Por David Loy (Este artigo contém partes da
Introdução do livro Nonduality, que está sendo traduzido por Paulo
Stekel)
N.T. A obra
Nonduality (New
Haven: Yale University, 1988), de David Loy, nunca tinha sido
traduzida para o Português. Uma lástima, pois o que o autor
apresenta ali é o resultado de anos de pesquisa sobre a
Não-dualidade em três vertentes filosóficas orientais relevantes:
o Budismo, o Vedanta e o Taoismo. Além disso, ele coteja
esta sabedoria oriental com as noções da filosofia ocidental
moderna. Aqui, apresentamos partes relevantes da Introdução da
obra, que estamos traduzindo.
A não-dualidade
daquele que vê e do que é visto: não há afirmação filosófica
ou religiosa mais marcante ou mais contraintuitiva, e ainda afirmar
que existe tal experiência, e que esta experiência é mais verídica
do que nossa experiência dualista usual, não é raro na tradição
Ocidental.
Declarações
semelhantes foram feitas, em linguagem igualmente contundente, por
importantes figuras místicas do Ocidente, como Meister Eckhart,
Jakob Boehme e William Blake, só para citar apenas alguns. Em geral,
os filósofos têm sido mais hesitantes em se comprometer de maneira
tão decisiva, mas uma afirmação sobre a não-dualidade de sujeito
e objeto é explícita ou implícita em pensadores como Spinoza,
Schelling, Hegel, Schopenhauer, Bergson e Whitehead - novamente
citando apenas alguns; (...) afirmações similares podem ser
encontradas entre importantes figuras contemporâneas como Nietzsche,
Heidegger e talvez Wittgenstein. Não deveríamos nos surpreender com
a relativa relutância dos filósofos em se comprometerem nessa
questão. As figuras religiosas podem se satisfazer em repousar a
afirmação da não-dualidade na fé ou em sua própria experiência,
mas os filósofos devem apoiar suas afirmações em argumentos; e
qual é a razão para tal afirmação extraordinária, que, por sua
própria natureza, não é suscetível nem mesmo à descrição
conceitual adequada, muito menos à prova? Não é de surpreender que
a corrente principal da tradição intelectual ocidental não tenha
sido favorável a tais declarações. No entanto, as alegações
sobre a não-dualidade entre sujeito e objeto, como a ampla tradição
mística em que encontraram seu nome mais confortável, sobreviveram
como uma subcorrente subterrânea intrigante, algumas vezes atacada,
outras vezes ridicularizada.
O mundo
contemporâneo se orgulha de seu pragmatismo. Isso significa, entre
outras coisas, que a maioria dos filósofos acredita que evoluímos
além das especulações abstratas da metafísica, tornando-nos
autocríticos e mais sofisticados na forma como usamos a linguagem.
Mas, se a metafísica tradicional está morta, a metafísica, no
sentido mais amplo, é inescapável. Em última análise, refere-se
ao nosso entendimento básico sobre a natureza do mundo, e tal
entendimento pode sempre ser extrapolado, se necessário, da nossa
atitude para com o mundo “dentro” do qual supomos estar. O mais
distante que podemos nos colocar da metafísica é “esquecer”
essa compreensão metafísica no sentido de não estarmos mais
conscientes de nossas suposições filosóficas sobre o mundo e
sobre nós mesmos. Hoje estamos tão impressionados com o sucesso das
ciências físicas - originalmente derivadas da metafísica - que
devolvemos um elogio e derivamos nossa metafísica da ciência
natural. Mas, a cosmovisão científica tem suas próprias suposições metafísicas, originadas na Grécia antiga, em
formas de olhar o mundo que se concretizaram em Platão e,
especialmente, em Aristóteles. Essa visão dualista está quase em
oposição diametral a uma visão de mundo baseada na não-dualidade
daquele que vê e do visto. No entanto, a tradição grega da época
era rica, cheia de paradigmas concorrentes, e vale a pena lembrar
que, por inevitável que pareça retrospectivamente, a visão de
mundo aristotélica que se desenvolveu na corrente principal não foi
o único caminho possível. Outros pensadores importantes antes de
Plotino - como Pitágoras, Heráclito, Parmênides e até mesmo
Platão, de acordo com como o interpretamos - foram mais simpáticos
que Aristóteles à afirmação metafísica da não-dualidade, e o
que eles pensaram sobre esse assunto, pode ainda ter significado para
nós hoje.
