. Importante esclarecer que muitas vezes a palavra “consciência” se permuta com “mente” e “espírito”. As tradições espirituais preferem a palavra “espírito”, a filosofia prefere “mente” e as neurociências, sejam materialistas ou espiritualistas, preferem o termo “consciência”. Como esclareci no início, as cinco hipóteses apresentadas aqui são o produto de décadas de estudo sobre o tema. São o resultado de centenas de leituras em áreas das mais diversas, como ciências, neurociências, inteligência artificial, religiões, tradições espirituais, filosofia, física, cosmologia, espiritualismo, teoria dos sistemas, visão sistêmica, teoria integral e nova espiritualidade, dentre outras. São elas:

A – Hipótese Materialista

Filosoficamente, materialismo é o fisicalismo que sustenta que a única coisa da qual se pode afirmar a existência é a matéria. Para um filósofo ou um cientista materialista, absolutamente todas as coisas são compostas de matéria e todos os fenômenos são o resultado de interações materiais. A matéria é a única substância aceita.

Esta ideia se opõe quase frontalmente ao idealismo e, de modo absolutamente frontal, à metafísica. Quando o assunto é a mente, o pensamento e a consciência, a oposição é clara. Para o materialismo científico de Marx e Engels, o pensamento se relaciona a fatos puramente materiais (essencialmente mecânicos) ou constituem um epifenômeno.

Uma nota importante sobre a palavra “epifenômeno” se faz necessária. Epifenômeno é a condição de alguma coisa “sobre” ou “acima” do fenômeno, derivando de uma causa primária, sendo seu produto direto. A visão epifenomênica da neurociência diz que a “mente” é produzida por algum fenômeno, que neste caso, deduz serem os processos cerebrais o “fenômeno da mente”. Então, nesta teoria, a mente é um epifenômeno das atividades cerebrais. Isso difere da corrente neurocientífica “espiritual” e da espiritualidade em geral, que afirma que a mente é um fenômeno por si mesmo, independente do cérebro, a razão única ou causa de si mesma, sendo ela que manifesta o que chamamos de “consciência”.

A hipótese materialista para a mente e a consciência é a da Ciência Cartesiana e da maior parte dos neurocientistas atuais. Dois exemplos são Frank Amthor e Richard Dawkins. É uma hipótese totalmente ateia, evolucionista, não-reencarnacionista, onde não há lugar para o “espírito”. A mente e a consciência seriam processos resultantes da atividade dos neurônios, nada mais.

A principal provocação que se pode fazer à hipótese materialista é a proposta por David Chalmers. Para ele, existe o “problema fácil da consciência” e o “problema difícil da consciência”. Steve Taylor, em “Spiritual Science”, explica:

Em termos mais contemporâneos, essa questão pode ser enquadrada em termos de como a consciência emerge do cérebro. David Chalmers refere-se a isso como o ‘problema difícil’ - o problema de como a massa cinzenta e encharcada de matéria que chamamos de cérebro dá origem à riqueza e variedade de nossa experiência consciente. Segundo Chalmers, é altamente improvável que alguma vez possamos explicar a consciência em termos neurológicos. Como resultado, devemos procurar uma explicação alternativa, que é porque, como a consciência ‘não parece derivável das leis físicas’, ela deve ser ‘considerada uma característica fundamental, irredutível a algo mais básico’. Chalmers salienta que os físicos do século XIX perceberam que os fenômenos eletromagnéticos não podiam ser explicados em termos do conhecimento atual e, portanto, introduziram o princípio da carga eletromagnética como uma qualidade fundamental do universo. E o mesmo deve se aplicar à consciência. Como não pode ser explicada em termos das teorias atuais e não é redutível a nenhuma outra qualidade no universo, deve ser vista como uma qualidade fundamental. Segundo Chalmers, os físicos não serão capazes de desenvolver uma ‘teoria de tudo’ coerente até que levem em conta a consciência como uma qualidade fundamental.

O que Taylor e Laszlo chamam de qualidade fundamental da consciência no universo, a visão sistêmica de Capra e de outros chama de aspecto emergente da consciência a partir de sistemas mais complexos.

Steve Taylor apresenta em “Spiritual Science” uma ótima contestação da visão materialista da consciência como produto do cérebro, base da hipótese materialista, que também poderíamos chamar de “neuromaterialista”:

(...) o filósofo escocês Donald MacKay sugeriu que a consciência está relacionada a interações entre a camada cortical e outras camadas mais profundas do cérebro; o neurocientista Rodney Cotterill sugeriu que o local da consciência é o cingulado anterior, enquanto V.S. Ramachandran - um dos neurocientistas mais eminentes de todos - sugeriu que o ‘circuito’ da consciência reside tanto nos lobos temporais quanto em parte do lobos frontais chamados giro cingulado.

(…) Quando existe tão pouco consenso nas explicações, isso sugere que a suposição causal subjacente às explicações (neste caso, o cérebro produz consciência) é duvidosa. De fato, a ideia de que a consciência provém de uma área específica do cérebro agora foi largamente descartada pelos teóricos, em favor da visão de que a consciência é de alguma forma gerada pelo cérebro como um todo. Como afirmou o neurocientista Giulio Tononi, “a consciência está associada a um sistema neural distribuído: não existe uma área única onde tudo se reúna”. Mas ainda ninguém apresentou uma teoria viável de como todo o cérebro pode produzir consciência.

(…) muitos filósofos sugeriram que a própria suposição de que o cérebro produz consciência deveria ser abandonada. Se você segurasse um cérebro na mão, descobriria que é um amontoado de massa cinzenta, um pouco parecido com massa de vidraceiro e quase tão pesado quanto um saco de farinha. Como é possível que esse material cinza encharcado possa dar origem à riqueza e profundidade de sua experiência consciente? Essa presunção é um ‘erro de categoria’. A matéria física do cérebro - não importa quão complicadas sejam as interações entre as células - pertence a uma categoria de substância, e os qualia não-físicos de experiências conscientes pertencem a outra, de modo que como ela pode ser explicada em termos da primeira?

(…) Alguns filósofos sugeriram que a consciência é uma propriedade ‘emergente’, que naturalmente surge quando a matéria atinge um certo nível de complexidade. No entanto, isso é apenas uma descrição e não uma explicação. Como ninguém foi capaz de explicar como a consciência pode emergir da matéria, é apenas uma reafirmação do problema. E, em qualquer caso, quando uma propriedade emerge dos componentes mais básicos de um sistema, essa propriedade é normalmente inerente a esses componentes e pode ser deduzida deles. Mas não há nada na experiência consciente que seja relacionado às coisas físicas do cérebro.

(…) O filósofo australiano David Chalmers se referiu a isso como o ‘problema difícil[orig. hard problem]. Na opinião de Chalmers, existem alguns aspectos da relação entre atividade cognitiva e atividade cerebral que psicólogos e neurocientistas entendem bastante bem. Por exemplo, temos uma ideia bastante boa das funções cerebrais envolvidas na memória, atenção e processamento de informações. Mas esses são apenas - na terminologia de Chalmers - os ‘problemas fáceis’[orig. easy problems]. O problema de como o cérebro pode dar origem à consciência está em uma escala completamente diferente. O ‘problema difícil’ pode não ser solúvel.

Isso também foi descrito como a ‘
lacuna explicativa [orig. explanatory gap]. Mesmo se, de alguma forma, conseguimos identificar com precisão as redes neurais associadas à consciência, o que isso nos diria? Ainda haveria um abismo entre as coisas físicas do cérebro e a riqueza da experiência consciente. (...) Como Christof Koch, explicando por que duvidou das explicações neurológicas de consciência, colocou: (…) a consciência é ‘inerente ao design do universo’.

David Chalmers ilustrou isso com seu conceito de “zumbi”. Imagine que há uma versão zumbi de você que se parece exatamente, fala exatamente e se comporta exatamente como você, e só é diferente de você por não ter experiência consciente. É exatamente o mesmo que você, exceto que não existe um eu que reflita e experimente
sensações por dentro. Não há ninguém para pensar no que você está fazendo, comentar sobre sua experiência ou tomar planos ou decisões. Chalmers acredita que, hipoteticamente, essa versão zumbi de você poderia sobreviver no mundo. Você poderia funcionar perfeitamente bem no mundo sem experiência consciente. E não há nada na sua forma física que exija experiência consciente. Isso significa que a consciência é ‘algo extra’, algo além do material físico de nossos cérebros e corpos que não pode ser reduzido a eles.

Esta “consciência zumbi” de Chalmers só seria possível em Inteligência Artificial, e seria algo muito diferente do que entendemos por consciência. Por causa deste argumento, muitos especialistas em Inteligência Artificial e filósofos da mente duvidam que algum dia máquinas possam apresentar uma consciência como a nossa ou mesmo superior. Eu mesmo, duvido muito!

B – Hipótese Metafísica

Também pode ser chamada de “hipótese vitalista” ou “hipótese espiritualista” (definição inicial que havia escolhido para esta segunda hipótese), abarcando espiritualistas, espíritas, reencarnacionistas e quem acredita na noção de “alma” e “espírito”. Na verdade, a hipótese metafísica pode ter várias correntes sobrepostas: teísta, ateísta, não-teísta; reencarnacionista, não-reencarnacionista; imanentista, transcendentalista, etc. A mescla pode resultar em até duas dezenas de vertentes. Algumas serão evolucionistas, outras não.

A palavra “vitalista” aqui se refere à crença dos expoentes desta hipótese em um princípio vital, que anima os seres, um princípio energético ou um poder que pode ser sentido, transmitido e recebido por outro ser. Neste sentido, são vitalistas todas as práticas espíritas, xamânicas e animistas da humanidade. Têm como característica quase generalizada a crença em Deus (ou deuses) e um “espírito” (desde a ideia de energia até a de entidades). Para esta hipótese, a mente e a consciência seriam algo “fora” do complexo neural (do corpo) a animá-lo (por isso “vitalista”).

