domingo, 3 de novembro de 2019

O que é e não é a Yogachara


Por Dan Lusthaus (Adaptado ao português por Marcos Paulo Sousa - Kadag Lundrub; revisado por Paulo Stekel – Pema Dorje)


A Yogachara é uma das duas escolas do budismo Mahayana indiano. Sua fundação é atribuída a dois meios-irmãos, Asanga e Vasubandhu, mas seus princípios e doutrinas básicas já estavam em circulação por pelo menos um século antes dos irmãos viverem. A Yogachara se concentrou nos processos envolvidos na cognição, a fim de superar a ignorância que impede que se alcance a liberação dos ciclos cármicos do nascimento e morte. A atenção constante dos yogacharianos a questões como cognição, consciência, percepção e epistemologia, juntamente com afirmações como “objetos externos não existem”, levou alguns a interpretar mal a Yogachara como uma forma de idealismo metafísico. Eles não se concentraram na consciência para afirmar que ela, em última analise, é real (a Yogachara afirma que a consciência é apenas convencionalmente real, uma vez que surge de momento a momento devido a causas e condições flutuantes), mas sim porque ela é a causa do problema cármico que eles procuram eliminar.

A Yogachara introduziu várias novas doutrinas importantes no budismo, incluindo vijñapti-matra (apenas cognição), três naturezas próprias, três giros da roda do Darma e um sistema de oito consciências (todos explicados abaixo). Seu exame minucioso da cognição gerou dois desenvolvimentos importantes: um sistema terapêutico psicológico elaborado que mapeou os problemas na cognição, juntamente com os antídotos para corrigi-los, e um esforço epistemológico sincero que levou a alguns dos trabalhos mais sofisticados sobre percepção e lógica já realizados por budistas ou indianos.

1 - Panorama Histórico

Embora a fundação da Yogachara seja tradicionalmente atribuída a dois meio-irmãos, Asanga e Vasubandhu (quarto-quinto século dC), a maioria de suas doutrinas fundamentais já havia aparecido em várias escrituras um século ou mais antes, principalmente no Sandhinirmocana Sutra (Elucidando as Conexões Ocultas). Entre os conceitos-chave da Yogachara introduzidos no Sandhinirmocana Sutra estão as noções de “apenas cognição” (vijñapti-mātra), três naturezas próprias (trisvabhāva), a alaya-vijñana (consciência depósito), derrubando a base (ashraya- paravṛtti) e a teoria das oito consciências.

O Sandhinirmocana Sutra proclamou seus ensinamentos como pertencentes ao terceiro giro da roda do Darma. O Buda viveu no século V a.C., mas os Sutras do Mahayana só começaram a aparecer cerca de quinhentos anos depois. Os novos Sutras do Mahayana continuaram a ser compostos por muitos séculos. Os Mahayanistas indianos trataram esses Sutras como documentos que registravam discursos reais do Buda. No terceiro ou quarto século d.C., uma ampla e às vezes incomensurável gama de doutrinas budistas havia surgido, mas quaisquer doutrinas que surgissem nos Sutras podiam ser atribuídas à autoridade do próprio Buda.

De acordo com os primeiros Suttas em Páli, quando Buda se iluminou, ele girou a roda do Darma, ou seja, começou a ensinar o caminho para a iluminação, o Darma (Pāli: Dhamma). Embora os budistas sempre afirmassem que o Buda havia adaptado ensinamentos específicos para as capacidades específicas de audiências específicas, o Sandhinirmocana Sutra estabeleceu a ideia de que o Buda havia ensinado doutrinas significativamente diferentes a diferentes audiências, com base em seus níveis de entendimento; e que essas diferentes doutrinas iam desde os antídotos provisórios (pratipakṣa) a certas visões erradas, até um ensinamento completo que finalmente tornou explícito o que estava implícito nos ensinamentos anteriores. Em sua opinião, os dois primeiros giros da roda – os ensinamentos das Quatro Nobres Verdades no budismo nikaya e abidarma, e os ensinamentos da escola Madhyamaka, respectivamente – expressaram o Darma através de formulações incompletas que exigiam maior elucidação (neyartha), a fim de ser adequadamente entendido e, portanto, eficaz. O primeiro giro, enfatizando as entidades (dharmas, agregados, etc.) ao “ocultar” a vacuidade, pode levar a pessoa a manter uma visão substancialista; o segundo giro, enfatizando a negação ao “ocultar” as qualidades positivas do Darma, pode ser mal interpretado como niilismo. O terceiro giro foi um caminho do meio entre esses extremos que finalmente tornou tudo explícito (nitārtha). Para não deixar nada oculto, os yogacharianos embarcaram em uma síntese maciça e sistemática de todos os ensinamentos budistas que os precederam, examinando e avaliando-os até os detalhes mais triviais, na tentativa de formular o ensinamento budista definitivo (nitārtha). Dito de outra maneira, para ser eficaz, todo o budismo exigia uma reinterpretação yogachariana. Inovações na análise do abidarma, lógica, cosmologia, métodos de meditação, psicologia, filosofia e ética estão entre suas contribuições mais importantes.

O magnum opus de Asanga, o Yogacharabhumi-shastra (Tratado sobre os Estágios da Prática de Yoga), é uma enciclopédia abrangente de termos e modelos budistas (que se baseia fortemente nos Agamas – o equivalente sânscrito dos Nikayas em Pāli), mapeado de acordo com sua visão yogachariana de como se progride ao longo dos estágios do caminho para a iluminação. O magnum opus pré-yogachariano de Vasubandhu, o Abhidharmakosha (O Tesouro do Abidarma) também fornece uma visão abrangente e detalhada do caminho budista, com atenção meticulosa às nuances e diferenças de opinião sobre uma ampla gama de tópicos.

Embora ambos os meio-irmãos tenham nascido brâmanes, acredita-se que Asanga tenha se juntado desde cedo aos Mahishasikas, uma escola de budismo não-Mahayana profundamente mergulhada nos Agamas. Asanga e Vasubandhu se tornaram os primeiros yogacharianos identificáveis, cada um tendo sido inicialmente dedicado a outras escolas de budismo. Ambos foram autores prolíficos, embora Asanga tenha atribuído uma parte de seus escritos a Maitreya, o Futuro Buda que vive no Céu de Tushita. Alguns estudiosos modernos argumentaram que este Maitreya era um professor humano real, não o Buda do Futuro, mas a tradição é bastante clara. Depois de doze anos de meditação infrutífera sozinho em uma caverna (ou floresta, de acordo com outras versões), durante um momento de total desespero em que Asanga estava pronto para desistir devido a seu abjeto fracasso, Maitreya apareceu e o transportou para o Céu de Tushita, onde ele o instruiu em textos anteriormente desconhecidos, obras yogacharianas, que Asanga então apresentou a seus colegas budistas. Precisamente quais são esses textos, é menos claro, pois as tradições chinesa e tibetana atribuem diferentes obras a Maitreya.

Segundo a tradição, Vasubandhu estudou primeiro os ensinamentos budistas Vaibhashika, escrevendo um resumo enciclopédico de seus ensinamentos que se tornou um trabalho padrão em todo o mundo budista, o Abhidharmakosha (O Tesouro do Abidarma). Ao se tornar crítico dos ensinamentos Vaibhashika, ele escreveu um comentário sobre esse trabalho que refuta muitos de seus princípios. Intelectualmente inquieto por um tempo, Vasubandhu compôs uma variedade de trabalhos que traçam sua jornada para Yogachara, sendo os mais conhecidos o Karmasiddhi-prakaraṇa (A Investigação que Estabelece o Carma) e o Pañcaskandhaka-prakaraṇa (A Investigação dos Cinco Agregados). Esses trabalhos mostram uma profunda familiaridade com as categorias abidármicas discutidas no Kosha, com tentativas de repensá-las; as disputas filosóficas e escolásticas da época também são exploradas, e as novas posições que Vasubandhu formula nesses textos o aproximam das conclusões yogachariana. Alguns estudiosos modernos argumentaram, com base em alguns relatos conflitantes das antigas biografias de Vasubandhu, que esses textos junto com o Abhidharmakosha não foram escritos pelo Vasubandhu yogachariano, mas por outra pessoa. Uma vez que a progressão e o desenvolvimento de seu pensamento, no entanto, são tão surpreendentemente evidentes nesses trabalhos, e a semelhança de vocabulário e estilo de argumento tão aparente entre os textos, a teoria de Dois Vasubandhus tem pouco mérito.

