Por Dan Lusthaus (Adaptado ao português por Marcos Paulo Sousa
- Kadag Lundrub; revisado por Paulo Stekel – Pema Dorje)
A
Yogachara é uma das duas escolas do budismo Mahayana indiano.
Sua fundação é atribuída a dois meios-irmãos, Asanga e
Vasubandhu, mas seus princípios e doutrinas básicas já
estavam em circulação por pelo menos um século antes dos irmãos
viverem. A Yogachara se concentrou nos processos envolvidos na
cognição, a fim de superar a ignorância que impede que se alcance
a liberação dos ciclos cármicos do nascimento e morte. A
atenção constante dos yogacharianos a questões como cognição,
consciência, percepção e epistemologia, juntamente com afirmações
como “objetos externos não existem”, levou alguns a interpretar
mal a Yogachara como uma forma de idealismo metafísico. Eles não
se concentraram na consciência para afirmar que ela, em última
analise, é real (a Yogachara afirma que a consciência é apenas
convencionalmente real, uma vez que surge de momento a momento devido
a causas e condições flutuantes), mas sim porque ela é a causa do
problema cármico que eles procuram eliminar.
A
Yogachara introduziu várias novas doutrinas importantes no budismo,
incluindo vijñapti-matra
(apenas cognição), três naturezas próprias, três giros da roda
do Darma e um sistema de oito consciências (todos explicados
abaixo). Seu exame minucioso da cognição gerou dois
desenvolvimentos importantes: um sistema terapêutico psicológico
elaborado que mapeou os problemas na cognição, juntamente com os
antídotos para corrigi-los, e um esforço epistemológico sincero
que levou a alguns dos trabalhos mais sofisticados sobre percepção
e lógica já realizados por budistas ou indianos.
1 -
Panorama Histórico
Embora
a fundação da Yogachara seja tradicionalmente atribuída a dois
meio-irmãos, Asanga e Vasubandhu (quarto-quinto século dC), a
maioria de suas doutrinas fundamentais já havia aparecido em várias
escrituras um século ou mais antes, principalmente no
Sandhinirmocana Sutra (Elucidando as Conexões
Ocultas). Entre os conceitos-chave da Yogachara introduzidos no
Sandhinirmocana Sutra estão as noções de “apenas
cognição” (vijñapti-mātra), três naturezas próprias
(trisvabhāva), a alaya-vijñana
(consciência depósito), derrubando a base (ashraya- paravṛtti)
e a teoria das oito consciências.
O
Sandhinirmocana Sutra proclamou seus ensinamentos como
pertencentes ao terceiro giro da roda do Darma. O Buda viveu no
século V a.C., mas os Sutras do Mahayana só começaram a aparecer
cerca de quinhentos anos depois. Os novos Sutras do Mahayana
continuaram a ser compostos por muitos séculos. Os Mahayanistas
indianos trataram esses Sutras como documentos que registravam
discursos reais do Buda. No terceiro ou quarto século d.C., uma
ampla e às vezes incomensurável gama de doutrinas budistas havia
surgido, mas quaisquer doutrinas que surgissem nos Sutras podiam ser
atribuídas à autoridade do próprio Buda.
De
acordo com os primeiros Suttas em Páli, quando Buda se iluminou, ele
girou a roda do Darma, ou seja, começou a ensinar o caminho para a
iluminação, o Darma (Pāli: Dhamma). Embora os budistas
sempre afirmassem que o Buda havia adaptado ensinamentos específicos
para as capacidades específicas de audiências específicas, o
Sandhinirmocana Sutra estabeleceu a ideia de que o Buda havia
ensinado doutrinas significativamente diferentes a diferentes
audiências, com base em seus níveis de entendimento; e que essas
diferentes doutrinas iam desde os antídotos provisórios
(pratipakṣa) a certas visões erradas, até um ensinamento
completo que finalmente tornou explícito o que estava implícito nos
ensinamentos anteriores. Em sua opinião, os dois primeiros giros da
roda – os ensinamentos das Quatro Nobres Verdades no budismo nikaya
e abidarma, e os ensinamentos da escola Madhyamaka,
respectivamente – expressaram o Darma através de formulações
incompletas que exigiam maior elucidação (neyartha), a fim
de ser adequadamente entendido e, portanto, eficaz. O primeiro
giro, enfatizando as entidades (dharmas, agregados, etc.)
ao “ocultar” a vacuidade, pode levar a pessoa a manter uma visão
substancialista; o segundo giro, enfatizando a negação
ao “ocultar” as qualidades positivas do Darma, pode ser mal
interpretado como niilismo. O terceiro giro foi um
caminho do meio entre esses extremos que finalmente tornou tudo
explícito (nitārtha). Para não deixar nada oculto, os
yogacharianos embarcaram em uma síntese maciça e sistemática de
todos os ensinamentos budistas que os precederam, examinando e
avaliando-os até os detalhes mais triviais, na tentativa de formular
o ensinamento budista definitivo (nitārtha). Dito de outra
maneira, para ser eficaz, todo o budismo exigia uma reinterpretação
yogachariana. Inovações na análise do abidarma, lógica,
cosmologia, métodos de meditação, psicologia, filosofia e ética
estão entre suas contribuições mais importantes.
O
magnum opus de Asanga, o Yogacharabhumi-shastra
(Tratado sobre os Estágios da Prática de Yoga), é uma enciclopédia
abrangente de termos e modelos budistas (que se baseia fortemente nos
Agamas – o equivalente sânscrito dos Nikayas em Pāli), mapeado de
acordo com sua visão yogachariana de como se progride ao longo dos
estágios do caminho para a iluminação. O magnum opus
pré-yogachariano de Vasubandhu, o Abhidharmakosha (O
Tesouro do Abidarma) também fornece uma visão abrangente e
detalhada do caminho budista, com atenção meticulosa às nuances e
diferenças de opinião sobre uma ampla gama de tópicos.
Embora
ambos os meio-irmãos tenham nascido brâmanes, acredita-se que
Asanga tenha se juntado desde cedo aos Mahishasikas, uma
escola de budismo não-Mahayana profundamente mergulhada nos Agamas.
Asanga e Vasubandhu se tornaram os primeiros yogacharianos
identificáveis, cada um tendo sido inicialmente dedicado a outras
escolas de budismo. Ambos foram autores prolíficos, embora Asanga
tenha atribuído uma parte de seus escritos a Maitreya, o
Futuro Buda que vive no Céu de Tushita. Alguns estudiosos modernos
argumentaram que este Maitreya era um professor humano real, não o
Buda do Futuro, mas a tradição é bastante clara. Depois de doze
anos de meditação infrutífera sozinho em uma caverna (ou floresta,
de acordo com outras versões), durante um momento de total desespero
em que Asanga estava pronto para desistir devido a seu abjeto
fracasso, Maitreya apareceu e o transportou para o Céu de Tushita,
onde ele o instruiu em textos anteriormente desconhecidos, obras
yogacharianas, que Asanga então apresentou a seus colegas budistas.
Precisamente quais são esses textos, é menos claro, pois as
tradições chinesa e tibetana atribuem diferentes obras a Maitreya.
Segundo
a tradição, Vasubandhu estudou primeiro os ensinamentos budistas
Vaibhashika, escrevendo um resumo enciclopédico de seus
ensinamentos que se tornou um trabalho padrão em todo o mundo
budista, o Abhidharmakosha (O Tesouro do Abidarma). Ao se
tornar crítico dos ensinamentos Vaibhashika, ele escreveu um
comentário sobre esse trabalho que refuta muitos de seus princípios.
Intelectualmente inquieto por um tempo, Vasubandhu compôs uma
variedade de trabalhos que traçam sua jornada para Yogachara, sendo
os mais conhecidos o Karmasiddhi-prakaraṇa (A Investigação
que Estabelece o Carma) e o Pañcaskandhaka-prakaraṇa (A
Investigação dos Cinco Agregados). Esses trabalhos mostram uma
profunda familiaridade com as categorias abidármicas discutidas no
Kosha, com tentativas de repensá-las; as disputas filosóficas e
escolásticas da época também são exploradas, e as novas posições
que Vasubandhu formula nesses textos o aproximam das conclusões
yogachariana. Alguns estudiosos modernos argumentaram, com base em
alguns relatos conflitantes das antigas biografias de Vasubandhu, que
esses textos junto com o Abhidharmakosha não foram escritos
pelo Vasubandhu yogachariano, mas por outra pessoa. Uma vez que a
progressão e o desenvolvimento de seu pensamento, no entanto, são
tão surpreendentemente evidentes nesses trabalhos, e a semelhança
de vocabulário e estilo de argumento tão aparente entre os textos,
a teoria de Dois Vasubandhus tem pouco mérito.
Os
escritos de Asanga (e/ou Maitreya) e Vasubandhu variavam de vastos
compêndios enciclopédicos da doutrina budista (por exemplo, o
Yogacharabhumi-shastra, Mahayanasaṃgraha,
Abhidharmasamuccaya), a encapsulações versificadas e
resumidas da praxis Yogachara (por exemplo, o Triṃshika,
Trisvabhava-nirdesha), a tratados sistemáticos focados nos
temas da Yogachara (por exemplo, o Viṃshatika,
Madhyanta-vibhaga), a comentários sobre as escrituras e
tratados Mahayanistas bem conhecidos, como os Sutras do Lótus e do
Diamante.