Um bom exemplo aqui é o Dr. Sérgio Filipe de Oliveira (um cientista espírita brasileiro). Na verdade, existem muitos “neurocientistas espiritualistas” ou “espíritas” que se encaixariam perfeitamente nesta hipótese. Muitos pesquisadores ligados ao movimento antigamente chamado de “new age”, a terapias complementares, medicina integrativa e à física associada à espiritualidade também apresentam ideias que se conectam a esta hipótese.

Taylor, em “Spiritual Science”: Na forma mais antiga do budismo - geralmente chamada de budismo Theravada - não há um conceito aberto de força espiritual (embora alguns estudiosos tenham sugerido que shunyata - geralmente traduzido como ‘vazio’ - possa ser interpretado dessa maneira). No entanto, no budismo Mahayana (que se desenvolveu um pouco mais tarde que o Theravada), existe o conceito de dharmakaya, que é semelhante ao Brahman. Dharmakaya é a realidade subjacente do universo, da qual todas as coisas emergem e na qual todas as coisas são uma. Como o professor budista D. T. Suzuki o descreveu, o dharmakaya tem qualidades de ‘amor que engloba e inteligência onisciente’ e iluminação significa realizar o dharmakaya dentro de nosso próprio ser.”

Esta noção colocaria o budismo mahayana próximo da hipótese metafísica, mas creio que não é o caso, como veremos mais adiante.

Mas, qual o problema com a hipótese metafísica do modo como exposto aqui? A ideia de que a consciência seria algo externo ao complexo neural, uma força vital com existência independente não resiste a algumas investigações neurocientíficas. Isso significa que os dois lados possuem explicações incompletas. Não se pode negar que a consciência tem “relação” com os processos neurais, embora isso não signifique que o cérebro gere a consciência a partir de sua neuroquímica e bioeletricidade. Por outro lado, não se pode negar que a consciência é mais do que neuroquímica e bioeletricidade, como afirmam os metafísicos, embora isso não signifique que haja uma força independente da qual o cérebro é só um retransmissor ou um captador. É necessária uma harmonização entre as duas ideias, o que parece tarefa para a próxima hipótese.

C – Hipótese Sistêmica

Vem da “Visão Sistêmica”, que pertence ao chamado “Pensamento Sistêmico” (um componente do paradigma emergente), que é uma forma de abordagem da realidade que surgiu no século XX, e que se contrapõe ao mecanicismo reducionista e materialista. Não nega a racionalidade científica, mas acredita que ela não oferece parâmetros suficientes para a humanidade e a descrição do universo material.

As deflagradoras do pensamento sistêmico foram coisas como a complexidade da mecânica quântica (que tornou o universo de Newton defasado), as novas ideias da biologia sobre a vida (Maturana, Varela, Sheldrake e Lovelock) e inovações na medicina e nas ciências humanas. Ou seja, a interdisciplinaridade é uma das bases do pensamento sistêmico.

A partir disto, a “Visão sistêmica” consiste na habilidade em compreender os sistemas de acordo com a Teoria Geral dos Sistemas (Bertalanffy), ou seja, ter o conhecimento do todo, de modo a permitir a análise ou a interferência no mesmo. Capra diz que o que hoje convém chamar de “visão sistêmica” era antes conhecido por “visão holística”. Holístico e sistêmico, neste sentido, são sinônimos. Significa ver as ligações de fatos particulares do sistema como um todo.

E, como é visto um sistema nesta visão? Como algo composto por partes, com todas as partes do sistema se relacionando de forma direta ou indireta, limitado pelo ponto de vista do observador, podendo abrigar outro sistema e vinculado ao tempo e espaço.

O que a hipótese sistêmica propõe para a consciência é que ela é uma emergência do processo biológico que chamamos de “vida”. Porém, a visão sistêmica de vida se baseia na teoria da autopoiese de Maturana e Varela, segundo a qual os seres vivos têm a capacidade natural de produzir a si próprios. Segundo esta teoria, um ser vivo é um sistema autopoiético, e, como sistema autônomo, está constantemente se autoproduzindo, autorregulando, e sempre mantendo interações com o meio, onde este apenas desencadeia no ser vivo mudanças determinadas em sua própria estrutura, e não por um agente externo.

É uma visão não-vitalista, evolucionista (biologica e socialmente falando) e não-reencarnacionista. Poderia também ser chamada de “Hipótese Neurossistêmica”, porque não se opõe a algumas noções das neurociências. A hipótese sistêmica defende a ideia de que a vida se autoproduz, se autorregula e se complexifica, sem a necessidade de um Deus Criador. Capra afirma isso em seus livros. A consciência seria uma propriedade universal, mas existente em vários níveis de complexidade. Seria o resultado do sistema, uma emergência dele, um conceito alternativo mais amplo que o de epifenômeno na hipótese materialista.

Dois bons exemplos de teóricos sistêmicos são Ludwig von Bertalanfffy, autor de Teoria geral dos sistemas” e Fritjof Capra, autor, dentre outros, de “O Ponto de Mutação” e do recente e ótimo “Visão Sistêmica da Vida” (Cultrix), escrito em parceria com Pier Luigi Luisi. Geralmente a hipótese sistêmica é ateia, não-reencarnacionista e sem lugar para o “espírito”. A mente e a consciência seriam produto do conjunto, do sistema, sendo uma propriedade “emergente”. A fenomenologia se encaixaria aqui. A forma como a “Constelação Familiar”, desenvolvida do falecido Bert Hellinger, encara o fenômeno humano da mente, da consciência individual e da consciência familiar (social, coletiva) depende das ideias desta terceira hipótese que apresentamos.

A visão sistêmica seria, no entender de Steve Taylor, uma espécie de “pós-materialismo”. Ele diz em “Spiritual Science” que: “(… ) a validade do materialismo está desaparecendo e que, como cultura, estamos nos movendo (lentamente) em direção a uma nova fase ‘pós-materialista’.” Por não ser vitalista, mas também não ser materialismo cartesiano, a visão sistêmica bem merece essa alcunha. Taylor ainda diz, sobre o pampsiquismo e o panespiritismo que: Ambas são abordagens ‘pós-materialistas’ no sentido de que não acreditam que a matéria seja a realidade principal do mundo e que os fenômenos mentais podem ser reduzidos à atividade cerebral. Ambas as perspectivas propõem que o espírito ou a mente é um aspecto essencial do universo e não pode ser explicado em termos materiais. Ambos também sugerem que o universo é fundamentalmente vivo e sensível, em vez de mecanicista e inerte.”

Se a visão materialista propõe que a consciência é um epifenômeno da atividade neuronal e a visão metafísica propõe que ela tem uma fonte, um “espírito” fora do corpo, a visão sistêmica propõe que a consciência é uma emergência, o resultado de conexões entre vários sistemas que compõem o organismo (átomos, moléculas, células, órgãos, sistemas, até o corpo como um todo). Tenho a sensação que o que estas três primeiras hipóteses dizem da consciência que: ela não é nada, a não ser processos; ela é algo fora do corpo; ela não é meramente processos, mas emergência a partir de processos que, inclusive, se retroalimentam.

E, qual o problema com a hipótese sistêmica? Ela contesta o epifenômeno, mas não vai além das emergências. Não as explica e nem como elas tendem a ocorrer. A autopoiese é uma constatação fenomenológica, mas não uma explicação sobre os fundamentos. Isso cabe à próxima hipótese.

D – Hipótese Neurometafísica

A hipótese dos neurocientistas espiritualistas. Sim, eles existem. Um bom exemplo é o neurocientista cognitivo canadense Mario Beauregard (1962 - ), conhecido por argumentar que a matéria não é tudo o que existe e que a estrutura materialista não é ciência”. Por isso, ele afirma que a mente e o cérebro devem ser entidades fundamentalmente separadas. Isso torna a hipótese “neurometafísica”, que também podemos chamar de “neuro-espiritual”, algo dualista, pois reacende a dualidade mente-corpo. Também poderíamos chamá-la de “hipótese neurovitalista” pelo mesmo motivo. Beauregard invoca a necessidade de uma “neurociência espiritual”, inclusive.

Beauregard escreveu vários livros, incluindo “O cérebro espiritual: uma explicação neurocientífica para a existência da alma” (Best Seller, 2010), em coautoria com Denyse O'Leary, e publicado originalmente em inglês, em 2007. Também publicou “Brain Wars: The Scientific Battle Over the Existence of the Mind and the Proof That Will Change the Way We Live Our Lives” (sem tradução para o Português), em 2012. Neste livro, ele afirma que a mente e o cérebro são fundamentalmente distintos um do outro. Entre os argumentos que apoiam sua visão, estão os efeitos que os pensamentos e crenças de uma pessoa podem ter no curso de doenças como câncer e Mal de Parkinson.

Em “O Cérebro Espiritual”, ele afirma: “O cérebro, contudo, não é a mente; é um órgão apropriado para ligar a mente ao restante do universo. (…) o universo é de cima para baixo, não de baixo para cima. A mente vem primeiro e cria a matéria. Não é a matéria que vem primeiro e cria a mente.”

Esta afirmação o faz ser acusado de flertar com a teoria do planejamento ou design inteligente (Intelligent Design), que nada mais é que um teísmo criacionista velado. Beauregard é nitidamente teísta (ou, pelo menos, deísta) e não-sistêmico em sua neurometafísica. O seguinte trecho evidencia isso:

(…) os estudos neurocientíficos das experiências de fé não devem questionar a própria fé. Pode-se interpretar o fato de o cérebro humano ter um substrato neurológico que lhe permite experimentar um estado espiritual como dom de um criador divino ou, se preferirem, como contato com a natureza essencial ou propósito do universo.”