Os escritos de Asanga (e/ou Maitreya) e Vasubandhu variavam de vastos compêndios enciclopédicos da doutrina budista (por exemplo, o Yogacharabhumi-shastra, Mahayanasaṃgraha, Abhidharmasamuccaya), a encapsulações versificadas e resumidas da praxis Yogachara (por exemplo, o Triṃshika, Trisvabhava-nirdesha), a tratados sistemáticos focados nos temas da Yogachara (por exemplo, o Viṃshatika, Madhyanta-vibhaga), a comentários sobre as escrituras e tratados Mahayanistas bem conhecidos, como os Sutras do Lótus e do Diamante.

Uma vez que o Sandhinirmocana Sutra oferece doutrinas altamente sofisticadas e bem desenvolvidas, é razoável supor que essas ideias já estavam em desenvolvimento há algum tempo, possivelmente séculos, antes que essa escritura surgisse. Visto que Asanga e Vasubandhu viveram em uma época onde o Sandhinirmocana já tinha surgido há um século ou mais, também é razoável supor que essas ideias foram aperfeiçoadas por outros nesse ínterim. Assim, a afirmação tradicional de que os dois irmãos são os fundadores da Yogachara é, na melhor das hipóteses, uma meia-verdade. De acordo com a tradição, Asanga converteu Vasubandhu à Yogachara depois de ele próprio ter sido ensinado por Maitreya; ele não é conhecido por ter tido outros discípulos notáveis. A tradição atribui dois grandes discípulos a Vasubandhu: Dignaga, o grande lógico e epistemólogo, e Sthiramati, um importante comentarista inicial da Yogachara. Não está claro se eles realmente conheceram Vasubandhu (a erudição atual considera isso improvável). Eles podem ter sido discípulos de seu pensamento, adquiridos exclusivamente a partir de seus escritos ou através de alguns professores intermediários esquecidos. Esses dois discípulos exemplificam as duas principais direções nas quais os ensinamentos de Vasubandhu se dividem.

Depois de Vasubandhu, a Yogachara se desenvolveu em duas direções ou alas distintas: 1. uma tradição lógico-epistêmica, exemplificada por pensadores como Dignaga, Dharmakirti, Shantarakshita e Ratnakirti; 2. uma psicologia abidármica, exemplificada por pensadores como Sthiramati, Dharmapala, Xuanzang (Hsüan-tsang) e Vinitadeva. Enquanto a primeira ala se concentrou em questões de epistemologia e lógica, a outra ala refinou e elaborou a análise do abidarma desenvolvida por Asanga e Vasubandhu. Essas alas não estavam totalmente separadas, e muitos budistas escreveram obras que contribuíram para ambas as alas. Dignaga, por exemplo, além de seus trabalhos sobre epistemologia e lógica, também escreveu um comentário sobre o Abhidharmakosha de Vasubandhu. O que uniu as duas alas foi uma profunda preocupação com o processo de cognição, ou seja, análises de como percebemos e pensamos. A primeira ala abordou isso epistemologicamente, enquanto a última ala abordou isso de forma psicológica e terapêutica. Ambos identificaram a raiz de todos os problemas humanos como erros cognitivos que precisavam de correção.

Várias noções da Yogachara fundamentais para a ala do Abidarma foram severamente atacadas por outros budistas, especialmente a noção de alaya-vijñana, que foi denunciada como algo semelhante às noções hindus de atman (eu permanente e invariável) e prakriti (a natureza primordial substrativa da qual todas as coisas mentais, emocionais e físicas evoluem). Eventualmente, as críticas se entranharam tanto que a ala do Abidarma se atrofiou. No final do século VIII, ele foi eclipsado pela tradição lógico-epistêmica e por uma escola híbrida que combinava doutrinas básicas da Yogachara com o pensamento do Tathagatagarbha. A ala lógico-epistemológica, em parte, contornou a crítica usando o termo citta-santana, "fluxo mental", em vez de alaya-vijñana, que equivale aproximadamente à mesma idéia. Era mais fácil negar que um "fluxo" representasse um eu reificado. Por outro lado, a escola híbrida Tathagatagarbha estava habituada à acusação de contrabandear noções de individualidade para suas doutrinas, uma vez que, por exemplo, ela definiu explicitamente o tathagatagarbha como “permanente, agradável, eu e puro (nitya, sukha, atman, shuddha)”. Muitos textos do Tathagatagarbha, de fato, defendem a aceitação da individualidade (atman) como um sinal de maior realização. A escola híbrida tentou fundir o tathagatagarbha com a alaya-vijñana. Os principais trabalhos da escola híbrida incluem o Lankavatara Sutra, o Ratnagotravibhaga (Uttaratantra) e, na China, o Despertar da Fé.
Na China, durante os séculos VI e VII, o budismo foi dominado por várias formas concorrentes de Yogachara. Uma grande cisma entre as versões ortodoxas da Yogachara e as versões híbridas do Tathagatagarbha foi finalmente estabelecida no século VIII em favor de uma versão híbrida, que se tornou definitiva para todas as formas subsequentes do budismo do Leste Asiático. As ideias Yogachara também foram estudadas e classificadas no Tibete. As escolas Nyingma e Dzogchen adotaram uma versão híbrida semelhante ao Tathagatagarbha híbrido chinês; os Gelugpas subdividiram a Yogachara em vários tipos diferentes e os consideraram ensinamentos preparatórios para o estudo da Prasangika Madhyamaka, que os Gelugpas classificam como o ensinamento budista mais elevado. Os tibetanos, no entanto, tendiam a ver a tradição lógico-epistemológica como distinta da Yogachara propriamente dita, frequentemente a rotulando como Sautrantika.

2 - A Yogachara não é um Idealismo Metafísico

A escola foi chamada de Yogachara (prática de Yoga) porque fornecia um quadro abrangente e terapêutico para o engajamento nas práticas que levam ao objetivo do caminho do bodisatva, isto é, a cognição iluminada. A meditação serviu como laboratório no qual se podia estudar como a mente operava. A Yogachara focou na questão da consciência a partir de uma variedade de abordagens, incluindo meditação, análise psicológica, epistemologia (como conhecemos o que conhecemos, como a percepção opera, o que valida o conhecimento), categorização escolar e análise cármica.
A doutrina Yogachara é resumida no termo vijñapti-matra, “nada além de cognição” (geralmente traduzido como “apenas consciência” ou “apenas mente”) que às vezes foi interpretado como indicando um tipo de idealismo metafísico, ou seja, a afirmação de que somente a mente é real e que tudo o mais é criado pela mente. No entanto, os próprios escritos yogacharianos defendem algo muito diferente. A consciência (vijñana) não é a realidade ou a solução final, mas o problema raiz. Esse problema surge nas operações mentais comuns e só pode ser resolvido com o fim dessas operações.