Mas minha principal
preocupação não é com o desenvolvimento da tradição filosófica
ocidental, embora haja muitas ocasiões para se referir a ela. No
Ocidente, a alegação de não-dualidade sujeito-objeto tem sido uma
semente que, embora muitas vezes semeada, nunca encontrou solo
fértil, porque tem sido muito antagônica com relação aos outros
brotos vigorosos que se tornaram ciência e tecnologia modernas. Na
tradição oriental - os ricos e diferentes climas intelectuais da
Índia e da China, em particular -, encontramos uma situação
diferente. Lá, as sementes da não-dualidade observador-observado
não apenas brotaram, mas amadureceram em uma variedade de espécies
filosóficas impressionantes que têm sido atraentes para muitos
ocidentais porque parecem tão exóticas em relação à nossa – e,
por terem pelo menos a promessa de frutos que nós, ocidentais, ainda
carecemos. De modo algum todos esses sistemas afirmam a não-dualidade
de sujeito e objeto, mas é significativo que três deles - o
Budismo, o Vedanta e o Taoismo - tenham sido provavelmente os mais
influentes.
Devo observar
desde o início que nenhum desses três nega completamente o mundo
“relativo” dualístico com o qual estamos familiarizados e
pressupomos como “senso comum”: o mundo como uma coleção de
objetos distintos, interagindo causalmente no espaço e no tempo. A
alegação deles é, antes, que existe uma outra maneira, não-dual,
de experimentar o mundo, e que esse outro modo de experiência é, na
verdade, mais verídico e superior ao modo dualista que costumamos
dar como certo. A diferença entre tais abordagens não-dualistas e
ocidentais contemporâneas (que, dada sua influência global,
dificilmente podem ser mais rotuladas como ocidentais) é que estas
construíram sua metafísica somente com base na experiência
dualista, enquanto as primeiras reconhecem o profundo significado da
experiência não-dual, construindo suas categorias metafísicas de
acordo com o que ela revela.
Que o budismo, o
Vedanta e o taoismo baseiem sua visão de mundo na experiência da
não-dualidade de sujeito-objeto não pode ser pressuposto; uma das
minhas principais preocupações é argumentar precisamente sobre
esse ponto. Ao fazê-lo, as diferenças significativas entre esses
sistemas (e internamente, por exemplo, entre os diferentes sistemas
budistas) receberão nossa atenção, e a base para essas
discordâncias será considerada. É seguro dizer que essas
diferenças não costumam ser negligenciadas. Se alguma foi, houve
mais ênfase nos desacordos do que nas semelhanças, que tendem a ser
repassadas muito rapidamente - talvez porque os desacordos
naturalmente forneçam mais para discutir. O resultado infeliz é
que, mesmo na filosofia asiática, essa afirmação compartilhada
sobre a não-dualidade de sujeito e objeto não recebeu a atenção
filosófica que merece. É uma afirmação tão extraordinária, tão
divergente do senso comum e, no entanto, tão fundamental para todos
esses sistemas, que merece cuidadosa investigação; e tal
investigação dá origem a uma suspeita.