A hipótese materialista não vê propósito no universo. A metafísica vê. A sistêmica, não. A neurometafísica, sim.

A hipótese de Beauregard se chama tecnicamente de “hipótese da tradução psiconeural”. Segundo ele: “Ela postula que a mente (o mundo psicológico, a perspectiva da primeira pessoa) e o cérebro (que faz parte do chamado mundo ‘material’, a perspectiva da terceira pessoa) representam dois domínios diferentes em termos epistemológicos que podem interagir porque são aspectos complementares da mesma realidade transcendental.”

É, portanto, uma hipótese teísta, transcendentalista, perenialista (ele afirma isso no livro!) e um dualismo relativo, por se propor complementar, como a noção onda-partícula em física quântica. Beauregard só deve escapar de ser partidário do design inteligente porque, em algum momento do livro, diz claramente que não duvida do evolucionismo.

O caso de David Chalmers é um pouco diferente. “The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory” (A Mente Consciente: em busca de uma Teoria Fundamental) é seu livro publicado em 1996. Nesta obra, Chalmers apresenta argumentos contra as teorias materialistas da consciência, e lança sua própria teoria dualista da consciência, baseada em ideias da teoria da informação de Claude Shannon, que flerta com a visão sistêmica, sem ainda constituir visão sistêmica rigorosa.

A hipótese neurometafísica é geralmente teísta ou semiteísta, evolucionista, podendo ser ou não reencarnacionista e com redefinição de “espírito”, equiparando-o a conceitos relacionados a mente e consciência. O “Pampsiquismo” defendido por David Chalmers se encaixa aqui.

Qual o problema com a hipótese neurometafísica? Provavelmente, seu dualismo.

E – Hipótese Neurometafísica Sistêmica

A inclusão de uma visão sistêmica na hipótese neurometafísica agrega a ela a noção de emergência, permitindo resolver o problema da hipótese anterior: o dualismo. Se a consciência for considerada um processo emergente E complementar, resolvemos o paradoxo da dualidade.

Esta última hipótese também poderia ser chamada de “hipótese neurovitalista sistêmica” ou “neurossistêmica espiritual”. Harmoniza ideias da neurociência materialista, da espiritualidade, da visão sistêmica, da filosofia integral, etc. Bons exemplos de expoentes desta hipótese são: o filósofo da ciência, teórico de sistemas e pensador integral Ervin Laszlo; o psicólogo transpessoal britânico Steve Taylor, autor do livro “Spiritual Science”, que citamos várias vezes, e criador do termo “panespiritismo”.

Ervin Laszlo afirma que já os antigos místicos e sábios têm sustentado a existência de um campo cósmico que interliga tudo nas raízes da realidade, e que conserva e transmite informação. Ele chama este campo de Campo A (de “akáshico”), um campo conhecido como registro akáshico, que é integral e sistemicamente complementar com o que ele chama de Campo M (de “manifesto”), a realidade que experimentamos no quotidiano. Para Laszlo, esse Campo A consiste num mar sutil de energias flutuantes de onde emerge tudo: átomos, galáxias, estrelas, planetas, seres vivos e a própria consciência. Esse Campo A é a constante e perene memória do universo. É um campo informacional e mantém o registro de tudo o que já aconteceu no cosmos e o relaciona a tudo o que virá-a-ser.

O que chamo de “hipótese neurometafísica sistêmica” geralmente é semi-teísta ou ateísta, evolucionista, reencarnacionista ou não e com redefinição de “espírito”, equiparando-o a conceitos relacionados a emergência, mente e consciência. A visão chamada “Panespiritismo”, proposta por Steve Taylor, se encaixa aqui.

Taylor é um dos pesquisadores mais adequados para introduzir a ideia de uma “neurometafísica sistêmica” em um trecho do final do capítulo 3 de “Spiritual Science”:

Do ponto de vista espiritual, a consciência não emerge de arranjos complexos de partículas materiais; não está localizada em certas áreas do cérebro ou é produzida por certos tipos de atividade cerebral. A consciência não emerge da matéria porque sempre esteve na matéria. A consciência é uma qualidade fundamental que existe em todo lugar e em tudo.

Da perspectiva panespiritista,
o cérebro não produz consciência, mas age como uma espécie de receptor, que transmite e canaliza a consciência universal (ou força espiritual, que é equivalente a ela) para o nosso próprio ser. Através do cérebro (não apenas o cérebro humano, mas o de qualquer outro animal), a essência crua da consciência universal é canalizada para a nossa própria consciência individual. E porque o cérebro humano é tão grande e complexo, é capaz de receber e canalizar a consciência de uma maneira muito intensa e intrincada, de modo que somos (provavelmente) mais intensos e expansivamente mais conscientes do que a maioria dos outros animais. Como o filósofo Robert Forman colocou:

A consciência é mais um campo do que um ponto localizado, um campo que transcende o corpo e, de alguma forma, interage com ele... As células cerebrais podem receber, guiar, arbitrar ou canalizar uma consciência que de alguma forma é transcendental para elas. O cérebro pode ser mais um receptor ou transformador para o campo da consciência do que seu gerador.

Como vimos, uma das razões mais óbvias para supor que o cérebro produz consciência é que a consciência pode ser prejudicada ou alterada se o cérebro estiver danificado. E quando o funcionamento do cérebro é alterado em algum grau - por exemplo, por drogas -, a consciência geralmente é afetada. No entanto, isso não invalida a explicação espiritual da consciência. Mesmo que o cérebro não produza consciência, mas a receba e transmita, qualquer dano ou alteração terá um efeito igualmente significativo. Um rádio não produz a música que passa através dele, apenas o recebe e transmite; no entanto, se o rádio estiver danificado, sua capacidade de transmitir a música será prejudicada. E se alguém alterar o controle de modulação do rádio (que é análogo ao uso de drogas) ou violar seu circuito interno, sua saída será obviamente afetada.

O panespiritismo também se encaixa bem com a suposição dos neurocientistas de que a consciência está de alguma forma associada ao cérebro como um todo (apesar de não ser claro sobre os processos envolvidos), em vez de localizada em uma parte ou padrão particular da atividade neurológica. Se o papel do cérebro não é produzir consciência, mas recebê-la e transmiti-la, esperamos que seja amplamente distribuído dessa maneira. A consciência não depende de nenhuma parte específica do cérebro; o papel de ‘receber e transmitir’ do cérebro depende de seu funcionamento como um todo integrado e inter-relacionado.

Pode-se argumentar que o panespiritismo não resolve realmente o enigma da consciência, porque não explica de onde veio a consciência. Mas, em certo sentido, não precisa fazer isso.
A consciência não vem de lugar nenhum - apenas é. Os físicos não consideram necessário tentar explicar de onde vêm o eletromagnetismo, a massa ou a gravidade - eles são apenas construídos no universo. E o mesmo pode ser verdade para a consciência ou força espiritual. (De fato, a consciência pode ser ainda mais fundamental que as forças acima, se assumirmos que ela realmente precedeu e deu origem ao universo.)

(…) De acordo com o panespiritismo, não se trata apenas de termos consciência, mas de sermos consciência. E não é uma questão de termos consciência individual, porque compartilhamos a mesma consciência. Isso significa que somos essencialmente uma parte de uma unidade maior, ao invés de indivíduos separados. Essa unidade é a fonte do altruísmo e pode ajudar a explicar alguns tipos de experiências psíquicas. Também é experimentada diretamente em algumas experiências espirituais ou místicas.”

Esta visão se aproxima de algumas ideias budistas tibetanas, especialmente a filosofia do Dzogchen (“A Grande Perfeição”), uma abordagem comum na tradição Nyingmapa do Vajrayana (budismo tibetano), que na Índia – sua origem – era conhecida pelo termo sânscrito Mahasandhi (lit. “grande completude” ou “grande união”). Na verdade, a tenho estudado, além de a praticar como um budista vajrayana formal, já a muitos anos, especialmente após uma conversa privada com um antigo amigo e que me transmitiu os primeiros ensinamentos budistas (em 1994), Alfredo Aveline, hoje conhecido como Lama Padma Samten. No final de uma prática conversávamos sobre consciência e física quântica (ele é um físico, além de mestre budista), e ele me sugeriu o seguinte: teria percebido algumas relações entre o conceito budista de Kuntunzangpo (Samantabhadra), o Buda Primordial (Adi Buddha), e a noção cabalística de Ên Sôf (ou Ain Sôf). Como eu já estudava Cabala naquela época, comecei a me aprofundar em Vajrayana, Dzogchen, Mahamudra e Não dualismo em geral. Estes estudos e resultados de minhas práticas ficaram guardados durante anos e, só recentemente, comecei a colocá-los por escrito em meus artigos. Já se vão 26 anos de pesquisa e prática!

Acredito que o não dualismo do Dzogchen, que extrapola qualquer aspecto religioso convencional, sendo espiritualidade pura, provê a base filosófica para a hipótese neurossistêmica espiritual sobre a consciência. As neurociências explicam as implicações físicas da consciência e a visão sistêmica demonstra como a consciência permeia o todo como um campo, o Campo A de Ervin Laszlo.