A Yogachara tende a ser mal interpretada como uma forma de idealismo metafísico, principalmente porque seus ensinamentos são tomados por proposições ontológicas, e não como avisos epistemológicos sobre problemas cármicos. O foco da Yogachara na cognição e na consciência surgiu de sua análise do carma, e não por uma questão de especulação metafísica. Duas coisas devem ser esclarecidas para explicar por que a Yogachara não é um idealismo metafísico: 1. O significado da palavra “idealismo”; e 2. uma diferença importante entre a maneira como os filósofos indianos e ocidentais fazem filosofia.

2a - O Termo “Idealismo”

O termo “idealismo” entrou em voga aproximadamente durante o tempo de Kant (embora ele tenha sido usado anteriormente por outros, como Leibniz) para rotular uma das duas tendências que surgiram em reação à filosofia cartesiana. Descartes argumentou que havia duas substâncias básicas, mas separadas, no universo: A Extensão (o mundo material das coisas no espaço) e o Pensamento (o mundo da mente e das ideias). Posteriormente, os campos opostos tomaram uma ou a outra substância como fundamento metafísico, tratando-a como a substância principal ao reduzir a substância restante a um status derivativo. Os materialistas argumentavam que apenas a matéria era, em última análise, real, de modo que o pensamento e a consciência derivavam de entidades físicas (química, estados cerebrais etc.). Os idealistas rebateram dizendo que a mente e suas ideias eram em última análise reais e que o mundo físico derivava da mente (por exemplo, a mente de Deus, esse est percipi – ser é ser percebido – de Berkeley, ou de protótipos ideais, etc.). Os materialistas gravitaram em direção a explicações mecânicas e físicas do porquê e como as coisas existiam, enquanto os idealistas tendiam a procurar propósitos – morais e racionais – para explicar a existência. Idealismo significava “ideia-ismo”, frequentemente no sentido em que a noção de "ideias" (eidos) de Platão era entendida na época, ou seja, tipos ideais que transcendiam o mundo físico e sensorial e forneciam a forma (eidos) que dava significado e propósito à matéria. À medida que o materialismo, apoiado pelos avanços da ciência materialista, ganhou uma aceitação mais ampla, aqueles inclinados a objetivos espirituais e teológicos voltaram-se cada vez mais para o idealismo como uma contra-medida. Em pouco tempo, havia muitos tipos de materialismo e idealismo.

O idealismo, em seu sentido mais amplo, passou a abranger tudo o que não era materialismo, que incluía tantos tipos diferentes de posições que o termo perdeu qualquer esperança de univocidade. A maioria das formas de pensamento teísta e teológico eram, por essa definição, tipos de idealismo, mesmo que aceitassem a matéria como real, uma vez que eles também afirmavam algo mais real do que a matéria, como o criador da matéria (no monoteísmo) ou como a realidade por trás da matéria (no panteísmo). Empiristas extremos que aceitavam apenas suas próprias experiências e sensações como reais também eram idealistas. Assim, o termo “idealismo” unia monoteístas, panteístas e ateus. Em um extremo, havia várias formas de idealismo metafísico que colocavam a mente (ou mentes) como a única realidade última. O mundo físico era uma ilusão irreal ou não tão real quanto a mente que o criou. Para evitar o solipsismo (que é uma versão subjetivada do idealismo metafísico), os idealistas metafísicos postulavam uma mente fundamental que visualiza e cria o universo.

Um tipo mais limitado de idealismo é o idealismo epistemológico, que argumenta que, uma vez que o conhecimento do mundo existe apenas no reino mental, não podemos conhecer os objetos físicos reais como eles realmente são, mas apenas como eles aparecem em nossas representações mentais deles. Os idealistas epistemológicos poderiam ser materialistas ontológicos, aceitando que a matéria existe substancialmente; eles poderiam até aceitar que estados mentais derivassem pelo menos em parte de processos materiais. O que negaram foi que a matéria pudesse ser conhecida em si mesma diretamente, sem a mediação de representações mentais. Embora incognoscível em si mesma, a existência e as propriedades da matéria podem ser conhecidas por inferência baseada em certas consistências na maneira como as coisas materiais são representadas na percepção.

O idealismo transcendental sustenta que não apenas a matéria, mas também o eu (ou o “ser”), permanecem transcendentais em um ato de cognição. Kant e Husserl, que eram ambos idealistas transcendentais, definiram “transcendental” como “aquilo que constitui a experiência, mas que não é em si indicado na experiência”. Um exemplo mundano seria o olho, que é a condição para ver, mesmo que o olho não veja a si mesmo. Aplicando a visão e tirando inferências dela, pode-se conhecer o papel que os olhos desempenham ao ver, mesmo que nunca se veja os próprios olhos. Da mesma forma, as coisas em si mesmas e o eu transcendental poderiam ser conhecidos se os métodos adequados fossem aplicados para descobrir as condições que constituem a experiência, mesmo que tais condições não apareçam por si mesmas na experiência. Mesmo aqui, onde as questões epistemológicas estão na linha de frente, na verdade, são as preocupações ontológicas, ou seja, o status ontológico do eu e dos objetos, que está realmente em jogo. A filosofia ocidental raramente escapa dessa inclinação ontológica. Aqueles que aceitaram que tanto o eu quanto seus objetos eram incognoscíveis, exceto pela razão, e que essa(s) razão(ões) era sua causa e propósito de existir – fundamentando assim epistemológica e ontologicamente tudo na mente e em suas ideias – foram rotulados de Idealistas Absolutos (por exemplo, Schelling, Hegel, Bradley), uma vez que apenas essas ideias são absolutas enquanto tudo o mais é relativo a elas.

Com exceção de alguns idealistas epistemológicos, o que une todas as posições enumeradas acima, incluindo os materialistas, é que essas posições são ontológicas. Eles estão preocupados com o status ontológico dos objetos dos sentidos e do pensamento, bem como com a natureza ontológica do eu que conhece. A filosofia ocidental dominante desde Platão e Aristóteles tratou a ontologia e a metafísica como a busca filosófica final, com o papel da epistemologia sendo pouco mais do que fornecer acesso e justificativa para as buscas e compromissos ontológicos de alguém. Uma vez que muitos dos que são condenados como excessos da filosofia – como o ceticismo, o solipsismo e o sofisma – podem ser e foram acusados de derivar de questionamentos epistemológicos hiperativos, a epistemologia foi muitas vezes considerada suspeita e, em algumas formulações teológicas, considerada inteiramente dispensável em favor da fé. A ontologia é primária e a epistemologia é secundária ou dispensável.

2b - Diferenças entre as abordagens Indiana e Ocidental da filosofia

Na filosofia indiana, encontra-se o inverso disso. A epistemologia (pramaṇavada) é primária, tanto no sentido de que ela deve estar envolvida antes de tentar qualquer outro empreendimento filosófico, quanto no sentido de que os limites das alegações metafísicas de uma pessoa são sempre inviolavelmente definidos pelos parâmetros estabelecidos pela sua epistemologia. Antes que alguém possa fazer reivindicações, é necessário estabelecer a base sobre a qual tais reivindicações podem ser comprovadas e justificadas. Os indianos chegaram ao ponto de admitir que, se alguém deseja debater com um oponente que sustenta uma visão diferente, deve-se primeiro encontrar uma base epistemológica comum sobre a qual argumentar. Caso contrário, nenhum debate significativo pode acontecer.