Uma vez
que o Sandhinirmocana Sutra oferece doutrinas altamente
sofisticadas e bem desenvolvidas, é razoável supor que essas ideias
já estavam em desenvolvimento há algum tempo, possivelmente
séculos, antes que essa escritura surgisse. Visto que Asanga e
Vasubandhu viveram em uma época onde o Sandhinirmocana já
tinha surgido há um século ou mais, também é razoável supor que
essas ideias foram aperfeiçoadas por outros nesse ínterim. Assim, a
afirmação tradicional de que os dois irmãos são os fundadores da
Yogachara é, na melhor das hipóteses, uma meia-verdade. De acordo
com a tradição, Asanga converteu Vasubandhu à Yogachara depois de
ele próprio ter sido ensinado por Maitreya; ele não é conhecido
por ter tido outros discípulos notáveis. A tradição atribui dois
grandes discípulos a Vasubandhu: Dignaga, o grande lógico e
epistemólogo, e Sthiramati, um importante comentarista inicial da
Yogachara. Não está claro se eles realmente conheceram Vasubandhu
(a erudição atual considera isso improvável). Eles podem ter sido
discípulos de seu pensamento, adquiridos exclusivamente a partir de
seus escritos ou através de alguns professores intermediários
esquecidos. Esses dois discípulos exemplificam as duas principais
direções nas quais os ensinamentos de Vasubandhu se dividem.
Depois
de Vasubandhu, a Yogachara se desenvolveu em duas direções ou alas
distintas: 1. uma tradição lógico-epistêmica, exemplificada por
pensadores como Dignaga, Dharmakirti, Shantarakshita e Ratnakirti; 2.
uma psicologia abidármica, exemplificada por pensadores como
Sthiramati, Dharmapala, Xuanzang (Hsüan-tsang) e Vinitadeva.
Enquanto a primeira ala se concentrou em questões de epistemologia e
lógica, a outra ala refinou e elaborou a análise do abidarma
desenvolvida por Asanga e Vasubandhu. Essas alas não estavam
totalmente separadas, e muitos budistas escreveram obras que
contribuíram para ambas as alas. Dignaga, por exemplo, além de seus
trabalhos sobre epistemologia e lógica, também escreveu um
comentário sobre o Abhidharmakosha de Vasubandhu. O que uniu
as duas alas foi uma profunda preocupação com o processo de
cognição, ou seja, análises de como percebemos e pensamos. A
primeira ala abordou isso epistemologicamente, enquanto a última ala
abordou isso de forma psicológica e terapêutica. Ambos
identificaram a raiz de todos os problemas humanos como erros
cognitivos que precisavam de correção.
Várias
noções da Yogachara fundamentais para a ala do Abidarma foram
severamente atacadas por outros budistas, especialmente a noção de
alaya-vijñana, que foi denunciada como algo
semelhante às noções hindus de atman (eu permanente e
invariável) e prakriti (a natureza primordial
substrativa da qual todas as coisas mentais, emocionais e físicas
evoluem). Eventualmente, as críticas se entranharam tanto que a ala
do Abidarma se atrofiou. No final do século VIII, ele foi eclipsado
pela tradição lógico-epistêmica e por uma escola híbrida que
combinava doutrinas básicas da Yogachara com o pensamento do
Tathagatagarbha. A ala
lógico-epistemológica, em parte, contornou a crítica usando o
termo citta-santana, "fluxo mental", em vez
de alaya-vijñana, que
equivale aproximadamente à mesma idéia. Era mais fácil negar que
um "fluxo" representasse um eu reificado. Por outro lado, a
escola híbrida Tathagatagarbha
estava habituada à acusação de contrabandear noções de
individualidade para suas doutrinas, uma vez que, por exemplo, ela
definiu explicitamente o tathagatagarbha
como “permanente, agradável, eu e puro (nitya, sukha,
atman, shuddha)”. Muitos textos do Tathagatagarbha,
de fato, defendem a aceitação da individualidade (atman)
como um sinal de maior realização. A escola híbrida tentou fundir
o tathagatagarbha com a
alaya-vijñana. Os principais trabalhos da
escola híbrida incluem o Lankavatara Sutra, o Ratnagotravibhaga
(Uttaratantra) e, na China, o Despertar da Fé.
Na
China, durante os séculos VI e VII, o budismo foi dominado por
várias formas concorrentes de Yogachara. Uma grande cisma entre as
versões ortodoxas da Yogachara e as versões híbridas do
Tathagatagarbha foi finalmente estabelecida no século VIII em favor
de uma versão híbrida, que se tornou definitiva para todas as
formas subsequentes do budismo do Leste Asiático. As ideias
Yogachara também foram estudadas e classificadas no Tibete. As
escolas Nyingma e Dzogchen adotaram uma
versão híbrida semelhante ao Tathagatagarbha
híbrido chinês; os Gelugpas subdividiram a Yogachara em
vários tipos diferentes e os consideraram ensinamentos preparatórios
para o estudo da Prasangika Madhyamaka, que os Gelugpas
classificam como o ensinamento budista mais elevado. Os tibetanos, no
entanto, tendiam a ver a tradição lógico-epistemológica como
distinta da Yogachara propriamente dita, frequentemente a rotulando
como Sautrantika.
2 -
A Yogachara não é um Idealismo Metafísico
A
escola foi chamada de Yogachara (prática de Yoga) porque
fornecia um quadro abrangente e terapêutico para o engajamento nas
práticas que levam ao objetivo do caminho do bodisatva, isto
é, a cognição iluminada. A meditação serviu como laboratório no
qual se podia estudar como a mente operava. A Yogachara focou na
questão da consciência a partir de uma variedade de abordagens,
incluindo meditação, análise psicológica, epistemologia (como
conhecemos o que conhecemos, como a percepção opera, o que valida o
conhecimento), categorização escolar e análise cármica.
A
doutrina Yogachara é resumida no termo vijñapti-matra,
“nada além de cognição” (geralmente traduzido como “apenas
consciência” ou “apenas mente”) que às vezes foi interpretado
como indicando um tipo de idealismo metafísico, ou seja, a
afirmação de que somente a mente é real e que tudo o mais é
criado pela mente. No entanto, os próprios escritos
yogacharianos defendem algo muito diferente. A consciência
(vijñana) não é a realidade ou a solução
final, mas o problema raiz. Esse problema surge nas operações
mentais comuns e só pode ser resolvido com o fim dessas operações.
A
Yogachara tende a ser mal interpretada como uma forma de idealismo
metafísico, principalmente porque seus ensinamentos são tomados por
proposições ontológicas, e não como avisos epistemológicos sobre
problemas cármicos. O foco da Yogachara na cognição e na
consciência surgiu de sua análise do carma, e não por uma questão
de especulação metafísica. Duas coisas devem ser esclarecidas para
explicar por que a Yogachara não é um idealismo metafísico: 1. O
significado da palavra “idealismo”; e 2. uma diferença
importante entre a maneira como os filósofos indianos e ocidentais
fazem filosofia.
2a -
O Termo “Idealismo”
O termo
“idealismo” entrou em voga aproximadamente durante o tempo de
Kant (embora ele tenha sido usado anteriormente por outros, como
Leibniz) para rotular uma das duas tendências que surgiram em reação
à filosofia cartesiana. Descartes argumentou que havia duas
substâncias básicas, mas separadas, no universo: A Extensão
(o mundo material das coisas no espaço) e o Pensamento (o
mundo da mente e das ideias). Posteriormente, os campos opostos
tomaram uma ou a outra substância como fundamento metafísico,
tratando-a como a substância principal ao reduzir a substância
restante a um status derivativo. Os materialistas argumentavam que
apenas a matéria era, em última análise, real, de modo que o
pensamento e a consciência derivavam de entidades físicas (química,
estados cerebrais etc.). Os idealistas rebateram dizendo que a mente
e suas ideias eram em última análise reais e que o mundo físico
derivava da mente (por exemplo, a mente de Deus, esse est percipi
– ser é ser percebido – de Berkeley, ou de protótipos
ideais, etc.). Os materialistas gravitaram em direção a explicações
mecânicas e físicas do porquê e como as coisas existiam, enquanto
os idealistas tendiam a procurar propósitos – morais e racionais –
para explicar a existência. Idealismo significava “ideia-ismo”,
frequentemente no sentido em que a noção de "ideias"
(eidos) de Platão era entendida na época, ou seja, tipos
ideais que transcendiam o mundo físico e sensorial e forneciam a
forma (eidos) que dava significado e propósito à matéria. À
medida que o materialismo, apoiado pelos avanços da ciência
materialista, ganhou uma aceitação mais ampla, aqueles inclinados a
objetivos espirituais e teológicos voltaram-se cada vez mais para o
idealismo como uma contra-medida. Em pouco tempo, havia muitos tipos
de materialismo e idealismo.