Em todos os sistemas
asiáticos que incorporam essa afirmação, a natureza não-dual da
realidade é indubitavelmente revelada apenas naquilo que eles chamam
de iluminação ou libertação (nirvana, moksha, satori, etc.), que
é a experiência da não-dualidade. Essa experiência é a
engrenagem sobre a qual cada metafísica gira, apesar do fato de que
tal iluminação tem nomes diferentes nos vários sistemas e é
frequentemente descrita de maneiras muito diferentes. Ao contrário
da filosofia ocidental, que prefere refletir sobre a experiência
dualista acessível a todos, esses sistemas fazem afirmações
epistemológicas e ontológicas de longo alcance com base em
experiências contraintuitivas acessíveis a muito poucos - se
aceitarmos suas considerações, apenas para aqueles que estão
dispostos a seguir caminho necessariamente rigoroso, que são muito
poucos. Não é que essas alegações não sejam empíricas, mas se
forem verdadeiras, elas são baseadas em evidências não prontamente
disponíveis. Esta é a fonte da dificuldade em avaliá-las. Plotino
já chamou nossa atenção para outra característica da experiência
não-dual, que está totalmente de acordo com as descrições
asiáticas da iluminação: a experiência não pode ser alcançada
ou mesmo compreendida conceitualmente. Veremos que isso ocorre porque
nosso conhecimento conceitual usual é dualista em, pelo menos, dois
sentidos: é o conhecimento sobre algo que um sujeito tem; e tal
conhecimento deve discriminar uma coisa de outra para afirmar algum
atributo sobre alguma coisa. (…) O que é importante no momento
é que a natureza dualista do conhecimento conceitual significa que a
experiência não-dual, se genuína, deve transcender a filosofia em
si e todas as suas reivindicações ontológicas. E isso traz nossas
suspeitas à tona: essas diferentes filosofias são baseadas e tentam
apontar para a mesma experiência não-dual? Durante a experiência
em si, não há o filosofar, mas se e quando alguém “recuar” e
tentar descrever o que foi experimentado, talvez uma variedade de
descrições seja possível. Talvez até mesmo ontologias
contraditórias possam ser erguidas no mesmo terreno fenomenológico.
Essa suspeita é a motivação para este estudo.
Por ser a
não-dualidade tão incompatível com nossa experiência usual - ou,
como normalmente o não-dualista prefere, com nossa maneira habitual
de compreender a experiência - é muito difícil entender o que
exatamente se quer dizer quando se afirma que, por exemplo, a
percepção é ou pode ser não-dual. (...) Isso não quer dizer que
uma afirmação dualista seja menos problemática - a relação entre
sujeito e objeto sempre foi um (talvez o) maior problema
epistemológico – mas, pelo menos, que uma abordagem dualista
parece concordar melhor com o bom senso, apesar de todos os enigmas
surgirem quando alguém tenta desenvolver filosoficamente essa
crença. Mas que a não-dualidade é difícil de entender é
necessariamente verdadeiro, de acordo com os vários sistemas que a
afirmam. Se compreendêssemos isso completamente, seríamos
iluminados, o que não é entendimento no sentido habitual: é a
experiência da não-dualidade que o filosofar obstrui. De tal
perspectiva, o problema com a filosofia é que sua tentativa de
compreender a não-dualidade conceitualmente é inerentemente
dualista e, portanto, autodestrutiva. De fato, o próprio ímpeto da
filosofia pode ser visto como uma reação à divisão entre sujeito
e objeto: a filosofia originou-se na necessidade do sujeito alienado
de compreender a si mesmo e sua relação com o mundo objetivo em que
se encontra. Mas, conforme os “sistemas não-dualistas” a serem
considerados - Budismo (especialmente Mahayana), Vedanta
(especialmente Advaita) e Taoismo - a filosofia não pode compreender
a fonte de onde provém e, portanto, deve ceder à praxis: a
tentativa intelectual de compreender a não-dualidade conceitualmente
deve dar lugar a várias técnicas de meditação que, afirmam,
promovem a experiência imediata da não-dualidade. É claro que a
mudança de perspectiva do entendimento conceitual para as práticas
meditativas está além do escopo deste trabalho, pois está além do
alcance da filosofia em geral. No entanto, apesar dessa atitude em
relação à inadequação final da filosofia - o que significa,
entre outras coisas, que esses sistemas não são filosóficos no
sentido ocidental -, as várias tradições fizeram muitas afirmações
específicas sobre diferentes aspectos da experiência não-dual.
Este trabalho não é
uma tentativa de estabelecer, de alguma forma supostamente objetiva e
rigorosa, se nossa experiência é ou pode ser não-dual. Em vez
disso, vou construir uma teoria que seja coerente na medida em que
integra um grande número de afirmações filosóficas díspares, e
que é, portanto, plausível como uma interpretação sistemática
dessas afirmações.