Comparando a Cabala com o Dzogchen, desafio original que me foi dado pelo Lama Samten, concluímos o seguinte:

Na Cabala, há o conceito de “Tsimtsum” (heb. “contração” ou “constrição”), segundo o qual no momento da Criação, Deus “contrai” sua essência infinita para permitir um “espaço conceitual” no qual um mundo finito e independente exista. O conceito é paradoxal, pois exige que Deus seja ao mesmo tempo transcendente e imanente. Ou, como sugerem rabinos não dualistas, o paradoxo só existe do nosso lado, de nossa percepção dualista. Da perspectiva divina só há unidade.

No Dzogchen, se pressupõe uma base não dual, tanto para a experiência quanto para a realidade. Mesmo não sendo uma filosofia teísta, é uma filosofia imanentista, nascida provavelmente na Índia no início da Era Cristã. O Dzogchen diz que uma consciência não dual de caráter paradoxal (Tib. rigpa; Sânsc. vidya) é o “estado de autoperfeição” de todos os seres. Isso não deve ser confundido com o monismo ensinado, por exemplo, por Amit Goswami em seu marqueiteiro “ativismo quântico”. O não dual não é imanente, nem transcendente, nem ambos. Os extremos devem ser refutados, como fez o filósofo budista Nagarjuna. Alguns dizem que o Dzogchen é um método para o reconhecimento da “pura imanência” análogo ao teorizado por Deleuze e à noção de Spinoza de que o processo da produção da vida está contido na própria vida, algo que flerta muito com a atual visão sistêmica, com Maturana e Varela.

A hipótese materialista não vê propósito no universo. A metafísica vê. A sistêmica, não. A neurometafísica, sim. A neurometafísica sistêmica vê emergência e complementaridade, levando à ideia não de “propósito deliberado e inteligente” vindo da parte de um “Ser” consciente (Deus, deuses, budas cósmicos, etc.), mas de “expressão universal por conta das propriedade originais, naturais e emergentes”, tudo em conjunto. Isso nos mostra que entender o fenômeno da mente e da consciência é bem mais complexo do que imaginamos, e que usar teorias limitadas, como o materialismo cartesiano ou mesmo as crenças meramente intuitivas das religiões e espiritualidade mais antigas, não resolve o problema. É necessário um trabalho em conjunto, em todas as frentes, para se chegar a alguma conclusão válida e com a qual se possa trabalhar para o desenvolvimento futuro da humanidade.

5 – Conclusão: Enfim, o que é Consciência?

Steve Taylor traz sua contribuição à resposta em “Spiritual Science”:

Consciência é uma dessas palavras - como ‘espiritual’ ou ‘espiritualidade’ - que é usada em tantos contextos diferentes com tantas conotações diferentes que é difícil de definir. Até estudiosos e teóricos da consciência às vezes usam o termo com significados ligeiramente diferentes.

(…) Então, o que é consciência? Uma razão pela qual é difícil de definir é porque somos nós. Somos conscientes, por isso é difícil sair de nós mesmos e observá-la como se fosse algo ‘outro’ para nós. Em vista disso, a melhor maneira de entender a consciência é mais em termos de experiência do que de definição.

(…) O primeiro aspecto [da consciência] é a nossa experiência interior de pensamentos e sensações. Os filósofos da consciência chamam essas experiências interiores de ‘qualia. No singular, um quale é uma unidade de experiência da consciência. Um quale pode ser o sabor de um tomate, uma sensação de dor quando você acidentalmente toca um fogão em brasa ou um pensamento ansioso sobre um evento futuro.

(…) parecemos ter um centro de consciência, um senso de “eu” com o qual estamos cientes de nossa própria experiência. Isso significa que não temos apenas experiência, também estamos cientes disso. Em outras palavras, essa é a parte de nós que é auto-consciente. Ela observa nossos pensamentos, observa nossas interações com outras pessoas, comenta e critica nosso comportamento, e assim por diante. Esse observador auto-consciente é um segundo aspecto da consciência.

(…) a consciência inclui nossa percepção do ambiente que a rodeia. Essa consciência trabalha através dos nossos sentidos e nos coloca em contato com o mundo fora de nós. Este é o terceiro aspecto da consciência.

(…) Em termos do primeiro aspecto - experiência interior -, o filósofo Descartes acreditava que apenas os seres humanos têm mentes (ou almas) e que os animais são apenas autômatos. Mas a maioria dos filósofos modernos seria mais cautelosa, pois é obviamente impossível saber se os animais têm alguma consciência subjetiva - ou qualia - ou não. Ao mesmo tempo, parece aparente que muitos animais têm a capacidade de sentir dor, medo e até tristeza (como quando elefantes, macacos e cavalos parecem sofrer por parentes falecidos). Obviamente, isso sugere algum grau de experiência interior.

Em termos do segundo aspecto, há evidências de que alguns animais possuem um certo grau de
autoconsciência. Vários animais - incluindo chimpanzés, bonobos, elefantes e até pombos pegas da Eurásia - passaram no ‘teste de auto-reconhecimento de espelhos’.

(…) Em termos do terceiro aspecto, podemos dizer com segurança que todos os animais têm algum grau de consciência de seu entorno. Até uma ameba unicelular se move em direção à luz e às fontes de alimento, mostrando a consciência do ambiente. E quanto mais fisicamente complexos os animais se tornam, mais demonstram consciência de seus arredores. Portanto, nesse sentido, a questão importante não é se os animais são conscientes, mas o quão conscientes são.”

Este “grau de consciência de seu entorno” que os animais teriam em algum grau, conforme Taylor, equivale ao que Capra e outros sistêmicos chamam, na verdade, de Cognição, diferenciando-a de Consciência no sentido que estamos utilizando neste ensaio. Como se pode ver, esbarramos em vários problemas, sendo um deles, e não menos relevante, o da nomenclatura e das definições. O aspecto subjetivo da mente, da inteligência, da cognição e da consciência é um dos culpados desta dificuldade.

Continuum mental, Campo A (Akáshico) e Mente Una. Estas três noções podem explicar a consciência de um modo novo. Buda, Laszlo e Dossey, três mentes brilhantes, as duas últimas separadas da primeira por 2500 anos.

O Campo A de Laszlo é um campo informacional que conecta tudo, em todos os tempos. Na verdade, da perspectiva total, o passado e o futuro não existem, mas um presente contínuo, o que se assemelha a visão de continuum mental-temporal do Dzogchen. Se a perspectiva é de nós para o Campo A (de baixo para cima), o vemos como Mente Una, Deus, Buda Primordial ou o que o valha. Se a perspectiva é do Campo A para nós (de cima para baixo), uma perspectiva que apenas seres iluminados ou pelo menos muito elevados poderiam ter, o vemos como continuum mental, como Consciência Primordial, da qual fazemos parte integralmente. É, portanto, uma mera questão de perspectiva.

A consciência seria, então, o fundamento do universo. Manifesta-se em vários níveis de complexidade, desde as cognições atômicas, moleculares e celulares, até a cognição corporal-cerebral e, mais além, como mente e consciência superior. Tudo viria da mesma origem, sistemicamente enrolada ou dobrada, implícita, usando um termo do físico David Bohm em sua teoria da Ordem Implicada. Quando nascemos, esta consciência universal ou imersa no Todo, se desenrola ou se desdobra nos diversos sistemas que constituem o universo físico. Quando morremos, esta consciência se enrola novamente, se esconde, mas nisso volta a ser livre, e volta ao oceano do qual ilusoriamente se afastara no nascimento. Tudo isso deve ser entendido em conjunto e não separado: o eu (incluindo o corpo), o outro (os objetos de percepção, sejam materiais ou culturais) e o nós (o todo sistêmico), formando um tripé mais interessante que os quadrantes de Ken Wilber, no entendimento de seu ex-colega, Steve McIntosh.


Sobre o autor


Paulo Stekel é instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.

 

terça-feira, 21 de abril de 2020

Ufologia Interdimensional

Por Paulo Stekel


https://youtu.be/YYjJwnTYo38

Vlog 003 de "Ciência Espiritual", o novo vlog de Paulo Stekel, postado em seu canal no Youtube (youtube.com/paulostekel) e no Watch do Facebook em sua página de fãs Stekel (facebook.com/canalpaulostekel). Confira!

Neste terceiro vlog, Stekel fala sobre Ufologia, mais especificamente sobre a Hipótese Interdimensional em Ufologia, como proposta pelos pesquisadores Joseph Allen Hynek (norte-americano do "Projeto Livro Azul") e Jacques Vallée (ufólogo francês que escreveu diversos livros sobre o tema).

A maior parte dos argumentos é baseada no artigo de Paulo Stekel intitulado "Ufologia: a viabilidade da hipótese interdimensional", que pode ser encontrado no blogue Stekelblogue (https://stekelblogue.blogspot.com/2020/03/ufologia-viabilidade-da-hipotese.html) e replicado em outras fontes pela Internet.

O vlog traz uma seleção de fotos e vídeos de UFOs de várias épocas e, no final, trechos de um contatado supostamente "canalizando" uma antiga escrita ET e lendo o que escreveu.

Este assunto, Ufologia, foi o mais solicitado nas sugestões enviadas pelos visualizadores do vlog por email, messenger e redes sociais em geral, nos últimos dias.

Confira os dois vlogs já lançados:

Vlog 001 - A Busca da Verdade

https://www.youtube.com/watch?v=J5BgUbh5n2M&t=1s

Vlog 002 - Nosso Lado Sombrio

https://www.youtube.com/watch?v=Q3TKQCaEXUo&t=145s

Música de abertura composta e produzida por Stekel
(ouça músicas de Stekel em https://www.reverbnation.com/stekelmusic/songs)

Vlog Ciência Espiritual é uma playlist do canal de Paulo Stekel no youtube e Facebook dedicada a Ciência, Espiritualidade, Religião, Filosofia, Arte, Cultura e Visão Sistêmica. Comentários sobre livros, artigos e filmes serão comuns neste novo vlog.

