Por
Paulo Stekel
Este texto pode parecer
uma afirmação, mas na verdade é uma reflexão. Ouço o tempo todo
pessoas entendendo equivocadamente a proposta da espiritualidade ou,
melhor dizendo, das “espiritualidades”, especialmente a
modalidade que chamo de Nova Espiritualidade.
Muitas pessoas pensam
em uma busca espiritual como uma barganha com Deus, Buda, seres de
luz, anjos, ou o que os valha. Na verdade, elas pretendem estar
deixando a visão materialista para praticar algo espiritual, mas
continuam com os mesmos conceitos materialistas, agora travestidos de
uma suposta elevação espiritual, sutilização do ser e amor
incondicional. Muitas vezes, isso é pura balela do ego para
continuar no domínio, uma armadilha urdida com perfeição para que
o buscador se imagine “salvo” em suas crenças e se sinta seguro
para julgar os outros, que não pensam como ele.
Vejo muita gente
julgando o outro o tempo todo. Julgam o que acontece aos outros como
se a busca da espiritualidade fosse retirar os problemas de nossa
frente num piscar de olhos. Não é assim que a coisa funciona.
Em primeiro lugar,
quando passamos a praticar espiritualidade, mantemos nosso
livre-arbítrio, e isso traz consequências. O fato de sermos
“praticantes” significa que estamos buscando, não que já
encontramos ou que atingimos a perfeição. Na verdade, em
99,99999....% dos casos, com certeza, não!
Em segundo lugar, Deus,
Buda, os seres de luz, anjos, mentores, etc., presentes em cada
proposta espiritual, não podem se sobrepôr ao nosso próprio Carma,
retirando-o simplesmente ou absorvendo-o por osmose. Nosso carma é
nosso carma. Ele vem sendo gerado há vidas sem conta e terá que,
invariavelmente, ser vivido. No que nossa busca espiritual vai ajudar
neste sentido é no modo como encaramos o que nos acontece por
instância cármica. Se nos revoltamos, sofremos mais e o carma pode
aumentar; se compreendemos o propósito do que acontece, podemos
dissolver o carma pelo aprendizado envolvido ter sido acessado.
Grandes Mestres da
humanidade sofreram doenças terríveis, mas a diferença com relação
a qualquer um de nós é que para eles estava tudo bem. Eles
entendiam o propósito do que lhes ocorria. O sofrimento de Cristo na
Cruz reflete bem esta consciência. A doença de Ramakrishna - um
câncer na garganta - também. Até o alcoolismo de Chogyam Trungpa,
o lama tibetano que foi o maior responsável pela vinda do Budismo
Vajrayana (popularmente chamado Tibetano) para o Ocidente, reflete
isso. Todos eles entenderam que a doença é um mestre poderoso.
Mas, não apenas a
doença, as dificuldades gerais da vida são mestres poderosos, e ao
buscarmos a espiritualidade, em princípio, a única coisa que muda é
nossa compreensão destas dificuldades. Elas não nos são retiradas
como por encanto ou impedidas de se manifestar. Quem pensa que isso
pode ser assim, não entendeu nada de espiritualidade. É preciso
entender que a paz, a estabilidade, a ausência de problemas, num
mundo regido pelas leis cíclicas e pela impermanência, é algo
impossível. Um ser de luz, um bodhisattva (um quase Buda) só deixa
de ter “problemas” quando atinge o Despertar Definitivo. Até lá,
ainda se vê às voltas com as armadilhas da própria mente. E, o que
resta para nós, simples mortais, então? Há muito Caminho pela
frente, muita prática e muitos mestres-dificuldade para encontrar.
O julgamento do outro é
uma das atitudes que causa maior atraso no caminho espiritual. Deixar
de observar seu próprio trilhar para observar de modo indiscreto o
caminho alheio é uma forma de “fofoca espiritual” que, além de
gerar carma, atrasa o desenvolvimento e o cultivo de uma mente
saudável.
O julgamento do caminho
espiritual do outro, além de uma falha ética, é um preconceito
evidente. Ninguém pode realmente saber qual é o desenvolvimento e a
elevação espiritual de uma pessoa apenas observando-a de fora.
Podemos estar diante de um verdadeiro mestre espiritual e não
sorvermos nada da energia dele porque estamos imersos em preconceitos
sobre como DEVE ser uma pessoa espiritualizada.
Uns dizem: “Ah, como
ele pode ser espiritualizado e passar por problemas pessoais?”,
“Como pode ter ficado doente?” “Como pode estar com câncer?”,
“Como pode ter se separado da esposa ou marido?”, “Como foi
assaltado, agredido, ter sofrido atentado, quase sido assassinado,
etc.?” Como, como, como...?
Pessoas que julgam
desta forma ainda não encontraram a verdadeira sombra humana, nem
caíram em suas garras... Quando seus carmas amadurecerem, não
perceberão que todos padecem de dores relativas a atos antigos,
desta e de outras vidas. Não percebendo, continuarão caindo nas
armadilhas do ego, julgando, caindo e sendo infelizes. Mas, os
verdadeiros buscadores, em seu desapego, independente do que lhes
ocorra, saberão enfrentar as sombras e sair ilesos em suas almas das
consequências aparentes, externas, que aos incautos e ignorantes
amedronta tanto.