Tal abordagem é
consistente com a atitude das tradições asiáticas a serem
examinadas. A maioria das passagens que vou citar oferece assertivas
em vez de argumentos, uma postura que não é atípica da literatura.
Quando essas reivindicações foram feitas originalmente, era
esperado que elas fossem recebidas com reverência por aqueles que já
estavam comprometidos com a tradição. Naqueles cujas mentes estavam
maduras (geralmente como resultado de extensa meditação), um
mahāvākya (grande ditado) como “Que tu és” ou “A mente é o
Buda” pode ser suficiente para precipitar a realização da
não-dualidade. Mas, provas logicamente convincentes da possibilidade
de experiência não-dual não foram oferecidas. Os Upanishads
incluem muitas afirmações sobre a natureza de Atman e Brahman, e
analogias para nos ajudar a entender essas afirmações, mas não
argumentos - o que é de se esperar, uma vez que, como os textos
clássicos do taoismo, são “pré-filosóficos”. Shankara
desenvolveu e sistematizou essas afirmações com a ajuda de muitos
argumentos, mas a maioria deles critica outras interpretações; seus
próprios pontos de vista são defendidos como apologeticamente
consistentes com os Vedas e não contraditos pela experiência. O
cânone Páli não oferece provas de que há uma fuga do samsara.
Embora muitas das formulações doutrinárias do Buda sejam
filosoficamente sutis, ele intencionalmente evitou até mesmo
descrever o estado do nirvana, além de caracterizá-lo como o
fim do sofrimento e do desejo. Muito tempo depois, o filósofo
yogacara Asanga apontou que existem apenas três argumentos decisivos
para o idealismo transcendental, e parece-me que os mesmos três
argumentos se aplicam à alegação de não-dualidade. Primeiro, há
a intuição direta da realidade (não-dualidade) por aqueles que
despertaram para ela; segundo, o relato que os Budas (ou outras
pessoas iluminadas) dão de sua experiência na fala ou na escrita; e
terceiro, a experiência (da não-dualidade) que ocorre no samadhi
profundo da meditação, quando “os concentrados veem as coisas
como realmente são”. Não é necessário ressaltar que nenhuma
dessas três necessidades deve ser aceita como convincente por alguém
já cético. A terceira experiência meditativa pode ser facilmente
criticada como anormal e possivelmente ilusória. A segunda é, em
parte, um apelo à autoridade, o que é inaceitável como evidência
filosófica e parcialmente uma reafirmação da primeira. Isso
significa que o argumento para a não-dualidade é, na verdade,
reduzido à experiência de não-dualidade - nossa ou de outra pessoa
cujo testemunho podemos estar inclinados a aceitar.
W. T. Stace
argumentou que a “ordem divina” é “totalmente diferente” da
ordem natural. Quer isso descreva acuradamente ou não o misticismo
ocidental, não é a visão das filosofias não-dualistas que
consideramos. Sua atitude geral é que se pode perceber a natureza do
mundo fenomenal dualista a partir da “perspectiva” da experiência
não-dual, mas não vice-versa. O Buda não descreveu o nirvana
porque o nirvana não pode ser entendido da perspectiva de
alguém ainda atolado em samsara, mas a compreensão total do
funcionamento do samsara - por exemplo, a “origem
dependente” (pratītyasamutpāda) de todas as coisas - está
implícita na experiência do nirvana. De fato, a plena
compreensão do samsara, de como o desejo e o delírio causam
o renascimento, parece constituir o nirvana do budismo Páli,
pois é assim que se pode escapar do ciclo mecânico de nascimento e
morte. Shankara concordaria: moksha
- a percepção de que “Eu sou Brahman” - revela a verdadeira
natureza dos fenômenos como maya, ilusão, mas até que essa
liberação seja cegada por maya e tome o irreal por real, o
real por irreal. No taoismo, a compreensão de Tao leva a uma visão
da natureza das "dez mil coisas", mas, embora algumas
características do Tao (e do homem do Tao) sejam expostas usando
parábolas e analogias, não estou familiarizado com nenhuma
tentativa séria de provar a existência do Tao.