ENVIE suas perguntas, dúvidas, comentários e sugestões de tema para os próximos vídeos para o email pstekel@gmail.com

terça-feira, 14 de abril de 2020

Nosso Lado Sombrio

Por Paulo Stekel


https://youtu.be/Q3TKQCaEXUo

Vlog 002 de "Ciência Espiritual", o novo vlog de Paulo Stekel, postado em seu canal no Youtube (youtube.com/paulostekel) e no Watch do Facebook em sua página de fãs Stekel (facebook.com/canalpaulostekel). Confira!

Neste segundo, Stekel fala sobre o chamado "efeito sombra", aquilo em nós que tentamos esconder dos outros e de nós mesmos.

Entre os tópicos tratados estão: o que é a escuridão psicológica, a "sombra" de Jung, a síndrome do "já conheço isso", como somos guiados para a Totalidade, projeção e julgamento, a nossa carapaça exterior. Tudo isso, a partir da análise de alguns trechos do livro "O lado sombrio dos buscadores da luz", de Debbie Ford (Cultrix, 2001), o primeiro livro comentado no vlog.

Música de abertura composta e produzida por Stekel
(ouça músicas de Stekel em https://www.reverbnation.com/stekelmusic/songs)

Vlog Ciência Espiritual é uma playlist do canal de Paulo Stekel no youtube e Facebook dedicada a Ciência, Espiritualidade, Religião, Filosofia, Arte, Cultura e Visão Sistêmica. Comentários sobre livros, artigos e filmes serão comuns neste novo vlog.

ENVIE suas perguntas, dúvidas, comentários e sugestões de tema para os próximos vídeos para o email pstekel@gmail.com

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Ação Não Dual: Wei-Wu-Wei

Por David Loy (Este artigo contém a primeira parte do Capítulo 3 do livro Nonduality, intitulado “Ação Não-dual”, que está sendo traduzido por Paulo Stekel. Para uma maior compreensão, sugerimos a leitura dos trechos anteriores desta mesma obra já postados aqui: https://stekelblogue.blogspot.com/search/label/David%20Loy)


...no ponto parado, aí está a dança,
Mas nem prisão nem movimento. E não chame isso de fixidez,
Onde passado e futuro estão reunidos. Nem movimento de nem para,
Nem ascensão nem declínio. Exceto pelo ponto, o ponto imóvel,
Não haveria dança, e apenas a dança.
T. S. Eliot, “Burnt Norton”

Se quisermos encontrar um paralelo à percepção não-dual na ação não-dual, então ela deve ser a ação na qual também não há bifurcação entre sujeito e objeto. Tal ação não dual requer que não haja diferenciação entre agente e ato; em outras palavras, nenhuma consciência de um agente como distinto de suas ações. Descobrimos que a diferença entre ação dualista e não dualista envolve intenção. O processo mental de pretender um resultado de uma ação desvaloriza-se e age como um meio e funciona como uma superposição que bifurca o “corpo psíquico” não-dual em uma mente que habita um corpo, “um fantasma em uma máquina”.

Ação não dual é definida como a ação na qual não há consciência por um agente, o sujeito que geralmente se acredita que faz a ação, de ser distinto de uma ação objetiva que é realizada. A experiência não-dual tende a ser descrita de duas maneiras: ou o sujeito incorpora o objeto ou vice-versa. No presente caso, a primeira alternativa equivale a negar que qualquer ação seja executada. Dificilmente pode ser uma coincidência encontrarmos exatamente essa afirmação no wei-wu-wei do taoismo. Wei-wu-wei é o paradoxo central do Taoismo e, como conceito, só tem importância em segundo lugar para o próprio Tao, que o incorpora: Lao Tzu descreve a atividade de alguém que percebeu o Tao como wu-wei.

Assim, o homem sábio lida com as coisas através de wu-wei e ensina através de sem-palavras.
As dez mil coisas florescem sem interrupção.
El
as crescem sozinhas e ninguém as possui. (Cap. 2)

O Tao é constante e wu-wei, mas nada permanece desfeito.
Se os governantes
o cumprem, todas as coisas se reformam. (Cap 37)

A maior virtude [
tê] é wu-wei e não tem propósito [wei]. (Cap. 38)

Para aprender, acumula-se dia a dia.
Para estudar o Tao, reduz-se dia a dia.
Menos e menos é feito
Até que wu-wei seja alcançado.
Quando o wu-wei é feito, nada fica por fazer. (Cap. 48)


O fato de outros paradoxos tao
istas serem suscetíveis à expressão paralela - “a moralidade da não moralidade”, “o conhecimento de nenhum conhecimento”, e assim por diante - sugere que eles derivam de wu-wei, talvez como manifestações mais específicas de seu padrão geral. Como um paradoxo, wei-wu-wei parece ser tão difícil de entender quanto o inefável Tao em si. Várias interpretações foram oferecidas, mas são insatisfatórias sem o entendimento mais radical de wu-wei como ação não-dual. Isso não significa que ação não-dual seja o único significado correto, pois pode ser um erro supor que qualquer interpretação em particular deva ser o significado de wu-wei. Aqui podemos ter um caso do que Wittgenstein chamou de "semelhanças familiares"; em vez de qualquer característica ser comum a todas as instâncias, às vezes há um conjunto de características sobrepostas.

A interpretação mais simples de wei-wu-wei é que isso significa não fazer nada, ou, mais praticamente, o mínimo possível. Isso pode ser entendido politicamente ou pessoalmente. A interpretação política vê wu-wei como “o principal preceito por trás da concepção de governo de Lao Tzu como a quantidade mínima de interferência externa projetada no indivíduo daqueles que estão no poder, combinada com um ambiente mais propício à busca do indivíduo por realização pessoal.” Se alguém deixar as pessoas em paz e deixá-las viver suas próprias vidas, os problemas sociais se resolverão - talvez porque a interferência política seja mais frequentemente a causa desses problemas do que sua solução, como certamente foi o caso durante o período dos Reinos Combatentes, quando se acredita que Lao Tzu tenha vivido. Essa explicação de wu-wei é frequentemente parte de uma interpretação política mais geral do taoismo, que, no entanto, se encaixa melhor no Tao Tê Ching que no Chuang Tzu.126 Essa visão de wu-wei também é consistente com a única referência registrada de wu-wei. em Confúcio:

O Mestre disse: “Se alguém pode dizer que efetuou a ordem correta enquanto permanece inativo [wu-wei], foi Shun. O que havia para ele fazer? Ele simplesmente se fez respeitoso e assumiu sua posição voltada para o sul.”

Ao regular sua própria conduta, de modo a refletir a ordem moral, o governante confucionista dá um exemplo positivo e, portanto, é capaz de influenciar seus subordinados sem coagi-los. Mas isso não implica necessariamente wu-wei em relação ao povo. A ênfase no confucionismo é que o rei reina, mas não governa. Na administração ideal, o governante não atende pessoalmente a questões de governo, mas depende da influência carismática de sua virtude (
); isso não significa que os ministros do rei não precisem agir. No Taoismo, a ênfase muda dessa necessidade de um exemplo pessoal para um anarquismo que permite que toda organização social e política evolua de acordo com o Tao. Infelizmente, ambas as abordagens enfrentam o mesmo problema. Apesar das esperanças de anarquistas utópicos e conservadores econômicos, nenhuma dessas filosofias de governo é muito praticável hoje. Talvez esse governo possa funcionar em uma sociedade tradicional não ameaçada, mas não vejo como poderia ter sido bem-sucedido no período cruel dos Reinos Combatentes, nem vejo um lugar para isso em nosso mundo interdependente contemporâneo, dada a sua complexidade e rápida transformação.

A interpretação pessoal de wei-wu-wei como literalmente “não fazer nada” não se sai muito melhor e, de fato, essa abordagem não parece ter sido muito comum. Em seu comentário ao Chuang Tzu, Kuo Hsiang criticou essa visão: “Ouvindo a teoria do wu-wei, algumas pessoas pensam que deitar é melhor do que andar. Essas pessoas estão muito erradas em entender as ideias de Chuang Tzu.” No entanto, Fung Yu-lan, depois de citar isso, acrescentou: “apesar das críticas, parece que, no entendimento de Chuang Tzu, as pessoas não estavam muito erradas.” Isso revela mais sobre Fung que Chuang, mas acho que Fung não está completamente errado. De fato, tal leitura é consistente com a interpretação não dual oferecida posteriormente, uma vez que o completo "não agir" requer a eliminação do senso de si, que está inclinado a interferir. A não-interferência não é realmente possível, a menos que se tenha dissipado a névoa de expectativas e desejos que nos impedem de experimentar o mundo como ele é (Tao), e o julgamento de que "algo deve ser feito" geralmente faz parte dessa névoa. Josh Billings disse que ele era velho e teve muitos problemas - a maioria dos quais nunca aconteceu. Muitos, talvez a maioria dos nossos problemas, se originem em nossas próprias mentes, em uma ansiedade projetada para o meio ambiente.

O que pode ser visto como um corolário de "não fazer nada" é saber quando parar. O capítulo 77 do Tao Tê Ching compara o curso da natureza a um arco: “O que está no topo é puxado para baixo; o que está no fundo é trazido à tona. O que é exagerado é reduzido; o que é deficiente é suplementado.” Assim, o homem que habita no Tao nunca quer chegar ao extremo, e porque sabe o momento certo para parar, está livre de perigo (caps. 15 e 44). A natureza, aqui incluindo o homem, é uma sucessão de alternâncias: quando um extremo é atingido, ocorre uma inversão (cap. 40), como vemos em fenômenos naturais como dia/noite e verão/inverno - um insight posteriormente elaborado no complexidades da escola Yin-Yang.