O
idealismo, em seu sentido mais amplo, passou a abranger tudo o que
não era materialismo, que incluía tantos tipos diferentes de
posições que o termo perdeu qualquer esperança de univocidade. A
maioria das formas de pensamento teísta e teológico eram, por essa
definição, tipos de idealismo, mesmo que aceitassem a matéria como
real, uma vez que eles também afirmavam algo mais real do que a
matéria, como o criador da matéria (no monoteísmo) ou como a
realidade por trás da matéria (no panteísmo). Empiristas extremos
que aceitavam apenas suas próprias experiências e sensações como
reais também eram idealistas. Assim, o termo “idealismo” unia
monoteístas, panteístas e ateus. Em um extremo, havia várias
formas de idealismo metafísico que colocavam a mente (ou mentes)
como a única realidade última. O mundo físico era uma ilusão
irreal ou não tão real quanto a mente que o criou. Para evitar o
solipsismo (que é uma versão subjetivada do idealismo metafísico),
os idealistas metafísicos postulavam uma mente fundamental que
visualiza e cria o universo.
Um tipo
mais limitado de idealismo é o idealismo epistemológico, que
argumenta que, uma vez que o conhecimento do mundo existe apenas no
reino mental, não podemos conhecer os objetos físicos reais como
eles realmente são, mas apenas como eles aparecem em nossas
representações mentais deles. Os idealistas epistemológicos
poderiam ser materialistas ontológicos, aceitando que a
matéria existe substancialmente; eles poderiam até aceitar que
estados mentais derivassem pelo menos em parte de processos
materiais. O que negaram foi que a matéria pudesse ser conhecida em
si mesma diretamente, sem a mediação de representações mentais.
Embora incognoscível em si mesma, a existência e as propriedades da
matéria podem ser conhecidas por inferência baseada em certas
consistências na maneira como as coisas materiais são representadas
na percepção.
O
idealismo transcendental sustenta que não apenas a matéria,
mas também o eu (ou o “ser”), permanecem transcendentais em um
ato de cognição. Kant e Husserl, que eram ambos idealistas
transcendentais, definiram “transcendental” como “aquilo que
constitui a experiência, mas que não é em si indicado na
experiência”. Um exemplo mundano seria o olho, que é a condição
para ver, mesmo que o olho não veja a si mesmo. Aplicando a visão e
tirando inferências dela, pode-se conhecer o papel que os olhos
desempenham ao ver, mesmo que nunca se veja os próprios olhos. Da
mesma forma, as coisas em si mesmas e o eu transcendental poderiam
ser conhecidos se os métodos adequados fossem aplicados para
descobrir as condições que constituem a experiência, mesmo que
tais condições não apareçam por si mesmas na experiência. Mesmo
aqui, onde as questões epistemológicas estão na linha de frente,
na verdade, são as preocupações ontológicas, ou seja, o status
ontológico do eu e dos objetos, que está realmente em jogo. A
filosofia ocidental raramente escapa dessa inclinação ontológica.
Aqueles que aceitaram que tanto o eu quanto seus objetos eram
incognoscíveis, exceto pela razão, e que essa(s) razão(ões) era
sua causa e propósito de existir – fundamentando assim
epistemológica e ontologicamente tudo na mente e em suas ideias –
foram rotulados de Idealistas Absolutos (por exemplo, Schelling,
Hegel, Bradley), uma vez que apenas essas ideias são absolutas
enquanto tudo o mais é relativo a elas.
Com
exceção de alguns idealistas epistemológicos, o que une todas as
posições enumeradas acima, incluindo os materialistas, é que essas
posições são ontológicas. Eles estão preocupados com o status
ontológico dos objetos dos sentidos e do pensamento, bem como com a
natureza ontológica do eu que conhece. A filosofia ocidental
dominante desde Platão e Aristóteles tratou a ontologia e a
metafísica como a busca filosófica final, com o papel da
epistemologia sendo pouco mais do que fornecer acesso e justificativa
para as buscas e compromissos ontológicos de alguém. Uma vez
que muitos dos que são condenados como excessos da filosofia –
como o ceticismo, o solipsismo e o sofisma – podem ser e foram
acusados de derivar de questionamentos epistemológicos hiperativos,
a epistemologia foi muitas vezes considerada suspeita e, em algumas
formulações teológicas, considerada inteiramente dispensável em
favor da fé. A ontologia é primária e a epistemologia é
secundária ou dispensável.
2b -
Diferenças entre as abordagens Indiana e Ocidental da filosofia
Na
filosofia indiana, encontra-se o inverso disso. A epistemologia
(pramaṇavada) é primária, tanto no sentido de que ela deve
estar envolvida antes de tentar qualquer outro empreendimento
filosófico, quanto no sentido de que os limites das alegações
metafísicas de uma pessoa são sempre inviolavelmente definidos
pelos parâmetros estabelecidos pela sua epistemologia. Antes que
alguém possa fazer reivindicações, é necessário estabelecer a
base sobre a qual tais reivindicações podem ser comprovadas e
justificadas. Os indianos chegaram ao ponto de admitir que, se alguém
deseja debater com um oponente que sustenta uma visão diferente,
deve-se primeiro encontrar uma base epistemológica comum sobre a
qual argumentar. Caso contrário, nenhum debate significativo pode
acontecer.
Uma vez
que a ontologia de alguém (prameya) depende do que sua
epistemologia permite, muitas escolas indianas tentaram incluir
coisas em sua lista de meios válidos de conhecimento (pramāṇa)
que facilitariam suas reivindicações. Os hindus, por exemplo,
consideravam suas Escrituras um meio válido de conhecimento, mas
outros indianos, como budistas e jainistas, rejeitavam a autoridade
das Escrituras Hindus. Portanto, se um hindu debatesse com um budista
ou jainista, ele não podia apelar para a autoridade das Escrituras
Hindus, mas precisava encontrar uma base epistemológica comum. No
caso do budismo, isso seria a percepção e a inferência; no caso do
jainismo, apenas a inferência. Todas as escolas, exceto os
jainistas, aceitaram a percepção como um meio válido de
conhecimento, o que significa que o conhecimento sensorial é válido
(se qualificado como não errôneo, não alucinatório, etc.). O que
atualmente não é observado, mas é em princípio observável, pode
ser conhecido por inferência. Sem realmente ver o fogo, sabe-se que
ele deve existir em uma colina quando se vê fumaça naquele local,
porque tanto o fogo quanto a fumaça são, em princípio, entidades
observáveis, e existe uma relação necessária observada (vyāpti)
entre fumaça e fogo, a saber. Onde há fumaça há fogo. Se alguém
estivesse perto do fogo na colina, sem dúvida veria o fogo. Não se
pode fazer inferências válidas sobre coisas impossíveis de serem
percebidas, como unicórnios, uma vez que nenhuma relação
necessária observável é obtida; portanto, não se pode inferir que
um unicórnio esteja na colina. A perceptibilidade é, portanto, um
componente indispensável da percepção e da inferência e,
portanto, para os budistas, de todo o conhecimento válido. Para ser
considerado “real” (dravya) pelos padrões da lógica
budista, uma coisa deve produzir um efeito observável. Os budistas
discutiam entre si se algo era real apenas enquanto produzia esse
efeito observável (posição Sautrantika), ou se algo poderia ser
considerado real se produzisse um efeito observável em algum momento
durante a sua existência (posição Sarvastivada), mas todos
concordavam que a coisa deve ter eficácia causal observável
(karaṇa) para ser considerada real. Isso ajuda a explicar a
centralidade da percepção e da consciência para a teoria
Yogachara.
A ala
lógico-epistemológica da Yogachara estabeleceu uma nítida
distinção entre percepção e inferência. A percepção
envolve cognições sensoriais de particulares únicos, momentâneos
e discretos. A inferência envolve universais linguísticos e
conceituais, uma vez que as palavras são significativas e
comunicativas apenas na medida em que designam e participam de
classes universais comumente compartilhadas e compreendidas pelos
usuários da língua. As inferências são verdadeiras ou falsas,
dependendo de quão precisas ou erroneamente elas se aproximam dos
elementos ou particulares sensoriais, mas mesmo quando
linguisticamente verdadeiras, elas ainda são verdadeiras apenas em
relação (saṃvṛti) às sensações que elas aproximam.
Por outro lado, a sensação (e apenas a sensação) está além do
idioma. A cognição sensorial desprovida de sobreposição
linguística ou afirmações teóricas (samaropa)
é a cognição correta e precisamente – e não aproximadamente –
verdadeira (paramartha). Embora isso pareça
envolver afirmações metafísicas sobre categorias como particulares
e universais, sensação e linguagem, de fato isso é um pedido
para que conheçamos as coisas como elas são, sem impor nenhuma
afirmação metafísica ou quatro conceitual a elas. O cognitivo
e o epistêmico, não o metafísico, é que está em jogo. O que está
acontecendo está além da descrição, não porque é algo inefável
residindo fora ou atrás da experiência humana, mas porque é o
próprio material sensorial da experiência humana cuja realidade
momentânea e única não pode ser reduzida a conceitos ou linguagem
universalistas e eternalistas. Interpretar essa posição em si como
uma metafísica da particularidade é permanecer preso em um quatro
conceitual e, consequentemente, perder seu ponto.