Que os fenômenos
aparentemente dualistas podem ser entendidos da perspectiva da
não-dualidade, mas não vice-versa, parece ser necessariamente
verdadeiro, devido à natureza do entendimento. O que Sebastian Samay
escreve sobre a filosofia de Karl Jaspers também se aplica aqui:
Ao
contrário da ciência, que investiga objetos que estão no mundo, a
filosofia se propõe a penetrar na unidade de todas as coisas,
voltando à sua origem fundamental. Consequentemente, o objeto da
filosofia não pode permitir nada fora de si mesmo por meio do qual
possa ser “entendido”. Outros objetos são logicamente
dependentes disso, mas isso mesmo não depende de nada. Pensamentos e
afirmações sobre tal “objeto” são necessariamente
auto-reflexivos; enquanto explicamos tudo por referência a esse
objeto, devemos explicá-lo por si mesmo; é autoexplicativo, seu
próprio ponto de referência.
Isso pode ser
reafirmado em nossos termos da seguinte maneira: da “perspectiva”
da não-dualidade - isto é, tendo experimentado não-dualidade -
alguém pode compreender a natureza delusiva da experiência dualista
e como esta delusão surge, mas não o contrário. Não há argumento
que, usando as premissas de nossa experiência dualista comum (ou
entendimento da experiência), possa fornecer uma prova válida de
que a experiência é na verdade não-dual. Toda filosofia é uma
tentativa de entender nossa experiência, mas aqui a questão crítica
é o tipo de experiência que aceitamos como fundamental, em oposição
ao tipo de experiência que precisa ser “explicada”. O
epistemólogo ocidental geralmente aceita como seus dados nossa
experiência dualista familiar, descartando outros tipos (por
exemplo, samadhi) como aberrações filosoficamente
insignificantes. Em contraste, os epistemólogos asiáticos colocaram
mais peso em várias experiências “paranormais”, incluindo o
samadhi, sonhos e o que consideram ser a experiência da
libertação. A primeira abordagem aceita a dualidade como válida e
rejeita a não-dualidade como ilusória; a última aceita a
não-dualidade como reveladora e critica a dualidade como uma
interpretação mais comum, mas também mais delusória do que
experimentamos. Por ser uma questão de premissas, neste nível não
há critérios neutros ou objetivos pelos quais possamos avaliar
essas duas visões - de fato, o próprio conceito de “critérios
objetivos” está em questão. Ao escolher entre essas abordagens, o
viés cultural geralmente entra em jogo. Aqueles criados nas
tradições asiáticas clássicas estão mais inclinados a aceitar a
possibilidade de não-dualidade; os educados na tradição empirista
ocidental são mais propensos a serem céticos quanto a essa
experiência e preferem “explicar” a não-dualidade em termos de
outra coisa que são capazes de entender - por exemplo, como um
“sentimento oceânico” devido à memória do útero, a expressão
de Freud. A crença ocidental de que apenas um tipo de experiência é
verídica é uma suposição pós-aristotélica, agora profundamente
arraigada para ser facilmente reconhecida como tal por muitos. Ainda
assim, esse ceticismo é perigosamente circular, usando argumentos
baseados em um modo de experiência para concluir que apenas esse
modo de experiência é verídico.
Nesta introdução,
o termo não-dualidade refere-se exclusivamente à não-dualidade de
(mais estreitamente) observador e observado, (mais amplamente)
sujeito e objeto. Essa não-dualidade é minha principal preocupação,
mas não é de forma alguma o único significado do termo na
literatura. Pelo menos cinco significados diferentes podem ser
distinguidos, todos intimamente relacionados. (...)