Uma vez que a ontologia de alguém (prameya) depende do que sua epistemologia permite, muitas escolas indianas tentaram incluir coisas em sua lista de meios válidos de conhecimento (pramāṇa) que facilitariam suas reivindicações. Os hindus, por exemplo, consideravam suas Escrituras um meio válido de conhecimento, mas outros indianos, como budistas e jainistas, rejeitavam a autoridade das Escrituras Hindus. Portanto, se um hindu debatesse com um budista ou jainista, ele não podia apelar para a autoridade das Escrituras Hindus, mas precisava encontrar uma base epistemológica comum. No caso do budismo, isso seria a percepção e a inferência; no caso do jainismo, apenas a inferência. Todas as escolas, exceto os jainistas, aceitaram a percepção como um meio válido de conhecimento, o que significa que o conhecimento sensorial é válido (se qualificado como não errôneo, não alucinatório, etc.). O que atualmente não é observado, mas é em princípio observável, pode ser conhecido por inferência. Sem realmente ver o fogo, sabe-se que ele deve existir em uma colina quando se vê fumaça naquele local, porque tanto o fogo quanto a fumaça são, em princípio, entidades observáveis, e existe uma relação necessária observada (vyāpti) entre fumaça e fogo, a saber. Onde há fumaça há fogo. Se alguém estivesse perto do fogo na colina, sem dúvida veria o fogo. Não se pode fazer inferências válidas sobre coisas impossíveis de serem percebidas, como unicórnios, uma vez que nenhuma relação necessária observável é obtida; portanto, não se pode inferir que um unicórnio esteja na colina. A perceptibilidade é, portanto, um componente indispensável da percepção e da inferência e, portanto, para os budistas, de todo o conhecimento válido. Para ser considerado “real” (dravya) pelos padrões da lógica budista, uma coisa deve produzir um efeito observável. Os budistas discutiam entre si se algo era real apenas enquanto produzia esse efeito observável (posição Sautrantika), ou se algo poderia ser considerado real se produzisse um efeito observável em algum momento durante a sua existência (posição Sarvastivada), mas todos concordavam que a coisa deve ter eficácia causal observável (karaṇa) para ser considerada real. Isso ajuda a explicar a centralidade da percepção e da consciência para a teoria Yogachara.

A ala lógico-epistemológica da Yogachara estabeleceu uma nítida distinção entre percepção e inferência. A percepção envolve cognições sensoriais de particulares únicos, momentâneos e discretos. A inferência envolve universais linguísticos e conceituais, uma vez que as palavras são significativas e comunicativas apenas na medida em que designam e participam de classes universais comumente compartilhadas e compreendidas pelos usuários da língua. As inferências são verdadeiras ou falsas, dependendo de quão precisas ou erroneamente elas se aproximam dos elementos ou particulares sensoriais, mas mesmo quando linguisticamente verdadeiras, elas ainda são verdadeiras apenas em relação (saṃvṛti) às sensações que elas aproximam. Por outro lado, a sensação (e apenas a sensação) está além do idioma. A cognição sensorial desprovida de sobreposição linguística ou afirmações teóricas (samaropa) é a cognição correta e precisamente – e não aproximadamente – verdadeira (paramartha). Embora isso pareça envolver afirmações metafísicas sobre categorias como particulares e universais, sensação e linguagem, de fato isso é um pedido para que conheçamos as coisas como elas são, sem impor nenhuma afirmação metafísica ou quatro conceitual a elas. O cognitivo e o epistêmico, não o metafísico, é que está em jogo. O que está acontecendo está além da descrição, não porque é algo inefável residindo fora ou atrás da experiência humana, mas porque é o próprio material sensorial da experiência humana cuja realidade momentânea e única não pode ser reduzida a conceitos ou linguagem universalistas e eternalistas. Interpretar essa posição em si como uma metafísica da particularidade é permanecer preso em um quatro conceitual e, consequentemente, perder seu ponto.

Preocupações epistemológicas permeiam a filosofia indiana. Isto é especialmente verdade na filosofia budista. Muitos textos budistas afirmam que o entendimento superior não tem nada a ver com ontologia, que focar na existência ou na inexistência de algo (astinasti, bhavabhava) é um erro de categoria enganosa. Eles tipicamente removem itens importantes – como a vacuidade e o nirvana – da consideração ontológica, declarando explicitamente que eles não têm absolutamente nada a ver com existência ou inexistência, ser e não-ser e alertam ainda que isso não se trata de uma licença para imaginar um sentido mais elevado de existência ou ser no qual esses itens são então incluídos ou negados. O objetivo budista não é a construção de uma ontologia mais perfeita. Em vez disso, seu objetivo principal é sempre a remoção da ignorância. Assim, enquanto os budistas frequentemente suspendem a especulação ontológica e metafísica (tarka), denunciando-a como inútil ou perigosa, a cognição correta (samyag-jñana) é invariavelmente louvada. Até os Madhyamakas, que questionam a viabilidade de grande parte da epistemologia budista, insistem que devemos entender onde estão os erros e corrigir a maneira como conhecemos as coisas conformemente. Declarando sem rodeios, o budismo está preocupado em Ver, não em Ser; ou seja, na epistemologia e não na ontologia.

Impressionantemente, nenhum texto Yogachara indiano afirma que o mundo foi criado pela mente. O que eles afirmam é que confundimos nossas interpretações projetadas do mundo com o próprio mundo, ou seja, tomamos nossas próprias construções mentais como o mundo. Seu vocabulário para isso é tão rico quanto sua análise: kalpanā (construção conceitual projetiva), parikalpa e parikalpita (construções imaginárias onipresentes), abhūta-parikalpa (imaginando algo em um local em que não existe), prapañca (proliferação de construções conceituais), para citar alguns. A cognição correta é definida como a remoção daqueles obstáculos que nos impedem de ver condições causais dependentes da maneira que elas realmente vêm a ser (yathā-bhūtam). Para Yogachara, essas condições causais são cognitivas, não metafísicas; são as condições mentais e perceptivas pelas quais sensações e pensamentos ocorrem, não as maquinações metafísicas de um Criador ou um domínio imperceptível. O que se conhece por meio da cognição correta é eufemisticamente chamado de tathata, “talidade”, que os textos rapidamente apontam que não é uma coisa real, mas apenas uma palavra (prajñapti-matra).

2c - A Abordagem Filosófica da Yogachara

O que é crucial para começar a entender a Yogachara é que sua atenção às questões perceptivas e cognitivas está alinhada com o pensamento budista básico, e que essa atenção é epistemológica e não metafísica. Quando os Yogacharianos discutem “objetos”, eles estão falando sobre objetos cognitivos, não sobre entidades metafísicas. Objetos cognitivos (viṣaya) são partes reais e integrais da cognição e, portanto, ocorrem dentro de atos de consciência. Embora confirmando o viṣaya como parte integrante dos atos cognitivos, eles negam que qualquer artha (aquilo para o qual uma intencionalidade intenta, isto é, um objeto de intencionalidade) exista fora do ato cognitivo em que ele é aquilo que é intencionado. Objetos intencionais aparecem apenas em atos de intencionalidade, ou seja, na consciência. Em outras palavras, os yogacharianos não afirmam que nada exista fora da mente. Em primeiro lugar, não existe uma mente essencial para Yogachara; cada mente individual é distinta. Os yogacharianos não são monadologistas no molde Leibnitziano. Segundo, o artha não significa um mero “objeto” neutro; mas antes um telos (finalidade, fim) para o qual um ato de consciência intenta. Esse foco de intenção – a intenção sendo uma forma de desejo – é essencial para a consciência e, como um foco, nunca ocorre em nenhum outro lugar que não seja em um ato de consciência. Para Yogachara, o visaya (o objeto cognitivo) e artha (o objeto intencional) existem, mas apenas nos atos de consciência nos quais eles são constituídos como cognitivos e intencionais. É importante ter em mente que, para a Yogachara, um ato de consciência é tanto constituído por intencionalidade e fatores cognitivos quanto vice-versa. A consciência não goza de status transcendente, nem serve como fundamento metafísico. A consciência é real em virtude de sua facticidade – o fato de que seres sencientes experimentam cognições – e não por causa de uma primazia ontológica.