Preocupações
epistemológicas permeiam a filosofia indiana. Isto é especialmente
verdade na filosofia budista. Muitos textos budistas afirmam que o
entendimento superior não tem nada a ver com ontologia, que focar na
existência ou na inexistência de algo (astinasti,
bhavabhava) é um erro de categoria enganosa. Eles
tipicamente removem itens importantes – como a vacuidade e o
nirvana – da consideração ontológica, declarando explicitamente
que eles não têm absolutamente nada a ver com existência ou
inexistência, ser e não-ser e alertam ainda que isso não se trata
de uma licença para imaginar um sentido mais elevado de existência
ou ser no qual esses itens são então incluídos ou negados. O
objetivo budista não é a construção de uma ontologia mais
perfeita. Em vez disso, seu objetivo principal é sempre a remoção
da ignorância. Assim, enquanto os budistas frequentemente suspendem
a especulação ontológica e metafísica (tarka),
denunciando-a como inútil ou perigosa, a cognição correta
(samyag-jñana)
é invariavelmente louvada. Até os Madhyamakas, que questionam a
viabilidade de grande parte da epistemologia budista, insistem que
devemos entender onde estão os erros e corrigir a maneira como
conhecemos as coisas conformemente. Declarando sem rodeios, o budismo
está preocupado em Ver, não em Ser; ou seja, na epistemologia e não
na ontologia.
Impressionantemente,
nenhum texto Yogachara indiano afirma que o mundo foi criado pela
mente. O que eles afirmam é que confundimos nossas
interpretações projetadas do mundo com o próprio mundo, ou seja,
tomamos nossas próprias construções mentais como o mundo. Seu
vocabulário para isso é tão rico quanto sua análise: kalpanā
(construção conceitual projetiva), parikalpa e parikalpita
(construções imaginárias onipresentes), abhūta-parikalpa
(imaginando algo em um local em que não existe), prapañca
(proliferação de construções conceituais), para citar alguns. A
cognição correta é definida como a remoção daqueles obstáculos
que nos impedem de ver condições causais dependentes da maneira que
elas realmente vêm a ser (yathā-bhūtam). Para Yogachara,
essas condições causais são cognitivas, não metafísicas; são as
condições mentais e perceptivas pelas quais sensações e
pensamentos ocorrem, não as maquinações metafísicas de um Criador
ou um domínio imperceptível. O que se conhece por meio da cognição
correta é eufemisticamente chamado de tathata,
“talidade”, que os textos rapidamente apontam que não é uma
coisa real, mas apenas uma palavra (prajñapti-matra).
2c -
A Abordagem Filosófica da Yogachara
O que é
crucial para começar a entender a Yogachara é que sua atenção às
questões perceptivas e cognitivas está alinhada com o pensamento
budista básico, e que essa atenção é epistemológica e não
metafísica. Quando os Yogacharianos discutem “objetos”, eles
estão falando sobre objetos cognitivos, não sobre entidades
metafísicas. Objetos cognitivos (viṣaya) são partes
reais e integrais da cognição e, portanto, ocorrem dentro de atos
de consciência. Embora confirmando o viṣaya como parte
integrante dos atos cognitivos, eles negam que qualquer artha
(aquilo para o qual uma intencionalidade intenta, isto é, um objeto
de intencionalidade) exista fora do ato cognitivo em que ele é
aquilo que é intencionado. Objetos intencionais aparecem apenas
em atos de intencionalidade, ou seja, na consciência. Em
outras palavras, os yogacharianos não afirmam que nada exista fora
da mente. Em primeiro lugar, não existe uma mente essencial para
Yogachara; cada mente individual é distinta. Os yogacharianos
não são monadologistas no molde Leibnitziano. Segundo, o artha
não significa um mero “objeto” neutro; mas antes um telos
(finalidade, fim) para o qual um ato de consciência intenta. Esse
foco de intenção – a intenção sendo uma forma de desejo – é
essencial para a consciência e, como um foco, nunca ocorre em nenhum
outro lugar que não seja em um ato de consciência. Para Yogachara,
o visaya (o objeto cognitivo) e artha (o objeto
intencional) existem, mas apenas nos atos de consciência nos quais
eles são constituídos como cognitivos e intencionais. É importante
ter em mente que, para a Yogachara, um ato de consciência é tanto
constituído por intencionalidade e fatores cognitivos quanto
vice-versa. A consciência não goza de status transcendente, nem
serve como fundamento metafísico. A consciência é real em
virtude de sua facticidade – o fato de que seres sencientes
experimentam cognições – e não por causa de uma primazia
ontológica.
Em vez
de oferecer mais uma ontologia, os yogacharianos tentam descobrir e
eliminar as predileções e tendências (ashrava, anushaya)
que obrigam as pessoas a gerar e se apegar a essas construções
ontológicas teóricas. Uma vez que, de acordo com a Yogachara,
todas as ontologias são construções epistemológicas, entender
como a cognição opera é entender como e por que as pessoas
constroem as ontologias às quais se apegam. O apego ontológico
é um sintoma da projeção cognitiva (pratibimba,
parikalpita). Um exame cuidadoso dos textos Yogachara revela
que eles não fazem alegações ontológicas, exceto para
questionar a validade de fazer alegações ontológicas. A razão
que eles dão para o seu silêncio ontológico é que, se oferecessem
uma descrição metafísica, essa descrição seria apropriada por
seus interpretadores que, devido às suas inclinações, projetariam
sobre ela o que desejassem que a realidade fosse, reduzindo assim a
descrição a sua própria teoria pressuposta da realidade. Esse
reducionismo projetivo é o problema e o sintoma das tendências mais
básicas que afetam os seres sencientes. É isso que
vijñapti-matra significa, ou seja, confundir as
nossas projeções com aquilo no qual estamos projetando. Os
Trinta Versos de Vasubandhu (Triṃshika) afirmam que se
alguém se apega à projeção da ideia de vijñapti-matra,
então a pessoa falha em realmente residir na compreensão de
vijñapti-matra (versículo 27). A cognição
iluminada livre de todos os erros cognitivos é definida como
nirvikalpa-jñana, “a cognição sem
construção imaginativa”, isto é, sem sobreposição conceitual.
Ironicamente, os interpretadores e oponentes da Yogachara, no
entanto, não puderam deixar de projetar de forma redutiva teorias
metafísicas sobre o que os yogacharianos disseram, por um lado
provando que a Yogachara estava certa, mas por outro, dificultando o
acesso aos ensinamentos reais da Yogachara. Interpretar suas
análises epistemológicas como pronunciamentos metafísicos
fundamentalmente interpreta mal seu projeto.
Os
argumentos que a Yogachara emprega frequentemente se assemelham aos
formulados por idealistas epistemológicos. Reconhecendo essas
afinidades, os estudiosos ocidentais, no início do século XX,
compararam a Yogachara a Kant, e, mais recentemente, começaram a
pensar que a fenomenologia de Husserl se aproxima ainda mais. De
fato, existem semelhanças intrigantes, por exemplo, entre a
descrição de Husserl da noese (a consciência projetando seu
campo cognitivo) e noema (o objeto cognitivo construído), por
um lado, e a análise da Yogachara do agarrador (cognitivo) e do
agarrado (grahaka e grahya) por outro. Mas também
existem diferenças importantes entre esses filósofos ocidentais e a
Yogachara. As três mais importantes são:
(1)
Kant e Husserl minimizam as noções de causalidade, enquanto
Yogachara desenvolveu teorias causais sistemáticas complexas que
considerou de maior importância;
(2) não
há contrapartida ao carma ou à iluminação nas teorias ocidentais,
enquanto essas são a própria razão de ser de toda a teoria e
prática Yogachara;
(3)
finalmente, as filosofias ocidentais são projetadas para oferecer o
melhor acesso possível a um reino ontológico (pelo menos suficiente
para reconhecer sua existência), enquanto a Yogachara é crítica
desse motivo em todas as suas manifestações.
Na
medida em que idealistas epistemológicos também podem ser realistas
críticos, a Yogachara pode ser considerada um tipo de idealismo
epistemológico, com a ressalva de que o objetivo de seus argumentos
não era gerar uma teoria ou compromisso ontológico aprimorado, mas
sim uma insistência para que prestemos máxima atenção às
condições epistemológicas e psicológicas que nos obrigam a
construir e apegar-se a teorias ontológicas.
3 -
Carma, Matéria e Apropriação Cognitiva
A chave
da teoria Yogachara está nas noções budistas de carma que
eles herdaram e rigorosamente reinterpretaram. Como os textos
budistas anteriores já explicaram, o carma é responsável pelo
sofrimento e pela ignorância, e o carma consiste em qualquer
atividade intencional de corpo, linguagem ou mente. Uma vez que o
fator crucial é a intenção, e a intenção é uma condição
cognitiva, qualquer falta de cognição é não-cármica e
não-intencional. Portanto, por definição, o que é
não-cognitivo não pode ter influência ou consequências cármicas.