Uma interpretação mais comum de wei-wu-wei a vê como uma ação que não força, mas produz. Isso pode ser chamado de “ação da passividade”. Sob o peso de uma forte nevasca, os galhos de pinheiro se quebram, mas, ao dobrar, o salgueiro pode soltar seu fardo e brotar novamente. Chuang Tzu dá o exemplo de um homem intoxicado que não é morto quando cai da carruagem porque não resiste à queda. Isso parece ser um argumento para o alcoolismo, mas "se tal integridade do espírito pode ser obtida do vinho, quanto maior deve ser a integridade que é obtida do Céu". Então, wu-wei é uma recomendação para seja macio e flexível, como a água - a metáfora favorita de Lao Tzu. Frequentemente, o caractere que traduzi como "flexível", joh, é traduzido como "fraqueza", mas "fraqueza" tem conotações inevitavelmente negativas que não parecem corretas nesse contexto - especialmente uma vez que joh é geralmente (embora nem sempre; veja os capítulos 8 e 66) um meio de conquistar, no final. É porque a água é a coisa mais macia e produtiva que é capaz de superar o duro e o forte.

Um corolário disso é que uma ação muito leve pode ser suficiente para obter resultados extraordinários, se realizados no momento certo. Isso é “contemplar o difícil com o fácil, trabalhar o grande com o pequeno” (cap. 63). Em particular, deve-se lidar com problemas potencialmente grandes antes que se tornem grandes (cap. 64). O crescimento da muda é fácil de afetar, mas não o de uma árvore madura. Ambos os pontos parecem inegáveis, ainda que limitados, truques. O desafio é saber quando e como aplicá-los.

Provavelmente a interpretação mais comum de wei-wu-wei é a ação natural. Herlee G. Creel cita vários exemplos:

O natural é suficiente. Se alguém se esforça, ele falha. (Fung Yu-lan)

O santo taoista escolhe essa atitude com a convicção de que somente assim o desenvolvimento "natural" das coisas o favorecerá. (Fung Yu-lan)

De acordo com a teoria de “não ter atividade”, um homem deve restringir suas atividades ao que é necessário e ao que é natural. “Necessário” significa necessário para a realização de um determinado objetivo, e nunca exagero. “Natural” significa seguir o Te sem esforço arbitrário. (Fung Yu-lan)

O problema com essas explicações é que elas não explicam muito. Como Creel pergunta, como podemos distinguir ação natural de ação não natural? O termo é tão flexível que acaba significando o que alguém quer que ele signifique, como sabe quem verifica os ingredientes dos produtos de “alimentos naturais”. O uso arbitrário de Fung apenas leva a questão um passo atrás, pois como devemos distinguir arbitrário de não arbitrário? A aprovação de tal julgamento dualista não é condenada na literatura taoista? Wang Pi equipara o natural a não se esforçar, e outros a não fazer um esforço voluntário, mas isso também levanta a questão, a menos que algum critério seja oferecido para distinguir ação voluntária e não voluntária; caso contrário, ficamos, como Fung, deitados. Um critério sugerido é a espontaneidade, mas na melhor das hipóteses isso pode ser apenas uma condição necessária e não suficiente. A raiva que espontaneamente sinto quando alguém pisa no meu pé, ou foge com minha esposa, não é necessariamente um caso de wu-wei.

Nenhuma das opções acima é uma refutação da visão de que wei-wu-wei é uma ação natural, sem vontade e assim por diante. O problema é que essas descrições por si só não vão longe o suficiente. Mas, aliados ao critério adequado, podem ser valiosos. De fato, o conceito de ação não dual pode ser visto como tal critério. A irrupção e a perturbação da ordem natural das coisas são a autoconsciência do homem, e o retorno ao Tao é, inversamente, uma realização do fundamento do ser, incluindo a própria consciência. Se a consciência do eu é a fonte última da ação antinatural, então a ação natural deve ser aquela em que não existe essa autoconsciência - na qual não há consciência do agente como sendo distinto do "seu" ato.

O principal problema com a compreensão de wei-wu-wei é que é um paradoxo genuíno: a união de dois conceitos contraditórios, não-ação ("nada é feito ...") e ação ("... e nada permanece não-feito”). A resolução desse paradoxo deve de alguma forma combinar os dois, mas é difícil entender como isso pode ser outra coisa que não uma contradição em termos. Alguns estudiosos concluíram que é uma contradição insolúvel. Creel, por exemplo, decidiu que esse maior paradoxo taoista provavelmente não era intencional, devido à justaposição de dois aspectos diferentes no início do taoismo: um "aspecto contemplativo" original e um "aspecto proposital" subsequente. O primeiro denota “uma atitude de genuína não-ação, motivada pela falta de desejo de participar da luta dos assuntos humanos”, enquanto o segundo é “uma técnica por meio da qual quem pratica pode ganhar maior controle sobre os assuntos humanos”. O primeiro é meramente passivo (daí a "não-ação"), o segundo é uma tentativa de agir e reformar o mundo ("ação") e, como Creel enfatiza, estes não são apenas diferentes, mas "lógica e essencialmente são incompatíveis". Creel admite que essa interpretação não pode ser encontrada nos próprios textos taoistas, e ele reconhece ainda que isso o coloca na posição embaraçosa de afirmar que Chuang Tzu, mais contemplativo, é anterior à compilação de Lao Tzu, mais proposital. O que é pior, ele deve reconhecer que "encontramos o ‘taoismo contemplativo’ e o ‘taoismo propositivo’, lado a lado, e às vezes em uma grande mistura, em Lao Tzu e em Chuang Tzu", que ele tenta justificar dizendo que os homens raramente são totalmente governados pela lógica. Penso que o problema é que, porque Creel aqui é totalmente governado pela lógica, não consegue entender que o paradoxo é resolvido por uma experiência específica - a realização do Tao - que não pode ser compreendida tão logicamente. Como na realização védica de Brahman e na realização budista do Nirvana, essa experiência é não-dual no sentido de que não há diferenciação entre sujeito e objeto, entre eu e o mundo. A implicação dessa não dualidade para a ação é que não há mais nenhuma bifurcação entre um agente e a ação objetiva que é executada. Como costuma ser entendido, “ação” requer um agente ativo; “não-ação” implica um sujeito passivo que nada faz e/ou produz. A “ação da não-ação” ocorre quando não há um eu” que deva ser ativo ou passivo, uma experiência que pode ser expressa apenas paradoxalmente: “nada é feito, mas nada permanece não-feito.” As interpretações mais simples de wu-wei como não-interferência e visão complacente que não atua como um tipo de ação; a ação não dual reverte isso e vê a não-ação - o que não muda - “na” ação.

Que wei-wu-wei significa ação não-dual é sugerido no Chuang Tzu, embora menos por suas referências a wu-wei do que por sua descrição de outro paradoxo muito semelhante. Em contraste com os doze exemplos de wu-wei no Tao Tê Ching, existem cerca de cinquenta e seis ocorrências no Chuang Tzu, mas apenas três ocorrem nos sete "capítulos principais". É significativo que dois destes descrevem claramente mais do que não interferência ou complacência:

Agora você tem uma árvore grande e está ansioso por sua inutilidade. Por que você não a planta no domínio da inexistência, em uma natureza ampla e árida? Por seu lado, você pode vagar pela não-ação [wu-wei]; por baixo dela, você pode dormir em felicidade.

O Tao tem realidade e evidência, mas nenhuma ação [wu-wei] ou forma.

Inconscientemente, eles andam além do mundo sujo e vagam pelo reino da não ação [wu-wei].

Ainda mais importante é o paradoxo que encontramos no capítulo 6, onde Nu Chü ensina o Tao a Pu Liang I:

Tendo desconsiderado sua própria existência, ele [Pu Liang I] foi esclarecido. . . ganhou a visão do Uno. . . foi capaz de entrar no reino onde a vida e a morte não existem mais. Então, para ele, a destruição da vida não significou a morte, nem o prolongamento da vida, um acréscimo à duração de sua existência. Ele seguiria qualquer coisa; ele receberia qualquer coisa. Para ele, tudo estava em destruição, tudo estava em construção. Isso é chamado de tranquilidade-em-perturbação. Tranquilidade na perturbação significa perfeição.

Aqui "tranquilidade em perturbação" (ou "Paz em conflito") não pode significar falta de atividade. Em vez disso, existe uma sensação imutável de paz em meio à destruição e construção contínuas - naquela transformação incessante que inclui a própria atividade de Pu Liang I. Isso é possível apenas porque Pu Liang I primeiro “desconsiderou sua própria existência”, superando assim a dualidade entre o eu e o não-eu e “ganhando a visão do Uno”.

Dificilmente pode ser uma coincidência encontrarmos exatamente o mesmo paradoxo nas outras tradições que mantêm a não-dualidade de sujeito e objeto. Não é de surpreender que seja mais comum no budismo chinês, onde se espera influência taoista. Mas que wei-wu-wei é uma síntese paradoxal da não-ação em ação é mais claramente reconhecida no budismo. Seng Chao sustentou no Chao Lun que ação e não-ação não são exclusivas: as coisas em ação estão ao mesmo tempo sempre em não-ação; as coisas na não ação estão sempre em ação. Essa afirmação é exposta no primeiro capítulo, “Sobre a imutabilidade das coisas”, mas o ponto é tão importante para ele que a repete no capítulo 4, “Nirvana é sem nome”: “Através da não-ação, o movimento é sempre inativo. Através da ação, tudo é posto em prática, significando que a quietude está sempre em movimento.” Um dos primeiros textos do Ch'an, o Hsin Hsin Ming do terceiro patriarca, Seng-ts'an, afirma duas vezes que o a mente desperta transcende a dualidade de descanso e não descanso:

Quando o descanso e nenhum descanso deixam de existir,
Então até a unidade desaparece.
Da mente pequena vem o descanso e a inquietação
Mas a mente despertada transcende ambos.