Em vez de oferecer mais uma ontologia, os yogacharianos tentam descobrir e eliminar as predileções e tendências (ashrava, anushaya) que obrigam as pessoas a gerar e se apegar a essas construções ontológicas teóricas. Uma vez que, de acordo com a Yogachara, todas as ontologias são construções epistemológicas, entender como a cognição opera é entender como e por que as pessoas constroem as ontologias às quais se apegam. O apego ontológico é um sintoma da projeção cognitiva (pratibimba, parikalpita). Um exame cuidadoso dos textos Yogachara revela que eles não fazem alegações ontológicas, exceto para questionar a validade de fazer alegações ontológicas. A razão que eles dão para o seu silêncio ontológico é que, se oferecessem uma descrição metafísica, essa descrição seria apropriada por seus interpretadores que, devido às suas inclinações, projetariam sobre ela o que desejassem que a realidade fosse, reduzindo assim a descrição a sua própria teoria pressuposta da realidade. Esse reducionismo projetivo é o problema e o sintoma das tendências mais básicas que afetam os seres sencientes. É isso que vijñapti-matra significa, ou seja, confundir as nossas projeções com aquilo no qual estamos projetando. Os Trinta Versos de Vasubandhu (Triṃshika) afirmam que se alguém se apega à projeção da ideia de vijñapti-matra, então a pessoa falha em realmente residir na compreensão de vijñapti-matra (versículo 27). A cognição iluminada livre de todos os erros cognitivos é definida como nirvikalpa-jñana, “a cognição sem construção imaginativa”, isto é, sem sobreposição conceitual. Ironicamente, os interpretadores e oponentes da Yogachara, no entanto, não puderam deixar de projetar de forma redutiva teorias metafísicas sobre o que os yogacharianos disseram, por um lado provando que a Yogachara estava certa, mas por outro, dificultando o acesso aos ensinamentos reais da Yogachara. Interpretar suas análises epistemológicas como pronunciamentos metafísicos fundamentalmente interpreta mal seu projeto.

Os argumentos que a Yogachara emprega frequentemente se assemelham aos formulados por idealistas epistemológicos. Reconhecendo essas afinidades, os estudiosos ocidentais, no início do século XX, compararam a Yogachara a Kant, e, mais recentemente, começaram a pensar que a fenomenologia de Husserl se aproxima ainda mais. De fato, existem semelhanças intrigantes, por exemplo, entre a descrição de Husserl da noese (a consciência projetando seu campo cognitivo) e noema (o objeto cognitivo construído), por um lado, e a análise da Yogachara do agarrador (cognitivo) e do agarrado (grahaka e grahya) por outro. Mas também existem diferenças importantes entre esses filósofos ocidentais e a Yogachara. As três mais importantes são:

(1) Kant e Husserl minimizam as noções de causalidade, enquanto Yogachara desenvolveu teorias causais sistemáticas complexas que considerou de maior importância;

(2) não há contrapartida ao carma ou à iluminação nas teorias ocidentais, enquanto essas são a própria razão de ser de toda a teoria e prática Yogachara;

(3) finalmente, as filosofias ocidentais são projetadas para oferecer o melhor acesso possível a um reino ontológico (pelo menos suficiente para reconhecer sua existência), enquanto a Yogachara é crítica desse motivo em todas as suas manifestações.

Na medida em que idealistas epistemológicos também podem ser realistas críticos, a Yogachara pode ser considerada um tipo de idealismo epistemológico, com a ressalva de que o objetivo de seus argumentos não era gerar uma teoria ou compromisso ontológico aprimorado, mas sim uma insistência para que prestemos máxima atenção às condições epistemológicas e psicológicas que nos obrigam a construir e apegar-se a teorias ontológicas.

3 - Carma, Matéria e Apropriação Cognitiva

A chave da teoria Yogachara está nas noções budistas de carma que eles herdaram e rigorosamente reinterpretaram. Como os textos budistas anteriores já explicaram, o carma é responsável pelo sofrimento e pela ignorância, e o carma consiste em qualquer atividade intencional de corpo, linguagem ou mente. Uma vez que o fator crucial é a intenção, e a intenção é uma condição cognitiva, qualquer falta de cognição é não-cármica e não-intencional. Portanto, por definição, o que é não-cognitivo não pode ter influência ou consequências cármicas. Como o budismo visa superar a ignorância e o sofrimento através da eliminação do condicionamento cármico, o budismo, segundo os yogacharianos, preocupa-se apenas com a análise e correção do que quer que esteja dentro do domínio das condições cognitivas. Portanto, questões sobre a realidade última das coisas não-cognitivas são simplesmente irrelevantes e inúteis para resolver o problema do carma. Além disso, os yogacharianos enfatizam que categorias como materialidade (rupa) são categorias cognitivas. “Materialidade” é uma palavra para as cores, texturas, sons etc. que experimentamos em atos de percepção, e é apenas na medida em que são experimentados, percebidos e apreendidos ideologicamente, tornando-se objetos de apego, que eles tem significado cármico. Atos intencionais também têm motivos e consequências morais. Uma vez que os efeitos são moldados por suas causas, um ato com uma intenção saudável tenderia a produzir frutos saudáveis, enquanto intenções prejudiciais produzem efeitos prejudiciais.

Em contraste com a dimensão cármica cognitiva, o budismo considerava elementos materiais (rupa) carmicamente neutros. O problema com as coisas materiais não é sua materialidade, mas a psicologia da apropriação (upadana) – desejo, agarramento, apreensão, apego – que infesta nossas ideias e percepções de tais coisas. Não é a materialidade do ouro que leva a problemas, mas nossas ideias sobre o valor do ouro e as atitudes e ações em que nos envolvemos como resultado dessas ideias. Essas ideias foram adquiridas através de experiências anteriores. Pela exposição repetida a certas ideias e condições cognitivas, a pessoa é condicionada a responder habitualmente de maneira semelhante a circunstâncias semelhantes. Eventualmente, esses hábitos são corporificados, tornando-se reflexivos e pressupostos. Para os budistas, esse processo pelo qual o condicionamento se corporifica (samskara) não se limita a uma única vida, mas se acumula ao longo de muitas vidas. Samsara (o ciclo contínuo de nascimento e morte) é a representação cármica dessa repetição, a recorrência de hábitos cognitivos corporificados em novas situações e formas de vida.

Para todos os budistas, isso segue um cálculo sensorial simples: os sentimentos agradáveis nós desejamos manter ou repetir. Os sentimentos dolorosos nós desejamos eliminar ou evitar. Prazer e dor, recompensa e punição, aprovação e desaprovação, e assim por diante, nos condicionam. Nossos hábitos cármicos (vasanas) são construídos dessa maneira. Uma vez que tudo é impermanente, sentimentos agradáveis não podem ser mantidos ou repetidos permanentemente; coisas dolorosas (como doença e morte) não podem ser evitadas permanentemente. Quanto maior a dissonância entre nossa experiência impermanente atual e nossas expectativas para fins desejados permanentes, mais sofremos e maior a tendência (anushaya) de projetar nossos desejos no mundo como compensação. Embora nada seja permanente, imaginamos todo tipo de coisas permanentes – de Deus à alma e às essências – em um esforço para evitar enfrentar o fato de que nenhum de nós tem um eu permanente. Pensamos que, se pudermos provar que algo é permanente, qualquer coisa, também temos uma chance de permanência. A ansiedade sobre a nossa falta de eu e todas as confusões cognitivas e cármicas que a ansiedade gera são denominadas de várias coisas pela Yogachara, incluindo jñeyavaraṇa (obstrução do conhecível, isto é, nossas auto-obsessões nos impedem de ver as coisas como são) e abhūta-parikalpa (imaginar que algo – a saber, permanência ou eu – existe em um lugar onde está ausente).