Como o budismo visa superar a ignorância e o sofrimento através da
eliminação do condicionamento cármico, o budismo, segundo os
yogacharianos, preocupa-se apenas com a análise e correção do que
quer que esteja dentro do domínio das condições cognitivas.
Portanto, questões sobre a realidade última das coisas
não-cognitivas são simplesmente irrelevantes e inúteis para
resolver o problema do carma. Além disso, os yogacharianos
enfatizam que categorias como materialidade (rupa) são categorias
cognitivas. “Materialidade” é uma palavra para as cores,
texturas, sons etc. que experimentamos em atos de percepção, e é
apenas na medida em que são experimentados, percebidos e apreendidos
ideologicamente, tornando-se objetos de apego, que eles tem
significado cármico. Atos intencionais também têm motivos e
consequências morais. Uma vez que os efeitos são moldados por suas
causas, um ato com uma intenção saudável tenderia a produzir
frutos saudáveis, enquanto intenções prejudiciais produzem efeitos
prejudiciais.
Em
contraste com a dimensão cármica cognitiva, o budismo
considerava elementos materiais (rupa)
carmicamente neutros. O problema com as coisas materiais não é
sua materialidade, mas a psicologia da apropriação (upadana)
– desejo, agarramento, apreensão, apego – que infesta nossas
ideias e percepções de tais coisas. Não é a materialidade do ouro
que leva a problemas, mas nossas ideias sobre o valor do ouro e as
atitudes e ações em que nos envolvemos como resultado dessas
ideias. Essas ideias foram adquiridas através de experiências
anteriores. Pela exposição repetida a certas ideias e condições
cognitivas, a pessoa é condicionada a responder habitualmente de
maneira semelhante a circunstâncias semelhantes. Eventualmente,
esses hábitos são corporificados, tornando-se reflexivos e
pressupostos. Para os budistas, esse processo pelo qual o
condicionamento se corporifica (samskara) não se limita a uma
única vida, mas se acumula ao longo de muitas vidas. Samsara
(o ciclo contínuo de nascimento e morte) é a representação
cármica dessa repetição, a recorrência de hábitos cognitivos
corporificados em novas situações e formas de vida.
Para
todos os budistas, isso segue um cálculo sensorial simples: os
sentimentos agradáveis nós desejamos manter ou repetir. Os
sentimentos dolorosos nós desejamos eliminar ou evitar. Prazer e
dor, recompensa e punição, aprovação e desaprovação, e assim
por diante, nos condicionam. Nossos hábitos cármicos (vasanas)
são construídos dessa maneira. Uma vez que tudo é impermanente,
sentimentos agradáveis não podem ser mantidos ou repetidos
permanentemente; coisas dolorosas (como doença e morte) não podem
ser evitadas permanentemente. Quanto maior a dissonância entre
nossa experiência impermanente atual e nossas expectativas para fins
desejados permanentes, mais sofremos e maior a tendência (anushaya)
de projetar nossos desejos no mundo como compensação. Embora
nada seja permanente, imaginamos todo tipo de coisas permanentes –
de Deus à alma e às essências – em um esforço para evitar
enfrentar o fato de que nenhum de nós tem um eu permanente. Pensamos
que, se pudermos provar que algo é permanente, qualquer coisa,
também temos uma chance de permanência. A ansiedade sobre a nossa
falta de eu e todas as confusões cognitivas e cármicas que a
ansiedade gera são denominadas de várias coisas pela Yogachara,
incluindo jñeyavaraṇa
(obstrução do conhecível, isto é, nossas auto-obsessões nos
impedem de ver as coisas como são) e abhūta-parikalpa
(imaginar que algo – a saber, permanência ou eu – existe em um
lugar onde está ausente).
Budistas
anteriores – principalmente os Sautrantikas, mas também as escolas
do Abidarma – desenvolveram um vocabulário metafórico sofisticado
para descrever e analisar as causas e condições do carma em termos
de sementes (bījā). Assim como uma planta se desenvolve a
partir de suas raízes invisíveis no subsolo, as experiências
cármicas anteriores se propagam na mente sem serem vistas; assim
como uma planta brota do solo quando nutrida por condições
adequadas, os hábitos cármicos, sob as causas e condições certas,
reafirmam-se como novas experiências; assim como as plantas atingem
a fruição produzindo novas sementes que reentram no solo para criar
raízes e começar a crescer novamente uma planta semelhante do mesmo
tipo, as ações cármicas produzem frutos saudáveis ou prejudiciais
que se tornam sementes latentes para um tipo semelhante de ação ou
cognição posterior. Assim como as plantas reproduzem apenas sua
própria espécie, os atos cármicos saudáveis ou prejudiciais
produzem efeitos segundo sua própria espécie. Esse ciclo serviu
como metáfora para o processo de condicionamento cognitivo, bem como
para o ciclo recorrente de nascimento e morte (samsara). Uma
vez que a Yogachara aceita a doutrina budista da momentaneidade,
diz-se que as sementes perduram apenas por um momento durante o qual
elas se tornam a causa de uma semente semelhante que as sucede.
Sementes momentâneas são causalmente ligadas em cadeias
sequenciais, cada semente momentânea é um elo em uma cadeia de
causas e efeitos cármicos.
As
sementes são basicamente divididas em dois tipos: saudáveis e
prejudiciais. As sementes prejudiciais são os hábitos cognitivos
adquiridos, impedindo que se alcance a iluminação. As sementes
saudáveis – também denominadas “puras” e “não-contaminadas”
– dão origem a mais sementes puras, que aproximam a pessoa da
iluminação. Em geral, a Yogachara diferencia as sementes internas
(condicionamento pessoal) das sementes externas (sendo
condicionadas por outros). As próprias sementes podem ser
modificadas ou afetadas pela exposição a condições externas
(sementes externas), que podem ser benéficas ou prejudiciais. A
exposição a condições contaminantes intensifica as sementes
prejudiciais, enquanto o contato com condições “puras”, como
ouvir o Ensinamento Correto (Saddharma), pode estimular as
sementes saudáveis a aumentar, diminuindo e, finalmente, erradicando
as sementes prejudiciais.
Outra
metáfora do condicionamento cármico que acompanha a metáfora da
semente é a “perfumação” (vasana). Um tecido exposto ao
cheiro de perfume adquire seu aroma. Da mesma forma, alguém é
mental e comportamentalmente condicionado pelo que experimenta. Esse
condicionamento produz hábitos cármicos, mas assim como o odor pode
ser removido do tecido, o condicionamento pode ser purificado de
hábitos perfumados. Tipicamente são discutidos três tipos de
perfumação: 1. hábitos linguísticos e conceituais; 2. hábitos de
interesse próprio e “apreensão ao eu” (ātma-grāha),
isto é, a crença em um eu e o que pertence a esse eu; e 3. Hábitos
que levam a situações de vida subsequentes (bhāvāṅga-vāsanā),
isto é, as consequências cármicas a longo prazo de atividades
cármicas específicas.
A
literatura Yogachara debate a relação entre as sementes e a
perfumação. Alguns afirmam que as sementes e a perfumação são
realmente dois termos para a mesma coisa, isto é, os hábitos
cármicos adquiridos. Outros afirmam que as sementes são
simplesmente os efeitos da perfumação, ou seja, todo
condicionamento é adquirido através da experiência. Outros ainda
afirmam que “semente” refere-se às cadeias de hábitos
condicionados que alguém já tem (seja adquiridos nesta vida, em
alguma vida anterior ou mesmo “sem princípio”), enquanto
“perfumação” denota as experiências que alguém tem que
modificam ou afetam o desenvolvimento de suas sementes. “Sem
principio” pode ser entendido como um corolário do termo
“transcendental” de Husserl, isto é, uma sequência causal que
constitui uma experiência presente cuja própria causa original
permanece não revelada nessa experiência. Alguns alegaram que as
possibilidades de iluminação dependiam inteiramente do tipo de
sementes que já possuíamos; a perfumação simplesmente agia como
um catalisador, mas não podia fornecer sementes saudáveis se ainda
não as possuíssemos. Os seres totalmente desprovidos de sementes
saudáveis eram chamados icchantikas (incorrigíveis); tais
seres nunca poderiam alcançar a iluminação. Alguns outros budistas
Mahayana, sentindo que isso violava a máxima Mahayana da salvação
universal, atacaram a doutrina da incorrigibilidade.
A causa
cármica da doença fundamental (duhkha) é o desejo expresso
através do corpo, fala ou mente. Portanto, a Yogachara se concentrou
exclusivamente em atividades cognitivas e mentais em relação às
suas intenções, isto é, as operações da consciência, uma vez
que o problema estava localizado ali. O budismo sempre identificou a
ignorância e o desejo como as principais causas do sofrimento e
renascimento. Os yogacharianos mapearam essas funções mentais para
desmantelá-las. Como mapas desse tipo, em ultima analise, também
eram criações da mente, eles também teriam que ser abandonados no
decorrer do desmantelamento, mas seu valor terapêutico teria sido
útil para promover a iluminação. Essa visão da conveniência
provisória do budismo remonta ao próprio Buda. Os yogacharianos
descrevem a iluminação como resultante da Derrubada da Base
Cognitiva (ashraya-paravṛtti), isto é, invalidando as
projeções e imaginações conceituais que atuam como base de nossas
ações cognitivas. Essa derrubada transforma o modo básico de
cognição da consciência (vijñana,
discernimento) em jñana (conhecimento direto).