Niu-t'ou-Fa-yung, um importante discípulo do quarto patriarca Ch’an, expressou o mesmo paradoxo usando o conceito Ch’an de “não-mente” (wu-hsin), em resposta à questão de se a mente deve ser levada à quietude:

O momento em que a mente está em ação é o momento em que a não-mente age. Falar sobre nomes e manifestações é inútil, mas uma abordagem direta chega facilmente a ela. Não-mente é aquilo que está em ação; é essa ação constante que não age.

Embora esse entendimento possa ser derivado do taoismo, a concepção budista de não-mente mostra mais claramente que essa ação envolve a negação de um agente subjetivo.

Existem outros exemplos do paradoxo que definitivamente não derivam do taoismo. O poema de Seng-tsan ecoa o capítulo 2 do Mulamadhyamikakarika de Nagarjuna, que conclui que tanto o movimento quanto o descanso são incompreensíveis e irreais (shunya). Dado o papel seminal deste texto, que se tornou o trabalho mais importante da filosofia Mahāyana, é possível que todas as referências budistas subsequentes sejam rastreáveis a ele. No entanto, Nagarjuna não escreveu isoladamente. Suas obras são geralmente entendidas como uma exposição e defesa mais sistemática das reivindicações encontradas no Prajñaparamita, e encontramos aí o mesmo paradoxo. Assim como se diz que todos os dharmas são improdutivos e não-nascidos, aquilo que é (tathat) não se torna, nem deixa de se tornar. Um Bodhisattva nem vem nem vai, pois o seu curso é um não-curso. De acordo com o Dashabhumika Sutra e o Madhyamakavatara de Candrakirti, começando com o oitavo dos dez bhumis (os estágios do modo de vida de um Bodhisattva), que é chamado acala (o imóvel), o Bodhisattva trabalha sem fazer nenhum esforço, assim como a lua, o sol, uma joia que deseja ou os quatro elementos principais. Uma característica do décimo estágio é que esse "Bodhisattva celeste" é ativo e inativo: embora os resultados sejam produzidos, ele não faz nada.

No budismo tibetano, a "Yoga do Mahamudra" descreve "o estado final de quietude" da seguinte forma:

Embora, enquanto assim inativo, haja cognição do movimento [mental] [dos pensamentos surgindo e desaparecendo], no entanto, a mente tendo atingido sua própria condição de descanso ou calma e sendo indiferente ao movimento, o estado é chamado de “O estado em que cai a partição que separa o movimento do descanso”.

Desse modo, reconhece-se um ponto de vista da mente.

Este estado é seguido por uma “Análise do ‘Movimento’ e do ‘ Não Movimento’”, como resultado do qual

A pessoa sabe que o “Movimento” não é outro que não o “Não-Movimento”, e que o “Não-Movimento”, não é outro que não o “Movimento”.
Se a natureza real do “Movimento” e do “Não-Movimento” não for descoberta por essas análises, deve-se observar:
Se o Intelecto, que está olhando, é outro que não seja o “Movimento” e o “Não-Movimento”;
Ou se é o próprio eu do "Movimento" e o "Não-Movimento".
Ao analisar, com os olhos do Intelecto do Autoconhecimento, não se descobre nada; o observador e o observado são inseparáveis.

Finalmente, provavelmente o exemplo mais conhecido da Índia é uma passagem no Bhagavad-gita que descreve explicitamente a ação que ainda não é ação:

Quem em ação vê inação e ação em inação - ele é sábio entre os homens; ele é um iogue e realizou todo o seu trabalho.
Tendo abandonado o apego ao fruto das obras, sempre contente sem qualquer tipo de dependência, ele não faz nada, embora esteja envolvido no trabalho.

A palavra sânscrita para ação, karma, sugere que possamos interpretar esses versículos para recomendar ações que não tragam resultados cármicos. Em resposta à ênfase budista e iogue na retirada do mundo da obrigação social, o Gita alega que a ação também pode levar a Krishna porque nenhum karma se acumula se um ato é realizado “sem apego ao fruto da ação”. Isso não discorda de uma interpretação não dualista desses versículos, mas a complementa. Lao Tzu, os budistas e o Gita podem ser vistos descrevendo diferentes aspectos da mesma experiência de ação não-dual. A diferença entre as descrições de Lao Tzu e os budistas está em qual metade do dualismo agente – ação é eliminada. O wei-wu-wei taoista é a negação da ação objetiva, enquanto o conceito budista indiano de anatman e a não-mente do Ch'an enfatizam a negação de um agente. O taoísta nega que eu aja; o budista nega que eu ajo. Mas negar um agente subjetivo ou negar uma ação objetiva equivale à mesma coisa, uma vez que cada metade da polaridade depende da outra. A passagem do Gita implica em como essa bifurcação ocorre. O senso de dualismo surge porque a ação é feita com referência ao fruto da ação - isto é, porque um ato é realizado com algum objetivo ou propósito em mente: eu ajo para obter algum resultado específico. O Gita pode ser entendido (mais estritamente) como proibir a ação egoísta em favor do trabalho “para a manutenção do mundo” ou (mais amplamente) como mostrar o problema com toda ação intencional. O conceito budista de karma, que enfatiza a intenção, é outra expressão dessa última visão: embora “boas ações” possam levar a um renascimento prazeroso no reino dos deva (deus), que ainda é samsara. É preciso agir de maneira a escapar das consequências cármicas boas e ruins. Atos cármicos bons e ruins se originam do dualismo. No primeiro, o eu manipula o mundo para sua própria vantagem; no segundo, o eu trabalha conscientemente em benefício de algo ou de outra pessoa. A única maneira de transcender o dualismo entre o eu e o outro é agir sem intenção - isto é, sem apego a algum objetivo projetado a ser obtido a partir da ação - nesse caso, o agente pode simplesmente ser o ato.

De acordo com o budismo Páli, uma das três "portas para a libertação" (vimoksha-mukhāni) é "ausência de desejo" ou "ausência de disposição". Os outros dois, shunyata e animitta ("ausência de sinal", referindo-se à percepção sem construção de pensamento) são discutidas no capítulo 2. O termo sânscrito para o terceiro, apranihita, significa literalmente que alguém "não coloca nada na frente"; entende-se que isso recomenda a ausência de intenções (āshaya) ou plano (pranidhāna). O Mahāyana reteve todos os três "portas": "Ele [o Bodhisattva] deveria reconhecer o que não deseja, pois nenhum pensamento nele é relativo ao mundo triplo" (shat-asahasrika). Para o budista dedicado, a intenção mais problemática - de uma maneira necessária, mas tão derrotista quanto qualquer outra - é o desejo de iluminação propriamente dito. “Não busque Buda lá fora”, enfatiza o Ch'an, porque enquanto alguém procura Buda, o verdadeiro Buda não pode despertar. “Se você procurar um Buda, será capturado por um demônio de Buda; se você procurar um patriarca, ficará preso por um diabo do patriarca; se você busca, tudo é sofrimento.” (Rinzai)

O problema é que as intenções são pensamentos, que são "sobrepostos" às ações, da mesma maneira que os pensamentos são sobrepostos à percepção, conforme discutido no capítulo 2. Quando sobrepostos à percepção, a superestrutura do pensamento é ilusória porque causa uma polarização entre a consciência subjetiva que percebe e o mundo externo que é percebido. No presente caso, o apego e a identificação com o pensamento (isto é, a meta projetada) dão origem a um senso de dualidade entre a mente que pretende (agente) e o corpo que é usado para alcançar o resultado pretendido.

Mas como a não dualidade de agente e ato resolve o paradoxo da "ação da não-ação"? Pode-se aceitar a negação de um sujeito, na ausência da qual a ação não pode mais ser chamada de "objetivo"; ainda existe alguma ação de algum tipo. A resposta é que, quando alguém se torna uma ação completamente, não há mais a consciência de que é uma ação. Buber viu isso:

Pois uma ação de todo o ser elimina todas as ações parciais e, portanto, também todas as sensações de ação (que dependem inteiramente da natureza limitada das ações) - e, portanto, se assemelha à passividade.
Esta é a atividade do ser humano que se tornou inteiro: foi chamada de não-fazer, porque nada de particular, nada de parcial atua no homem e, portanto, nada dele se intromete no mundo.

Enquanto houver o sentido de si mesmo como um agente distinto da ação de alguém, esse ato pode ser apenas parcial e haverá uma sensação de ação devido à relação entre eles. Nesse caso, existe uma perspectiva da qual se observa que um ato ocorre (ou não ocorre), enquanto que na ação não-dual não há sentido de consciência do ego fora da ação. Quando se é a ação, não resta nenhum resíduo de autoconsciência para observar essa ação objetivamente. Então, há wu-wei: um centro silencioso que não muda, embora a atividade ocorra constantemente, como na tranquilidade-perturbação de Chuang Tzu. Assim como na audição não-dual, há a consciência de um silêncio imutável como a base da qual todos os sons surgem, assim, na ação não-dual, o ato é experimentado como fundamentado naquilo que é pacífico e não age. Em ambos os casos (e outros a seguir), esquecer-se e tornar-se algo completamente é também perceber seu "vazio" e, portanto, "transcendê-lo".