Budistas anteriores – principalmente os Sautrantikas, mas também as escolas do Abidarma – desenvolveram um vocabulário metafórico sofisticado para descrever e analisar as causas e condições do carma em termos de sementes (bījā). Assim como uma planta se desenvolve a partir de suas raízes invisíveis no subsolo, as experiências cármicas anteriores se propagam na mente sem serem vistas; assim como uma planta brota do solo quando nutrida por condições adequadas, os hábitos cármicos, sob as causas e condições certas, reafirmam-se como novas experiências; assim como as plantas atingem a fruição produzindo novas sementes que reentram no solo para criar raízes e começar a crescer novamente uma planta semelhante do mesmo tipo, as ações cármicas produzem frutos saudáveis ou prejudiciais que se tornam sementes latentes para um tipo semelhante de ação ou cognição posterior. Assim como as plantas reproduzem apenas sua própria espécie, os atos cármicos saudáveis ou prejudiciais produzem efeitos segundo sua própria espécie. Esse ciclo serviu como metáfora para o processo de condicionamento cognitivo, bem como para o ciclo recorrente de nascimento e morte (samsara). Uma vez que a Yogachara aceita a doutrina budista da momentaneidade, diz-se que as sementes perduram apenas por um momento durante o qual elas se tornam a causa de uma semente semelhante que as sucede. Sementes momentâneas são causalmente ligadas em cadeias sequenciais, cada semente momentânea é um elo em uma cadeia de causas e efeitos cármicos.

As sementes são basicamente divididas em dois tipos: saudáveis e prejudiciais. As sementes prejudiciais são os hábitos cognitivos adquiridos, impedindo que se alcance a iluminação. As sementes saudáveis – também denominadas “puras” e “não-contaminadas” – dão origem a mais sementes puras, que aproximam a pessoa da iluminação. Em geral, a Yogachara diferencia as sementes internas (condicionamento pessoal) das sementes externas (sendo condicionadas por outros). As próprias sementes podem ser modificadas ou afetadas pela exposição a condições externas (sementes externas), que podem ser benéficas ou prejudiciais. A exposição a condições contaminantes intensifica as sementes prejudiciais, enquanto o contato com condições “puras”, como ouvir o Ensinamento Correto (Saddharma), pode estimular as sementes saudáveis a aumentar, diminuindo e, finalmente, erradicando as sementes prejudiciais.

Outra metáfora do condicionamento cármico que acompanha a metáfora da semente é a “perfumação” (vasana). Um tecido exposto ao cheiro de perfume adquire seu aroma. Da mesma forma, alguém é mental e comportamentalmente condicionado pelo que experimenta. Esse condicionamento produz hábitos cármicos, mas assim como o odor pode ser removido do tecido, o condicionamento pode ser purificado de hábitos perfumados. Tipicamente são discutidos três tipos de perfumação: 1. hábitos linguísticos e conceituais; 2. hábitos de interesse próprio e “apreensão ao eu” (ātma-grāha), isto é, a crença em um eu e o que pertence a esse eu; e 3. Hábitos que levam a situações de vida subsequentes (bhāvāṅga-vāsanā), isto é, as consequências cármicas a longo prazo de atividades cármicas específicas.

A literatura Yogachara debate a relação entre as sementes e a perfumação. Alguns afirmam que as sementes e a perfumação são realmente dois termos para a mesma coisa, isto é, os hábitos cármicos adquiridos. Outros afirmam que as sementes são simplesmente os efeitos da perfumação, ou seja, todo condicionamento é adquirido através da experiência. Outros ainda afirmam que “semente” refere-se às cadeias de hábitos condicionados que alguém já tem (seja adquiridos nesta vida, em alguma vida anterior ou mesmo “sem princípio”), enquanto “perfumação” denota as experiências que alguém tem que modificam ou afetam o desenvolvimento de suas sementes. “Sem principio” pode ser entendido como um corolário do termo “transcendental” de Husserl, isto é, uma sequência causal que constitui uma experiência presente cuja própria causa original permanece não revelada nessa experiência. Alguns alegaram que as possibilidades de iluminação dependiam inteiramente do tipo de sementes que já possuíamos; a perfumação simplesmente agia como um catalisador, mas não podia fornecer sementes saudáveis se ainda não as possuíssemos. Os seres totalmente desprovidos de sementes saudáveis eram chamados icchantikas (incorrigíveis); tais seres nunca poderiam alcançar a iluminação. Alguns outros budistas Mahayana, sentindo que isso violava a máxima Mahayana da salvação universal, atacaram a doutrina da incorrigibilidade.

A causa cármica da doença fundamental (duhkha) é o desejo expresso através do corpo, fala ou mente. Portanto, a Yogachara se concentrou exclusivamente em atividades cognitivas e mentais em relação às suas intenções, isto é, as operações da consciência, uma vez que o problema estava localizado ali. O budismo sempre identificou a ignorância e o desejo como as principais causas do sofrimento e renascimento. Os yogacharianos mapearam essas funções mentais para desmantelá-las. Como mapas desse tipo, em ultima analise, também eram criações da mente, eles também teriam que ser abandonados no decorrer do desmantelamento, mas seu valor terapêutico teria sido útil para promover a iluminação. Essa visão da conveniência provisória do budismo remonta ao próprio Buda. Os yogacharianos descrevem a iluminação como resultante da Derrubada da Base Cognitiva (ashraya-paravṛtti), isto é, invalidando as projeções e imaginações conceituais que atuam como base de nossas ações cognitivas. Essa derrubada transforma o modo básico de cognição da consciência (vijñana, discernimento) em jñana (conhecimento direto). O prefixo vi- é equivalente ao dis- ou des- em português – dis-criminar, dis-tinguir, des-engajar, des-conectar – significando bifurcar ou separar. O conhecimento direto foi definido como não-conceitual (nirvikalpa-jñana), ou seja, desprovido de sobreposição interpretativa.

O caso dos elementos materiais é importante para entender uma das razões pelas quais a Yogachara não é um idealismo metafísico. Nenhum texto Yogachara nega a materialidade (rupa) como uma categoria budista válida. Pelo contrário, os yogacharianos incluem a materialidade em sua análise. Sua abordagem da materialidade está bem enraizada nos precedentes budistas. Os textos budistas frequentemente substituem o termo “contato sensorial” (Pāli: phassa, sânscrito: sparsha) pelo termo “materialidade”. Essa substituição é um lembrete de que as formas físicas são sensoriais, que são conhecidas por serem o que são através da sensação. Até os primeiros textos budistas explicam que os quatro elementos materiais primários (mahabhuta) são as qualidades sensoriais da solidez, fluidez, temperatura e mobilidade; sua caracterização como terra, água, fogo e ar, respectivamente, é declarada uma abstração. Em vez de se concentrar no fato da existência material, observa-se como uma coisa física é detectada, sentida e percebida. A Yogachara nunca nega a existência de objetos dos sentidos (viṣaya, artha, alambana, etc.), mas nega que faça qualquer sentido falar em objetos cognitivos que ocorrem fora de um ato de cognição. Imaginar essa ocorrência é em si um ato cognitivo. A Yogachara está interessada em saber por que nos sentimos compelidos a imaginar.
Tudo o que conhecemos, concebemos, imaginamos ou temos consciência, conhecemos através da cognição, incluindo a noção de que as entidades podem existir independentemente da nossa cognição. A mente não cria o mundo físico, mas produz as categorias interpretativas através das quais conhecemos e classificamos o mundo físico, e ela faz isso de forma tão perfeita que confundimos nossas interpretações com o próprio mundo. Essas interpretações, que são projeções de nossos desejos e ansiedades, tornam-se obstruções (avaraṇa), impedindo-nos de ver o que realmente é o caso. Em termos simples, somos cegados por nossos próprios interesses, nossos próprios preconceitos (que significa o que já é pré-julgado) e desejos. A cognição não-iluminada é um ato de apropriação. A Yogachara não fala sobre sujeitos e objetos; ao contrário, analisa a percepção em termos de agarradores (grahaka) e o que é agarrado (grahya).