O prefixo vi- é equivalente ao dis- ou des- em português –
dis-criminar, dis-tinguir, des-engajar, des-conectar – significando
bifurcar ou separar. O conhecimento direto foi definido como
não-conceitual (nirvikalpa-jñana), ou seja,
desprovido de sobreposição interpretativa.
O caso
dos elementos materiais é importante para entender uma das razões
pelas quais a Yogachara não é um idealismo metafísico. Nenhum
texto Yogachara nega a materialidade (rupa) como uma categoria
budista válida. Pelo contrário, os yogacharianos incluem a
materialidade em sua análise. Sua abordagem da materialidade está
bem enraizada nos precedentes budistas. Os textos budistas
frequentemente substituem o termo “contato sensorial” (Pāli:
phassa, sânscrito: sparsha) pelo termo
“materialidade”. Essa substituição é um lembrete de que as
formas físicas são sensoriais, que são conhecidas por serem o que
são através da sensação. Até os primeiros textos budistas
explicam que os quatro elementos materiais primários (mahabhuta)
são as qualidades sensoriais da solidez, fluidez, temperatura e
mobilidade; sua caracterização como terra, água, fogo e ar,
respectivamente, é declarada uma abstração. Em vez de se
concentrar no fato da existência material, observa-se como uma coisa
física é detectada, sentida e percebida. A Yogachara nunca nega
a existência de objetos dos sentidos (viṣaya,
artha, alambana, etc.), mas
nega que faça qualquer sentido falar em objetos cognitivos que
ocorrem fora de um ato de cognição. Imaginar essa ocorrência é
em si um ato cognitivo. A Yogachara está interessada em saber por
que nos sentimos compelidos a imaginar.
Tudo
o que conhecemos, concebemos, imaginamos ou temos consciência,
conhecemos através da cognição, incluindo a noção de que as
entidades podem existir independentemente da nossa cognição. A
mente não cria o mundo físico, mas produz as categorias
interpretativas através das quais conhecemos e classificamos o mundo
físico, e ela faz isso de forma tão perfeita que confundimos nossas
interpretações com o próprio mundo. Essas interpretações,
que são projeções de nossos desejos e ansiedades, tornam-se
obstruções (avaraṇa), impedindo-nos de ver o que realmente
é o caso. Em termos simples, somos cegados por nossos próprios
interesses, nossos próprios preconceitos (que significa o que já é
pré-julgado) e desejos. A cognição não-iluminada é um ato de
apropriação. A Yogachara não fala sobre sujeitos e objetos; ao
contrário, analisa a percepção em termos de agarradores (grahaka)
e o que é agarrado (grahya).
A
Yogachara às vezes se assemelha a um idealismo epistemológico, que
não afirma que este ou qualquer mundo seja construído pela mente,
mas que geralmente somos incapazes de distinguir nossas construções
e interpretações mentais do mundo do próprio mundo. A
Yogachara chama esse narcisismo da consciência de vijñapti-matra,
“nada além de construção consciente”. Um truque enganoso está
embutido no modo como a consciência opera a cada momento. A
consciência projeta e constrói um objeto cognitivo de tal maneira
que renega sua própria criação – fingindo que o objeto está “lá
fora” – a fim de tornar esse objeto capaz de ser apropriado.
Mesmo enquanto o que conhecemos ocorre dentro do nosso ato de
cognição, nós o conhecemos como se fosse externo à nossa
consciência. A realização de vijñapti-matra
expõe esse truque intrínseco ao funcionamento da consciência,
eliminando-o. Quando esse engano é removido, o modo de cognição
não é mais denominado vijñana (consciência);
ele se tornou cognição direta (jñana) (veja
acima). A consciência se engaja nesse jogo enganador de projeção,
dissociação e apropriação porque não existe um “eu”. De
acordo com o budismo, a visão errônea mais profunda e perniciosa
mantida pelos seres sencientes é a visão de que existe um eu
permanente, eterno, imutável e independente. Não existe tal eu, e
no fundo sabemos disso. Isso nos deixa ansiosos, pois implica que
nenhum eu ou identidade perdura para sempre. Para amenizar essa
ansiedade, tentamos construir um eu, preencher o vazio ansioso, fazer
algo duradouro. A projeção de objetos cognitivos para
apropriação é a principal ferramenta da consciência para essa
construção. Se eu possuo coisas (ideias, teorias, identidades,
objetos materiais), então “eu sou”. Se existem objetos eternos
que posso possuir, então, também devo ser eterno. Para minar esse
agarramento apropriativo desesperado e errôneo, os textos Yogachara
dizem: Negue o objeto e o eu também é negado (por exemplo,
Madhyānta-vibhāga, 1: 4, 8).
Os
yogacharianos negam a existência de objetos externos em dois
sentidos.
1. Em
termos de experiência convencional, eles não negam objetos como
cadeiras, cores e árvores, mas rejeitam a afirmação de que tais
coisas aparecem em qualquer outro lugar que não na consciência.
É a externalidade, não os objetos em si, que eles desafiam.
2.
Embora esses objetos sejam admissíveis como convencionalismos, em
termos mais precisos, não há cadeiras, árvores etc. São apenas
palavras e conceitos pelos quais reunimos e interpretamos sensações
discretas que surgem momento a momento em um fluxo causal. Essas
palavras e conceitos são projeções mentais.
A
questão não é elevar a consciência, mas nos advertir a não
sermos enganados por nosso próprio narcisismo cognitivo. A
cognição iluminada é comparada a um grande espelho que reflete
tudo de maneira imparcial e completa, sem apego ao que passou e sem
expectativa ao que pode surgir. Que tipo de objetos os iluminados
conhecem? Os yogacharianos se recusam a fornecer uma resposta, além
de dizer que ela é purificada da contaminação cármica
(anashrava), uma vez que qualquer descrição que eles
pudessem oferecer seria apenas apropriada e reduzida às categorias
cognitivas habituais que já nos impedem de ver corretamente.
4 -
As Oito Consciências
A
inovação mais famosa da escola Yogachara foi a doutrina das oito
consciências. O budismo padrão descreveu seis consciências,
cada uma produzida pelo contato entre seu órgão sensorial
específico e um objeto sensorial correspondente. Quando um olho
funcional entra em contato com uma cor ou forma, a consciência
visual é produzida. Quando um ouvido funcional entra em contato com
um som, a consciência auditiva é produzida. A consciência não
cria a esfera sensorial, mas, pelo contrário, é um efeito da
interação de um órgão sensorial e seu devido objeto. Se um olho
não funciona, mas um objeto está presente, a consciência visual
não surge. O mesmo acontece se um olho funcional não encontrar um
objeto visual. A consciência surge dependente da sensação.
Ao todo existem seis órgãos dos sentidos (olho, ouvido, nariz,
boca, corpo e mente) que interagem com seus respectivos domínios de
objetos sensoriais (as esferas visual, auditiva, olfativa, gustativa,
tátil e mental). Observe que a mente é considerada outro sentido,
uma vez que ela funciona como os outros sentidos, envolvendo a
atividade de um órgão do sentido (manas), seu domínio
(mano-dhatu) e a consciência (mano-vijñana)
resultante do contato do órgão e do objeto. Cada domínio é
discreto, o que significa que visão, audição e cada uma das
esferas restantes funciona separada uma da outra. Portanto, surdos
podem ver e cegos podem ouvir. Os objetos também são inteiramente
específicos ao seu domínio, e o mesmo se aplica às consciências.
A consciência visual é totalmente distinta da consciência
auditiva, e assim por diante. Portanto, existem seis tipos distintos
de consciência (a consciência visual, auditiva, olfativa,
gustativa, tátil e mental). Esses dezoito componentes da experiência
– ou seja, seis órgãos dos sentidos, seis domínios de objetos
dos sentidos e seis consciências resultantes – foram chamados de
dezoito dhatus. De acordo com a doutrina budista padrão,
esses dezoito esgotam toda a extensão de tudo no universo, ou mais
precisamente, o sensório.
O
Abidhamma budista inicial, concentrando-se nos aspectos mentais e
cognitivos do carma, expandiu os três componentes do nível mental –
mente (manas), objetos mentais (mano-dhatu) e
consciência mental (mano-vijñana) – em um
complexo sistema de categorias. O vetor aperceptivo em qualquer
momento cognitivo foi chamado de citta. Os objetos, texturas,
tons emocionais, morais e psicológicos das cognições de citta
eram chamados de caittas. Os caittas (lit.: “associados
à citta”) foram subdivididos em numerosas categorias que variavam
em diferentes escolas budistas. Alguns caittas são
“universais”, o que significa que são componentes de toda
cognição (por exemplo, contato sensorial, tom hedônico, atenção,
etc.); alguns são “especializados”, significando que ocorrem
apenas em algumas cognições (não em todas) (por exemplo,
resolução, atenção plena, clareza meditativa, etc.). Algumas
caittas são salutares (por exemplo, fé, tranquilidade; falta
de ganância, ódio ou equívoco, etc.), algumas são prejudiciais,
outras são perturbações mentais (klesha - intenção
apropriativa, aversão, arrogância, etc.) ou perturbações mentais
secundárias (raiva, inveja, dolo, falta de vergonha etc.), e algumas
são carmicamente indeterminadas (torpor, remorso etc.).