Tal ação pode ser experimentada como não dual porque é inteira e completa em si mesma. Ela não pode estar relacionada a mais nada, pois esse relacionamento é um ato de pensamento, que mostra que existe tanto pensamento quanto ação e, portanto, a ação é apenas "parcial". Se o ato não-dual é completo em si mesmo e ocorre não se referindo a outra coisa, então também não faz sentido: isto é, é simplesmente o que é, tal-qual-é (tathata). Isso identifica o problema com intenção, uma vez que é a referência a algum objetivo derivado do ato que dá sentido ao ato. Por outro lado, o danaparamita (perfeição da generosidade) do Mahāyana é uma doação completa na qual o doador, o presente e o destinatário são todos percebidos como vazios (shunya):

A perfeição supramundana de dar... consiste na pureza tríplice. Qual é a pureza tríplice? Aqui, um Bodhisattva dá um presente, e ele não apreende um eu, um destinatário, um presente; também nenhuma recompensa por sua doação. Ele entrega esse presente a todos os seres, mas não apreende nem seres nem eu. (Pañcavimshatisahasrika)

Tal "ato de não dar" (como pode ser chamado) pode ser feito "sem se apoiar em algo", porque não há nenhuma intenção ligada a ele. A melhor doação, como a melhor ação em geral, é tão “livre de traços” (Tao Tê Ching) que nem sequer existe a sensação de que é um presente. Desenvolver essa "atividade sem intenção" (anābhogacārya) constitui uma parte importante do caminho do Bodhisattva.

A ação não-dual torna-se sem esforço porque não há a dualidade de uma parte de si mesma empurrando outra parte - no caso de atividade física, de um "eu" que precisa se esforçar para fazer com que os músculos se movam. Antes, sou os músculos. Isso fornece uma visão de vários koans zen, como os seguintes de Mumonkan:

Mestre Shogen disse: "Por que um homem de grande força não pode levantar as pernas?"
E ele também disse: “Nós não usamos a língua para falar.” [Ou: “Não é a língua com o que falamos.”]

Isso equivale a outra negação do dualismo mente-corpo. No entanto, isso não é materialismo ou behaviorismo. Em vez de negar a psique, isso afirma que o próprio corpo é totalmente psíquico.

Yun Yen perguntou a Tao Wu: “Para que o Bodhisattva da Grande Compaixão usa tantas mãos e olhos?”
Wu disse: “É como se alguém pegasse um travesseiro no meio da noite.”
Yen disse: “Entendo.”
Wu disse: "Como você entende isso?"
Yen disse: “Todo o corpo tem mãos e olhos.” (O registro azul do penhasco)

O Sutra do Coração diz que quem percebeu o vazio de todas as coisas age livremente porque é "sem impedimento na mente". Claramente, essa é uma maneira pela qual os eventos mentais interferem na ação não-dual, às vezes mantendo as ações físicas de alguém para responder naturalmente à situação. Todos os atletas estão cientes de como a ansiedade pode causar uma autoconsciência que interfere na espontaneidade das reações corporais ao movimento de uma bola de futebol ou tênis, por exemplo. O “corpo psíquico” não-dual, que sabe reagir perfeitamente bem por si mesmo, sofre uma espécie de paralisia devido a obstáculos psicológicos. As artes marciais asiáticas geralmente incluem alguma meditação em seus treinamentos para evitar isso, para que os alunos possam reagir espontaneamente ao ataque sem ficar paralisados pelo medo e sem precisar deliberar primeiro. De acordo com alguns mestres zen, o primeiro objetivo do zazen (meditação zen) é desenvolver um "poder de concentração" (joriki).

Joriki... é o poder ou a força que surge quando a mente é unificada e levada a um ponto através da concentração. Isso é mais do que a capacidade de se concentrar no sentido usual da palavra. É um poder dinâmico que, uma vez mobilizado, nos permite, mesmo nas situações mais repentinas e inesperadas, agir instantaneamente, sem fazer uma pausa para recuperar nossa inteligência e de uma maneira totalmente apropriada às circunstâncias. (Yasutani)

No entanto, o problema da ação dualista não é apenas o "impedimento na mente", mas a intenção em geral:

O cultivo não serve para alcançar o Tao. A única coisa que se pode fazer é estar livre de contaminação. Quando a mente de alguém está manchada pelo pensamento de vida e morte, ou ação deliberada, isso é contaminação. A compreensão da verdade é a função da mente quotidiana. A mente quotidiana é livre de ação intencional, livre de conceitos de certo e errado, dar e receber, o finito e o infinito... Todas as nossas atividades diárias - andar, em pé, sentar, deitar - todas as respostas às situações, lidar com as circunstâncias à medida que elas surgem: tudo isso é Tao. (Ma-tsu)

A mente comum é o Tao” porque, quando as atividades diárias são “livres de ação intencional”, elas são percebidas como não-duais. Isso fornece uma visão de como a “atenção do corpo” descrita no Satipatthana Sutra, e na prática Theravada de vipassana em geral, pode funcionar. Na lenta "meditação caminhando" do vipassana, por exemplo, a pessoa desiste de todas as intenções concentrando-se no ato de caminhar. Isso também sugere porque os koans zen que perguntam “Por quê?” (Por exemplo, “Por que Bodhidharma veio do Ocidente?”) nunca recebem uma resposta direta. “Unmon disse: ‘O mundo é vasto e amplo assim. Por que vestimos nossa túnica de sete tiras ao som da campainha?’” (Mumonkan, caso 16). Um mestre Zen contemporâneo comentou assim sobre este koan:

Alguns de vocês estão familiarizados com a última linha do sutra na hora das refeições: “Nós, esse alimento e nossa comida, estamos igualmente vazios.” Se você puder reconhecer esse fato, perceberá que, quando veste seu roupão, não há nenhuma razão ou "por que" nela... Tente pesquisar esse "por que". Não há razão para o "por que" em nada! Quando nos levantamos, não há razão para "por quê". Apenas nos levantamos! Quando comemos, comemos sem qualquer motivo "por quê". Quando vestimos o kesa [manto de sete peças], apenas o vestimos. Nossa vida é apenas contínua... somente... somente.

Esta passagem esclarece o que significa atividade sem intenção. Da perspectiva usual, parece impossível evitar intenções. Comemos para satisfazer nossa fome, por exemplo, e até mesmo dar um passeio pode ter o objetivo de relaxar. Dessa maneira, é possível encontrar um objetivo em todas as atividades. Mas a afirmação acima é que, mesmo agora, ações como vestir e comer não têm propósito. Atividade intencional não significa ação meramente aleatória e espontânea; envolve perceber a distinção entre pensamento (intenção) e ação. O pensamento (por exemplo, "hora de comer") é inteiro e completo em si; o ato (comer) também é inteiro e completo em si mesmo. É quando cada um não é experimentado total e discretamente, mas apenas em relação ao outro, o primeiro como se “sobreposto” ao segundo, que a ação parece intencional e existe o sentido de um agente/mente que usa o ato/corpo por causa de alguma coisa.

Em resposta a perguntas comuns como “Qual é o primeiro princípio do budismo?” Mestres zen, como Ma-tsu, Huang Po e Lin-chi, costumavam golpear o aluno ou gritar em seu ouvido. Se o Tao é uma mente quotidiana não intencional, essas respostas não são evasivas. São respostas à pergunta, demonstrações de "por que", porque exemplificam a ação não-dual, inteira e completa em si mesma.

Um dia, o Honrado pelo Mundo [Shakyamuni Buddha] levantou de seu assento. Mañjushri golpeou o martelo e disse: “Veja claramente o Dharma do Rei do Dharma; o Dharma do Rei do Dharma é 'apenas isso!'” (O registro azul do penhasco)

Em sua palestra sobre o primeiro caso do Mumonkan, Yasutani-roshi descreve as ações de alguém que alcançou o kensho:

Onde quer que você possa nascer, e por qualquer meio, você será capaz de viver com a espontaneidade e a alegria das crianças brincando - é isso que se entende por um "samadhi de prazer inocente". Samadhi é absorção completa.

Absorção completa significa que o eu é completamente absorvido em jogo, caso em que o eu e sua atividade são não-duais. A palavra sânscrita para brincar, lila, é frequentemente usada em Vedanta para descrever o propósito de Saguna a Brahman em criar o universo fenomenal: isto é, não há nenhum propósito fora do próprio processo. A dialética da ignorância e libertação é Deus brincando de esconde-esconde consigo mesmo. As religiões semíticas, que não aceitam a reencarnação, geralmente encaram a vida espiritual como um negócio mais sério, nossa “única chance” de nos prepararmos para o julgamento de Deus. Mas a experiência de alguns místicos ocidentais os levou a uma conclusão semelhante à dos não-dualistas:

Quando [Jakob] Boehme está falando da vida de Deus como é em si mesma, ele se refere a ela como "jogo"... Adão deveria ter se contentado em brincar com a natureza no Paraíso. (Mysterium Magnum 16:10) Adão caiu quando essa peça se tornou um assunto sério, isto é, quando a natureza se tornou um fim em vez de um meio.

Meister Eckhart repete os mestres zen:

Faça tudo o que fizer, agindo a partir do âmago da sua alma, sem um único "Por quê". . . Assim, se você perguntar a uma pessoa genuína, isto é, alguém que age com o coração: “Por que você está fazendo isso?” - ele responderá da única maneira possível: “Faço porque faço isso!

[O homem justo] não quer nada, não procura nada e não tem motivos para fazer nada. Como Deus, sem motivos, age sem eles, assim o homem justo age sem motivos. Como a vida vive por si mesma, sem necessidade de razão de ser, o homem justo não tem razão para fazer o que faz.


Sobre o autor


David Robert Loy é professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia, Existencialismo e Budismo" [Lack and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy, Existentialism, and Buddhism] e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada" [Nonduality: A Study in Comparative Philosophy], além de vários artigos. (www.davidloy.org)