Não existe nenhuma
fórmula mágica ou antídoto definitivo contra o sofrimento que não
o atingimento da Perfeição espiritual, que uns chamam Iluminação,
Despertar ou Liberação. Até lá, estamos todos no mesmo barco e o
que deveríamos fazer é compreender o outro com muita boa vontade.
Este compreender também implica respeitar o livre-arbítrio do
outro, o que significa que, se a única coisa a se fazer, é o
afastamento, que assim seja. Que ninguém precise aviltar sua própria
alma na vã pretensão de uma compaixão ou solidariedade irrealista
que a ninguém educa. Para almas endurecidas e impermeáveis ao amor,
o melhor é o afastamento quando as ligações se tornam tóxicas ou
perigosas. Ficar se envolvendo em intrigas alheias não é o ideal
para quem busca o caminho espiritual. Que cada um resolva, primeiro,
suas próprias intrigas criadas pelo ego e olhe para o outro com
serenidade e amor.
A busca espiritual
ajuda na compreensão das dificuldades, dá mais serenidade para se
passar pelos momentos de testes e de crises, nos faz perceber melhor
quem são nossos amigos e apoiadores e nos dá intuição para nos
afastarmos dos maus amigos. Isso, sim, é conquistado com a prática
espiritual. Agora, se você quer buscar a espiritualidade para que
ela lhe deixe completamente sem problemas, então você não
aprenderá mais nada, pois são as dificuldades que nos fazem
humanos, e são elas, à medida que são superadas, que nos farão um
sobre-humano ou, nas palavras do Buda, um verdadeiro ser humano, um
Desperto. Então, sem dificuldades, sem evolução; sem dificuldades,
sem crescimento; sem dificuldades, sem Perfeição!
Se você não quer
problemas, não busque a espiritualidade. Busque alguma outra coisa
que lhe prometa facilidade, milagres e paz contínua. Mas, sinto lhe
dizer que será decepcionante em pouquíssimo tempo! Espiritualidade
não é para se ficar rico, para não se ter doença alguma e muito
menos para se adquirir algum poder sobre os outros. Isso, na verdade,
nada mais é do que puro “materialismo espiritual”, como dizia o
lama Chogyam Trungpa. Isso não significa que os ensinamentos não
mereçam compensação para a sobrevivência dos instrutores, que o
trabalho espiritual realizado em atendimento no qual o tempo é
dedicado às pessoas não possa ser compensado financeiramente, nem
que alguém não possa dedicar cem por cento de seu tempo às coisas
espirituais. O problema não está nisso, mas no apegar-se a isso
como se fosse uma carreira material. A dedicação espiritual é mais
profunda que a dedicação a uma profissão. É algo que vem da alma,
não da razão. Vem de uma convicção interna e não de uma decisão
externa baseada em perspectivas de ganho. Ou seja, a verdadeira
prática espiritual também não é antídoto contra problemas
financeiros. Com certeza, não!
Se alguém julga o
nível espiritual de alguém por seu sucesso financeiro, o que resta
para o Cristo, que vivia com seus discípulos dependendo das doações
das pessoas o tempo todo? Se alguém julga o nível espiritual de
alguém por sua condição miserável, o que resta para o Buda, que
era um príncipe muito próspero? Não é isto o que importa, mas o
desapego que ambos possuíam, independente do que tinham. Podemos
fazer isso, também, tenhamos o que tenhamos.
Quem quer ser um
“carreirista” da espiritualidade, que não a busque. Procure uma
carreira material promissora. Quem quer ser um espiritualista de
verdade, incorpore a espiritualidade ao seu dia a dia, a cem por
cento de suas ações, incluindo seu trabalho profissional. O que
importa é o que vai dentro do coração.
Alguns citam muito a
frase “Dai de graça o que de graça recebeste”. Ok. Mas, se não
saiu de graça, deve haver uma compensação mínima. A compensação
para os ensinamentos do Cristo era dada na hospedagem a ele e seus
discípulos, alimentação, vestuário, etc. Então, não era tão de
graça assim! Muitas pessoas usam este argumento distorcido para
receberem sem qualquer compensação ou responsabilidade o
conhecimento espiritual, que logo depois, nem sequer valorizarão.
Mikao Usui, o sintonizador do Reiki, percebeu muito bem isso, e
passou a pedir uma compensação para a iniciação e a aplicação
desta técnica. Entre os tibetanos e indianos também era – e ainda
é – comum a doação de valores consideráveis aos mestres antes
de se receber ensinamentos. Dentro de um bom senso, desde que ninguém
seja impedido de fazer algo simplesmente porque não tem meios
financeiros, creio que se pode pedir compensação pelo ensinamento
espiritual. Mas, sem falsas promessas de que os problemas
desaparecerão da vida do praticante logo em seguida. A prática é a
verdadeira distância entre o sofrimento e a compreensão do
sofrimento. Desta compreensão é que surge a dissolução do
sofrimento e a saída do ciclo vicioso de nascimento, doença, morte
e renascimento.
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