À
medida que o Abidarma se tornava mais complexo, as disputas se
intensificaram entre diferentes escolas budistas ao longo de uma
série de questões. Para a Yogachara, os problemas mais importantes
giravam em torno de questões de causalidade e consciência. Para
evitar a ideia de um eu permanente, os budistas disseram que citta
é momentânea. Uma vez que uma nova citta apercebe um novo
campo cognitivo a cada momento, a aparente continuidade dos estados
mentais foi explicada causalmente ao afirmar que cada citta,
no momento em que cessava, também atuava como causa para o
surgimento de sua sucessora. Isso foi bom para percepções e
processos de pensamento contínuos, mas surgiram dificuldades uma vez
que os budistas identificaram uma série de situações nas quais
nenhuma citta estava presente ou operava, como o sono
profundo, a inconsciência e certas condições meditativas
explicitamente definidas como desprovidas de citta
(asaṃjni-samapatti, nirodha-samapatti). Se uma citta
anterior tivesse que ser temporalmente contígua ou próxima à sua
sucessora, como explicar o repentino reinício da citta após
um período de tempo decorrido uma vez que a citta anterior
cessou? Onde a citta ou suas causas residiam nesse ínterim?
Perguntas análogas foram: de onde a consciência ressurge após o
sono profundo? Como a consciência começa em uma nova vida? As
várias tentativas budistas de responder a essas perguntas levaram a
mais dificuldades e disputas.
Os
yogacharianos reagiram reorganizando a estrutura tripartida do nível
mental dos dezoito dhatus em três novos tipos de consciência.
Mano-vijñana (a consciência empírica)
tornou-se a sexta consciência (e operava como o sexto órgão dos
sentidos, que anteriormente tinha sido o papel de manas), que
inspeciona o conteúdo cognitivo dos cinco sentidos, bem como dos
objetos mentais (pensamentos, ideias). Manas se tornou a
sétima consciência, redefinida como obcecada principalmente por
vários aspectos e noções de “eu”, e, portanto chamada de
“manas contaminada” (klishṭa-manas). A oitava
consciência, alaya-vijñana, a “consciência
depósito ou consciência armazenadora”, era totalmente nova. A
Consciência Depósito foi definida de várias maneiras. Ela é o
receptáculo de todas as sementes, armazenando experiências à
medida que elas “entram” até serem enviadas de volta como novas
experiências, como um armazém que lida com mercadorias. Ela também
foi chamada de consciência vipaka: vipaka significa o
“amadurecimento” das sementes cármicas. As sementes amadureciam
gradualmente na consciência repositório até maturarem
carmicamente, momento em que se reafirmam como consequências
cármicas. A alaya-vijñana também foi chamada
de “consciência básica” (mula-vijñana),
uma vez que ela retém e distribui as sementes cármicas que tanto
influenciam como são influenciadas pelas outras sete consciências.
Quando,
por exemplo, a sexta consciência está inativa (enquanto alguém
dorme, ou está inconsciente etc.), suas sementes residem na oitava
consciência e elas “recomeçam” quando as condições para seu
surgimento estão presentes. A oitava consciência é, em grande
parte, um mecanismo para armazenar e acionar sementes das quais
permanece em grande parte inconsciente. As cittas ocorrem como
um fluxo em alaya-vijñana, mas elas geralmente
conhecem as atividades das outras consciências, não suas próprias
sementes. Para Yogachara, a “ignorância” (avidya) em
parte significa permanecer ignorante do que está acontecendo dentro
de sua própria alaya-vijñana.
Em
estados desprovidos de citta, o fluxo de cittas é
reprimido e retido, mas suas sementes continuam a se regenerar sem
serem notadas, até reafirmarem um novo fluxo de cittas. A
Consciência Depósito atua como o mecanismo cármico essencial, mas
é em si mesma carmicamente neutra. Cada indivíduo tem sua
própria Consciência Depósito, que perdura de momento a momento e
de vida para vida, embora ela não seja nada além de uma coleção
de "sementes" em constante mudança; ela está
continuamente mudando e, portanto, não é um eu permanente. Não
existe uma mente coletiva universal na Yogachara.
A
iluminação consiste em dar um fim às oito consciências,
substituindo-as por habilidades cognitivas iluminadas (jñana).
A Derrubada da Base transforma as cinco consciências sensoriais em
cognições imediatas que realizam o que precisa ser feito
(kṛtyanushṭhana-jñana). A
sexta consciência se torna um domínio cognitivo imediato
(pratyavekshaṇa-jñana), no qual as
características gerais e particulares das coisas são discernidas
exatamente como elas são. Esse discernimento é considerado
não-conceitual (nirvikalpa-jñana). Manas
se torna a cognição imediata da igualdade (samata-jñana),
igualando o eu e o outro. Quando a Consciência Depósito finalmente
cessa, ela é substituída pela Cognição do Grande Espelho
(Mahadarsha-jñana), que vê e reflete as coisas
como elas são, imparcialmente, sem exclusão, preconceito,
antecipação, apego ou distorção.
A
relação do agarrador-agarrado cessou. Deve-se notar que todas essas
cognições “purificadas” envolvem o mundo de maneiras imediatas
e eficazes, removendo o auto-viés, o preconceito e as obstruções
que anteriormente impediam a pessoa de perceber além da própria
consciência narcisista. Quando a consciência termina, o
verdadeiro conhecimento começa. Uma vez que a cognição
iluminada é não-conceitual, seus objetos não podem ser descritos.
Assim, os yogacharianos não fornecem descrições, muito menos
relatos ontológicos, do que se torna evidente nesses tipos de
cognições iluminadas, exceto para dizer que são “puras” (de
construções imaginativas).
Mais
uma inovação da Yogachara foi a noção de que um tipo especial de
cognição emergia e se desenvolvia após a iluminação. Essa
cognição pós-iluminação era chamada pṛshṭhalabdha-jñana,
e dizia respeito a como alguém que entendeu as coisas como elas
realmente vêm a ser (yatha-bhutam) agora se engaja no mundo
para ajudar outros seres sencientes a superar o sofrimento e a
ignorância.
5 -
As Três Naturezas Próprias
A
teoria das três naturezas próprias (tri-svabhava), que é
explicada em muitos textos Yogachara, incluindo um tratado
independente de Vasubandhu dedicado ao assunto
(Trisvabhava-nirdesha-shastra), sustenta que existem três
"naturezas" ou domínios cognitivos em jogo.
1. O
reino conceitualmente construído (parikalpita-svabhava)
imputa onipresentemente concepções irreais, especialmente “eus”
permanentes, naquilo que experimenta, incluindo a si próprio.
2. O
reino da dependência causal (paratantra-svabhava), quando
misturado com o reino construído, leva alguém a confundir
ocorrências impermanentes no fluxo de causas e condições por
entidades fixas e permanentes. Pode ser purificado dessas delusões
pelo
3.
reino da perfeição (pariniṣpanna-svabhava) que,
como a noção Madhyamaka de vacuidade no qual se baseia, atua como
um antídoto (pratipakṣa) que “purifica” ou limpa todas
as construções delusórias do reino causal.
O
reino conceitualmente construído é
o reino narcisista errôneo no qual habitamos
principalmente, repleto de
projeções que adquirimos, habituamos e incorporamos. O
Paratantra (lit. “dependente de outro”) enfatiza
que tudo surge causalmente dependente de outras coisas que
não de si próprio (isto é, tudo carece de auto-existência). O
reino da perfeição significa a ausência de svabhāva
(natureza independente, auto-existente e permanente) em tudo.
Quando
o reino causalmente dependente é limpo de todas as impurezas, ele se
torna “iluminado”. Essas naturezas-próprias também são
chamadas de Três Não-naturezas-próprias, uma vez que não possuem
identidades fixas, independentes, verdadeiras e permanentes e,
portanto, não devem ser reificadas. A primeira é irreal por
definição; a terceira é intrinsecamente “vazia” de natureza
própria, isto é, é a própria definição de não-natureza-própria;
e o segundo (que finalmente é a único “real”) é de natureza
não-fixa, pois pode ser “misturada” com qualquer um dos outros
dois. Compreender a segunda natureza purificada é equivalente a
entender a origem dependente (pratītya-samutpāda),
que todas as escolas do budismo aceitam como a doutrina central do
budismo e cuja tradição afirma que Buda veio a realizar sob a
árvore Bodhi na noite de sua iluminação.