A Yogachara às vezes se assemelha a um idealismo epistemológico, que não afirma que este ou qualquer mundo seja construído pela mente, mas que geralmente somos incapazes de distinguir nossas construções e interpretações mentais do mundo do próprio mundo. A Yogachara chama esse narcisismo da consciência de vijñapti-matra, “nada além de construção consciente”. Um truque enganoso está embutido no modo como a consciência opera a cada momento. A consciência projeta e constrói um objeto cognitivo de tal maneira que renega sua própria criação – fingindo que o objeto está “lá fora” – a fim de tornar esse objeto capaz de ser apropriado. Mesmo enquanto o que conhecemos ocorre dentro do nosso ato de cognição, nós o conhecemos como se fosse externo à nossa consciência. A realização de vijñapti-matra expõe esse truque intrínseco ao funcionamento da consciência, eliminando-o. Quando esse engano é removido, o modo de cognição não é mais denominado vijñana (consciência); ele se tornou cognição direta (jñana) (veja acima). A consciência se engaja nesse jogo enganador de projeção, dissociação e apropriação porque não existe um “eu”. De acordo com o budismo, a visão errônea mais profunda e perniciosa mantida pelos seres sencientes é a visão de que existe um eu permanente, eterno, imutável e independente. Não existe tal eu, e no fundo sabemos disso. Isso nos deixa ansiosos, pois implica que nenhum eu ou identidade perdura para sempre. Para amenizar essa ansiedade, tentamos construir um eu, preencher o vazio ansioso, fazer algo duradouro. A projeção de objetos cognitivos para apropriação é a principal ferramenta da consciência para essa construção. Se eu possuo coisas (ideias, teorias, identidades, objetos materiais), então “eu sou”. Se existem objetos eternos que posso possuir, então, também devo ser eterno. Para minar esse agarramento apropriativo desesperado e errôneo, os textos Yogachara dizem: Negue o objeto e o eu também é negado (por exemplo, Madhyānta-vibhāga, 1: 4, 8).

Os yogacharianos negam a existência de objetos externos em dois sentidos.

1. Em termos de experiência convencional, eles não negam objetos como cadeiras, cores e árvores, mas rejeitam a afirmação de que tais coisas aparecem em qualquer outro lugar que não na consciência. É a externalidade, não os objetos em si, que eles desafiam.

2. Embora esses objetos sejam admissíveis como convencionalismos, em termos mais precisos, não há cadeiras, árvores etc. São apenas palavras e conceitos pelos quais reunimos e interpretamos sensações discretas que surgem momento a momento em um fluxo causal. Essas palavras e conceitos são projeções mentais.

A questão não é elevar a consciência, mas nos advertir a não sermos enganados por nosso próprio narcisismo cognitivo. A cognição iluminada é comparada a um grande espelho que reflete tudo de maneira imparcial e completa, sem apego ao que passou e sem expectativa ao que pode surgir. Que tipo de objetos os iluminados conhecem? Os yogacharianos se recusam a fornecer uma resposta, além de dizer que ela é purificada da contaminação cármica (anashrava), uma vez que qualquer descrição que eles pudessem oferecer seria apenas apropriada e reduzida às categorias cognitivas habituais que já nos impedem de ver corretamente.

4 - As Oito Consciências

A inovação mais famosa da escola Yogachara foi a doutrina das oito consciências. O budismo padrão descreveu seis consciências, cada uma produzida pelo contato entre seu órgão sensorial específico e um objeto sensorial correspondente. Quando um olho funcional entra em contato com uma cor ou forma, a consciência visual é produzida. Quando um ouvido funcional entra em contato com um som, a consciência auditiva é produzida. A consciência não cria a esfera sensorial, mas, pelo contrário, é um efeito da interação de um órgão sensorial e seu devido objeto. Se um olho não funciona, mas um objeto está presente, a consciência visual não surge. O mesmo acontece se um olho funcional não encontrar um objeto visual. A consciência surge dependente da sensação. Ao todo existem seis órgãos dos sentidos (olho, ouvido, nariz, boca, corpo e mente) que interagem com seus respectivos domínios de objetos sensoriais (as esferas visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil e mental). Observe que a mente é considerada outro sentido, uma vez que ela funciona como os outros sentidos, envolvendo a atividade de um órgão do sentido (manas), seu domínio (mano-dhatu) e a consciência (mano-vijñana) resultante do contato do órgão e do objeto. Cada domínio é discreto, o que significa que visão, audição e cada uma das esferas restantes funciona separada uma da outra. Portanto, surdos podem ver e cegos podem ouvir. Os objetos também são inteiramente específicos ao seu domínio, e o mesmo se aplica às consciências. A consciência visual é totalmente distinta da consciência auditiva, e assim por diante. Portanto, existem seis tipos distintos de consciência (a consciência visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil e mental). Esses dezoito componentes da experiência – ou seja, seis órgãos dos sentidos, seis domínios de objetos dos sentidos e seis consciências resultantes – foram chamados de dezoito dhatus. De acordo com a doutrina budista padrão, esses dezoito esgotam toda a extensão de tudo no universo, ou mais precisamente, o sensório.

O Abidhamma budista inicial, concentrando-se nos aspectos mentais e cognitivos do carma, expandiu os três componentes do nível mental – mente (manas), objetos mentais (mano-dhatu) e consciência mental (mano-vijñana) – em um complexo sistema de categorias. O vetor aperceptivo em qualquer momento cognitivo foi chamado de citta. Os objetos, texturas, tons emocionais, morais e psicológicos das cognições de citta eram chamados de caittas. Os caittas (lit.: “associados à citta”) foram subdivididos em numerosas categorias que variavam em diferentes escolas budistas. Alguns caittas são “universais”, o que significa que são componentes de toda cognição (por exemplo, contato sensorial, tom hedônico, atenção, etc.); alguns são “especializados”, significando que ocorrem apenas em algumas cognições (não em todas) (por exemplo, resolução, atenção plena, clareza meditativa, etc.). Algumas caittas são salutares (por exemplo, fé, tranquilidade; falta de ganância, ódio ou equívoco, etc.), algumas são prejudiciais, outras são perturbações mentais (klesha - intenção apropriativa, aversão, arrogância, etc.) ou perturbações mentais secundárias (raiva, inveja, dolo, falta de vergonha etc.), e algumas são carmicamente indeterminadas (torpor, remorso etc.).

À medida que o Abidarma se tornava mais complexo, as disputas se intensificaram entre diferentes escolas budistas ao longo de uma série de questões. Para a Yogachara, os problemas mais importantes giravam em torno de questões de causalidade e consciência. Para evitar a ideia de um eu permanente, os budistas disseram que citta é momentânea. Uma vez que uma nova citta apercebe um novo campo cognitivo a cada momento, a aparente continuidade dos estados mentais foi explicada causalmente ao afirmar que cada citta, no momento em que cessava, também atuava como causa para o surgimento de sua sucessora. Isso foi bom para percepções e processos de pensamento contínuos, mas surgiram dificuldades uma vez que os budistas identificaram uma série de situações nas quais nenhuma citta estava presente ou operava, como o sono profundo, a inconsciência e certas condições meditativas explicitamente definidas como desprovidas de citta (asaṃjni-samapatti, nirodha-samapatti). Se uma citta anterior tivesse que ser temporalmente contígua ou próxima à sua sucessora, como explicar o repentino reinício da citta após um período de tempo decorrido uma vez que a citta anterior cessou? Onde a citta ou suas causas residiam nesse ínterim? Perguntas análogas foram: de onde a consciência ressurge após o sono profundo? Como a consciência começa em uma nova vida? As várias tentativas budistas de responder a essas perguntas levaram a mais dificuldades e disputas.