No caso da
percepção, encontraremos um consenso geral de que o ato da
percepção normalmente não é simples, mas complexo (sa-vikalpa),
pois uma variedade de outros processos mentais interpretam e
organizam percepções. Através das práticas meditativas,
entretanto, pode-se distinguir a percepção nua desses outros
processos e experimentá-la como ela é em si mesma (nir-vikalpa);
experimentar dessa maneira ocorre sem a distinção normalmente feita
entre o objeto percebido e o sujeito que é consciente dele. Como o
Despertar da Fé (um texto importante do Mahayana) diz: “desde o
princípio, a forma corpórea e a mente têm sido não-duais.”
(…) Vamos
encontrar um paralelo no caso da ação. Nossa experiência normal de
ação é dualista - existe o sentido de um “eu” que faz a ação
- porque a ação é feita para obter um resultado particular.
Correspondendo à divisão tripartida usual da percepção em
percebedor, percebido e o ato de percepção, há o agente, a ação
e o objetivo da ação. Paralelamente à superposição do pensamento
sobre a percepção, o "invólucro" mental da intenção
também sobrepõe o pensamento à ação e, assim, sustenta a ilusão
de um agente separado; mas, sem tal superposição de pensamento não
se faz distinção entre agente e ato, ou entre mente e corpo. A ação
não-dual é espontânea (porque livre de intenção objetivada), sem
esforço (porque livre de um “eu” reificado que deve se exercer),
e “vazia” (porque se é totalmente a ação, não existe a
consciência dualista de uma ação). Essa perspectiva é derivada da
explicação do significado de wei-wu-wei, a paradoxal “ação
da não-ação” do taoismo, e é usada para interpretar o
enigmático primeiro capítulo do Tao Tê Ching. Também é
consistente com a ênfase, em algumas filosofias recentes da mente,
na intenção como aquilo que mantém o sentido do eu.
Esses relatos de
percepção não-dual e ação não-dual parecem sugerir que os
processos de pensamento funcionam apenas como uma interferência.
Dada também a ênfase na meditação nas tradições não-dualistas,
pode-se concluir que os pensamentos são apenas um problema a ser
minimizado. Mas esse não é o caso. Assim como os processos de
pensamento podem obscurecer a verdadeira natureza da percepção e da
ação, a natureza não-dual do pensamento é obscurecida por seu
vínculo com a percepção (hipostatização de percepções em
objetos) e ação (fornecendo intenções de ação). O senso
tripartido de um pensador que pensa pensamentos é ilusório, mas
existe uma alternativa não-dual. Podemos supor que um pensador seja
necessário para fornecer o nexo de causalidade entre vários
pensamentos, para explicar como um pensamento leva a outro; mas, de
fato, não existe esse link. No pensamento não-dual, cada
pensamento é experimentado como surgindo e desaparecendo por si só,
não "determinado" por pensamentos anteriores, mas
"brotando" espontaneamente. Esse pensamento revela a fonte
da criatividade, como testemunhado por muitos escritores,
compositores e até cientistas que insistiram em que "os
pensamentos vieram de si mesmos". Ele também fornece uma
perspectiva frutífera para a interpretação dos trabalhos
posteriores de Martin Heidegger.
(…) [Há] uma
quarta não-dualidade, que pode ser chamada de não-dualidade de
fenômenos e Absoluto, ou melhor, a não-dualidade de dualidade e
não-dualidade. Minha abordagem apoia a afirmação Mahayana de que
samsara é nirvana. Existe apenas uma realidade - este
mundo, aqui e agora - mas esse mundo pode ser experimentado de duas
maneiras diferentes. Samsara é o mundo relativo e fenomenal,
como geralmente experimentado, que é ilusoriamente entendido como
consistindo de uma coleção de objetos discretos (incluindo "eu")
que interagem causalmente no espaço e no tempo. O nirvana é
o mesmo mundo, mas como é em si mesmo, com a não-dualidade
incorporando tanto sujeito quanto objeto em um todo. Se podemos
"interpolar" a partir da experiência não-dual para
explicar a dualidade, mas não vice-versa, isso sugere que nosso
senso comum de dualidade se deve à sobreposição ou interação
entre percepções, ações e pensamentos não-duais. O problema
parece ser que essas três funções de alguma forma interferem uma
na outra, obscurecendo assim a natureza não-dual de cada uma. Os
objetos materiais do mundo externo são percepções não-duais,
objetivadas por conceitos sobrepostos. A ação dualística é devida
à sobreposição da intenção sobre a ação não-dual. Conceitos e
intenções são dualistas porque o pensamento está preocupado com
percepções e ações, em vez de ser experimentado como é em si
mesmo, quando surge de forma criativa.