6 -
Cinco Estágios
A
literatura Yogachara é tão vasta que não devemos nos surpreender
ao descobrir que muitas de suas tentativas de fornecer sistemas
detalhados entram em conflito entre si. Uma vez que ela era uma
tradição escolástica autocrítica, não era incomum que os textos
Yogachara discutissem e criticassem as posições de outros textos
Yogachara, bem como seus oponentes mais óbvios. As posições da
Yogachara nos estágios do caminho são diversas. O
Dashabhumika-sutra-shastra, um comentário atribuído a
Vasubandhu sobre as Escrituras dos Dez Estágios
(Dashabhumika-sutra), descreve o progresso do caminho do
Bodisatva para a liberação Mahayanista em dez estágios, comparável
aos dez estágios implícitos na formulação Mahayanista das dez
perfeições da sabedoria. O Yogacharabhumi-shastra de Asanga
descreve uma série de dezessete estágios. Existem outras
formulações, como o caminho dos cinco estágios, que oferece uma
visão geral útil das outras formulações. Resumiremos brevemente o
caminho das cinco estágios, conforme estabelecido no Cheng Weishilun
de Xuanzang.
O
primeiro estágio é chamado de “provisionamento”
(sambhārāvasthā), pois esse é o estágio em que se coleta
e armazena “provisões” para a jornada. Essas provisões
consistem principalmente em orientar-se para a busca do caminho e
desenvolver o caráter, a atitude e a determinação adequados para
alcançá-lo. Ele começa no momento em que surge a aspiração pela
iluminação (bodichita).
O
próximo estágio é o estágio “experimental”
(prayogāvasthā), no qual se começa a experimentar as
teorias e práticas budistas corretas, aprendendo quais funcionam e
quais não funcionam, quais são verdadeiras e quais não são.
Começa-se a suprimir a relação agarrador-agarrado e começa-se a
estudar cuidadosamente a relação entre as coisas, a linguagem e a
cognição.
Depois
de aperfeiçoar a disciplina, entra-se no terceiro estágio,
“aprofundando a compreensão” (prativedhāvasthā). Alguns
textos se referem a isso como o Caminho da Visão Corretiva
(darshana-mārga). Esse estágio termina quando se obtém
algum insight da cognição não-conceitual.
A
cognição não-conceitual se aprofunda no próximo estágio,
o Caminho do Cultivo (bhāvanā-mārga). A relação
agarrador-agarrado é totalmente eliminada, assim como todas as
obstruções cognitivas. Esse caminho culmina na derrubada da base,
ou na iluminação.
No
“estágio final” (niṣṭhāvasthā), permanecemos na
Iluminação Completa Insuperável e envolvemos o mundo através das
cinco cognições imediatas (veja acima). Todas as nossas atividades
e cognições nesta fase são de “pós-realização”. Como um
Mahayanista, desde o primeiro estágio, temos nos dedicado não
apenas a nossa própria realização da iluminação, mas à
realização da iluminação por todos os seres sencientes. Nesta
fase, isso se torna a nossa única preocupação.
Bibliografia
Selecionada
Anacker,
Stefan. (1984) Sete obras de Vasubandhu. Delhi: Motilal
Banarsidass (tradução e discussão importantes de obras-chave de
Vasubandhu, incluindo alguns de seus tratados pré-Yogācāra)
Buswell,
Robert E. (1989) A Formação da Ideologia Ch'an na China e na
Coréia: O Vajrasamādhi-Sūtra, um Apócrifo Budista. Princeton:
Princeton University Press (o ensaio introdutório a este livro
contém o relato publicado mais completo em inglês do debate entre
as escolas Yogachara chinesa e Tathagatagarbha. No entanto, sua
apresentação representa o ponto de vista deste último que distorce
substancialmente as posições reais da Yogachara)
Griffiths,
Paul. (1986) On Being Mindless: Buddhist Meditation and the
Mind-Body Problem. La Salle, IL: Tribunal aberto (discussão
filosófica analítica das meditações de cessação "sem
mente", traduzindo e examinando algumas seções relevantes dos
textos de Theravāda, Vaibhāṣika e Yogachara. Este livro é útil
para entender como as posições dos yogacharianos se relacionam com
o budismo em geral)
Griffiths,
Paul, Hakamaya Noriaki, John Keenan e Paul Swanson. (1989) O
Reino do Despertar: Capítulo Dez do Mahāyānasaṃgraha de Asaṅga.
NY e Oxford: Oxford University Press (esforço coletivo de uma aula
ministrada por Hakamaya na Universidade de Wisconsin. Compara e
traduz versões chinesas e tibetanas do texto raiz, além de
comentários importantes. Uma boa apresentação do estilo
escolasticamente denso de alguns textos Yogachara)
Hayes,
Richard P. (1988) Dignaga sobre a Interpretação de Sinais.
Estudos da Índia Clássica, vol. 9. Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers (Um exame excelente e desafiador do lógico mais famoso do
budismo)
Kochumuttom,
Thomas. (1982) Uma doutrina budista da experiência. Delhi:
Motilal Banarsi-dass (tradução e análise crítica dos principais
textos Yogachara de Vasubandhu que argumentam que eles devem ser
interpretados como realismo crítico, e não idealismo)
Lamotte,
'Etienne (tradutor). (1935) Saṃdhinirmocana-sūtra. Louvain e
Paris: Uni-versit'e de Louvain e Adrian Maisonneuve (tradução em
francês ricamente anotada, desenho nas versões tibetana e chinesa.
John Powers publicou uma tradução em inglês do tibetano - 1995,
Wisdom of the Buddha: The Saṃdhinirmocana Mahāyāna Sūtra,
Berkeley : Publicação do Dharma)
Lusthaus,
Dan. (2000) Fenomenologia Budista: Uma Investigação Filosófica
do Budismo Yogachara e do Ch'eng wei-shih lun. Londres: Curzon Press
(Uma investigação sobre a transmissão da filosofia Yogachara da
Índia para a China)
Nagao,
Gadjin. (1991) Mādhyamika e Yogachara. traduzido por Leslie
Kawamura. Albany: State University of New York Press (uma bela
coleção de ensaios de um dos principais estudiosos da Yogachara do
Japão)
Poderes,
John. (1991) A Escola Yogachara do Budismo: Uma Bibliografia.
Metuchen, NJ: Scarecrow Press (Uma bibliografia bastante abrangente,
listando virtualmente todos os trabalhos conhecidos da Yogachara em
sânscrito e tibetano e os trabalhos mais comuns em idiomas
ocidentais. Sua cobertura da Yogachara do Leste Asiático é menos
completa)
Rahula,
Walpola (tradutor). (1971) O Compêndio da Super-Doutrina
d'Asaṅga (Abhidharmasamuccaya). Paris: Publicações da Ecole
Française d'Extrême Orient (a única tradução para o ocidente
deste importante texto de Asanga)
Sparham,
Gareth (tradutor). (1993) Ocean of Eloquence: Comentário de
Tsong kha pa sobre a Doutrina da Mente Yogachara. Albany: State
University of New York Press (tradução de um trabalho interessante
do reformador do Grande Gelugpa Tibetano desde seus primeiros dias)
Tatz,
Mark. (1986) Capítulo de ética de Asanga com o comentário de
Tsongkhapa. Lewiston, NY: Edwin Mellen Press (tradução e discussão
da seção sobre ética do capítulo Bodhisattvabhūmi do
Yogācārabhūmi)
Xuanzang
(Hsü; an-tsang). (659) Cheng weishilun (Tratado que estabelece o
Vijñapti-mātra). Taishou Shinshū Daizokyou 1585.31 1-59; traduzido
para o francês por Louis de la Vall'ee Poussin, (1928)
Vijñaptimātratāsiddhi, Paris, 2 vols .; traduzido para o inglês
por Wei Tat, (1973) Ch'eng Wei-Shih Lun: A Doutrina da Mera
Consciência, Hong Kong; tradução parcial para o inglês de Swati
Ganguly, (1992) Tratado em Trinta Versos sobre Mera-Consciência,
Delhi: Motilal Banarsidass (obra chinesa do século VII de Xuanzang,
um comentário sobre o Triṃśikā de Vasubandhu, baseado em
comentários sânscritos, tornou-se uma das exposições padrão da
doutrina Yogachara no leste da Ásia A versão de Vall'ee Poussin é
muito frouxa, baseando-se em antigas bolsas de estudos japonesas e
comentários chineses. Vall'ee Poussin interpreta o texto idealmente.
A versão de Tat é uma versão em inglês do texto em francês de
Vall'ee Poussin, menos o último anotações extensivas. A abreviação
de Ganguly é conveniente, mas freqüentemente equivocada)
Sobre o autor
Dan
Lusthaus é um escritor
norte-americano sobre budismo. Se formou no Departamento de Religião
da Temple University e é especialista em Yogācāra. Autor de vários
artigos e livros sobre o tema, Lusthaus lecionou na UCLA,
Universidade Estadual da Flórida, Universidade do Missouri e, na
primavera de 2005, foi professor na Universidade de Boston. Lusthaus
também colaborou com Heng-ching Shih na tradução do comentário de
Kuiji (K'uei-chi) sobre o Sutra do Coração com o projeto de
tradução Numata. É um editor do Dicionário Digital de Budismo, na
área de Yogācāra indiano/leste asiático/Tathāgatagarbha.
Texto maravilhoso.
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