(…) [Há] cinco
questões principais nas quais o budismo e o Advaita parecem
diametralmente opostos: não-eu versus todo-Eu, apenas-modos versus
todo-Substância, impermanência versus imutabilidade,
todo-condicionalidade versus não-causalidade, e todo-caminho versus
não-caminho. Em cada caso, nossa abordagem não-dualista nos leva a
concluir que o conflito superficial de categorias oculta uma
concordância mais profunda em relação à fenomenologia da
experiência não-dual. Quando se quer descrever a experiência
não-dual nas categorias dualistas da linguagem, duas alternativas
naturalmente se sugerem: ou para negar o sujeito ou negar o objeto; a
partir desta escolha, segue-se a atitude em relação aos outros
desacordos. Em ambos os casos, o que é mais importante do que a
escolha entre negação de sujeito ou objeto é a negação comum a
ambos os sistemas, de qualquer bifurcação entre eu e não-eu, e
assim por diante. (...)
Há mais de
cinquenta anos, Otto Rank desistiu temporariamente de escrever,
reclamando: “Já existe muita verdade no mundo - uma superprodução
que aparentemente não pode ser consumida!” O que ele diria hoje?
(...)
Hoje, a Grande
Divindade na filosofia ocidental está entre aqueles que veem a
ciência como um modelo a ser justificado e emulado e aqueles que
veem o modo científico de conhecimento - cuja preocupação pela
objetividade o torna inevitavelmente dualista - como um único modo
de experiência cognitiva. Alguns dos pensadores mais influentes do
século passado - Nietzsche, Wittgenstein e Heidegger são os mais
citados - criticaram essas categorias dualistas de várias maneiras.
Mas, suas críticas foram mais influentes do que qualquer visão
positiva que eles e outros pudessem oferecer. Apesar da crescente
suspeita sobre os méritos da sociedade tecnocrática e do modo
dualista de experiência que a sustenta, não há acordo sobre qual é
a raiz do problema e, portanto, que alternativa poderia haver.
Uma forma de nos
tornarmos conscientes de nossas próprias suposições é
examinar as cosmovisões de outras civilizações. As filosofias da
Índia e da China são as alternativas mais profundas e sutis, mas
nos apresentam uma profusão de sistemas que, apesar de algumas
semelhanças notáveis, ainda parecem ser polos distantes em alguns
aspectos importantes de sua compreensão da realidade. Sua
preocupação em alcançar outro modo de experiência contrasta
fortemente com as correntes mais influentes da tradição ocidental,
que antes procuraram analisar e controlar nosso modo usual de
experimentar. O que é mais promissor sobre os sistemas asiáticos é
que o modo alternativo de experimentar que enfatizam é entendido
como não apenas revelador, mas também pessoalmente libertador. No
entanto, assim que olhamos mais de perto, a semelhança superficial
entre os sistemas parece se dissolver, pois eles caracterizam esse
outro modo de maneiras muito diferentes. Esse é o ponto em que este
estudo se torna relevante. Se puder ser demonstrado que, sob o choque
de categorias ontológicas, há um acordo fundamental sobre a
natureza desse modo alternativo, nossa situação muda. No lugar de
uma rivalidade entre partidos de oposição rivais, que os enerva e
os impede de se tornarem rivais genuínos do governo em exercício,
temos uma frente unida que deve ser levada a sério. Na minha
opinião, o niilismo da atual cultura ocidental significa que não
podemos nos dar ao luxo de ignorar o que as maiores tradições
filosóficas da Índia e da China podem ter a nos ensinar.
Sobre
o autor
David Robert Loy
é professor, escritor e instrutor na tradição Sanbo Zen do Zem
Budismo japonês (www.davidloy.org).