Os yogacharianos reagiram reorganizando a estrutura tripartida do nível mental dos dezoito dhatus em três novos tipos de consciência. Mano-vijñana (a consciência empírica) tornou-se a sexta consciência (e operava como o sexto órgão dos sentidos, que anteriormente tinha sido o papel de manas), que inspeciona o conteúdo cognitivo dos cinco sentidos, bem como dos objetos mentais (pensamentos, ideias). Manas se tornou a sétima consciência, redefinida como obcecada principalmente por vários aspectos e noções de “eu”, e, portanto chamada de “manas contaminada” (klishṭa-manas). A oitava consciência, alaya-vijñana, a “consciência depósito ou consciência armazenadora”, era totalmente nova. A Consciência Depósito foi definida de várias maneiras. Ela é o receptáculo de todas as sementes, armazenando experiências à medida que elas “entram” até serem enviadas de volta como novas experiências, como um armazém que lida com mercadorias. Ela também foi chamada de consciência vipaka: vipaka significa o “amadurecimento” das sementes cármicas. As sementes amadureciam gradualmente na consciência repositório até maturarem carmicamente, momento em que se reafirmam como consequências cármicas. A alaya-vijñana também foi chamada de “consciência básica” (mula-vijñana), uma vez que ela retém e distribui as sementes cármicas que tanto influenciam como são influenciadas pelas outras sete consciências.

Quando, por exemplo, a sexta consciência está inativa (enquanto alguém dorme, ou está inconsciente etc.), suas sementes residem na oitava consciência e elas “recomeçam” quando as condições para seu surgimento estão presentes. A oitava consciência é, em grande parte, um mecanismo para armazenar e acionar sementes das quais permanece em grande parte inconsciente. As cittas ocorrem como um fluxo em alaya-vijñana, mas elas geralmente conhecem as atividades das outras consciências, não suas próprias sementes. Para Yogachara, a “ignorância” (avidya) em parte significa permanecer ignorante do que está acontecendo dentro de sua própria alaya-vijñana.

Em estados desprovidos de citta, o fluxo de cittas é reprimido e retido, mas suas sementes continuam a se regenerar sem serem notadas, até reafirmarem um novo fluxo de cittas. A Consciência Depósito atua como o mecanismo cármico essencial, mas é em si mesma carmicamente neutra. Cada indivíduo tem sua própria Consciência Depósito, que perdura de momento a momento e de vida para vida, embora ela não seja nada além de uma coleção de "sementes" em constante mudança; ela está continuamente mudando e, portanto, não é um eu permanente. Não existe uma mente coletiva universal na Yogachara.

A iluminação consiste em dar um fim às oito consciências, substituindo-as por habilidades cognitivas iluminadas (jñana). A Derrubada da Base transforma as cinco consciências sensoriais em cognições imediatas que realizam o que precisa ser feito (kṛtyanushṭhana-jñana). A sexta consciência se torna um domínio cognitivo imediato (pratyavekshaṇa-jñana), no qual as características gerais e particulares das coisas são discernidas exatamente como elas são. Esse discernimento é considerado não-conceitual (nirvikalpa-jñana). Manas se torna a cognição imediata da igualdade (samata-jñana), igualando o eu e o outro. Quando a Consciência Depósito finalmente cessa, ela é substituída pela Cognição do Grande Espelho (Mahadarsha-jñana), que vê e reflete as coisas como elas são, imparcialmente, sem exclusão, preconceito, antecipação, apego ou distorção.

A relação do agarrador-agarrado cessou. Deve-se notar que todas essas cognições “purificadas” envolvem o mundo de maneiras imediatas e eficazes, removendo o auto-viés, o preconceito e as obstruções que anteriormente impediam a pessoa de perceber além da própria consciência narcisista. Quando a consciência termina, o verdadeiro conhecimento começa. Uma vez que a cognição iluminada é não-conceitual, seus objetos não podem ser descritos. Assim, os yogacharianos não fornecem descrições, muito menos relatos ontológicos, do que se torna evidente nesses tipos de cognições iluminadas, exceto para dizer que são “puras” (de construções imaginativas).

Mais uma inovação da Yogachara foi a noção de que um tipo especial de cognição emergia e se desenvolvia após a iluminação. Essa cognição pós-iluminação era chamada pṛshṭhalabdha-jñana, e dizia respeito a como alguém que entendeu as coisas como elas realmente vêm a ser (yatha-bhutam) agora se engaja no mundo para ajudar outros seres sencientes a superar o sofrimento e a ignorância.

5 - As Três Naturezas Próprias

A teoria das três naturezas próprias (tri-svabhava), que é explicada em muitos textos Yogachara, incluindo um tratado independente de Vasubandhu dedicado ao assunto (Trisvabhava-nirdesha-shastra), sustenta que existem três "naturezas" ou domínios cognitivos em jogo.

1. O reino conceitualmente construído (parikalpita-svabhava) imputa onipresentemente concepções irreais, especialmente “eus” permanentes, naquilo que experimenta, incluindo a si próprio.

2. O reino da dependência causal (paratantra-svabhava), quando misturado com o reino construído, leva alguém a confundir ocorrências impermanentes no fluxo de causas e condições por entidades fixas e permanentes. Pode ser purificado dessas delusões pelo

3. reino da perfeição (pariniṣpanna-svabhava) que, como a noção Madhyamaka de vacuidade no qual se baseia, atua como um antídoto (pratipakṣa) que “purifica” ou limpa todas as construções delusórias do reino causal.

O reino conceitualmente construído é o reino narcisista errôneo no qual habitamos principalmente, repleto de projeções que adquirimos, habituamos e incorporamos. O Paratantra (lit. “dependente de outro”) enfatiza que tudo surge causalmente dependente de outras coisas que não de si próprio (isto é, tudo carece de auto-existência). O reino da perfeição significa a ausência de svabhāva (natureza independente, auto-existente e permanente) em tudo.

Quando o reino causalmente dependente é limpo de todas as impurezas, ele se torna “iluminado”. Essas naturezas-próprias também são chamadas de Três Não-naturezas-próprias, uma vez que não possuem identidades fixas, independentes, verdadeiras e permanentes e, portanto, não devem ser reificadas. A primeira é irreal por definição; a terceira é intrinsecamente “vazia” de natureza própria, isto é, é a própria definição de não-natureza-própria; e o segundo (que finalmente é a único “real”) é de natureza não-fixa, pois pode ser “misturada” com qualquer um dos outros dois. Compreender a segunda natureza purificada é equivalente a entender a origem dependente (pratītya-samutpāda), que todas as escolas do budismo aceitam como a doutrina central do budismo e cuja tradição afirma que Buda veio a realizar sob a árvore Bodhi na noite de sua iluminação.

6 - Cinco Estágios

A literatura Yogachara é tão vasta que não devemos nos surpreender ao descobrir que muitas de suas tentativas de fornecer sistemas detalhados entram em conflito entre si. Uma vez que ela era uma tradição escolástica autocrítica, não era incomum que os textos Yogachara discutissem e criticassem as posições de outros textos Yogachara, bem como seus oponentes mais óbvios. As posições da Yogachara nos estágios do caminho são diversas. O Dashabhumika-sutra-shastra, um comentário atribuído a Vasubandhu sobre as Escrituras dos Dez Estágios (Dashabhumika-sutra), descreve o progresso do caminho do Bodisatva para a liberação Mahayanista em dez estágios, comparável aos dez estágios implícitos na formulação Mahayanista das dez perfeições da sabedoria. O Yogacharabhumi-shastra de Asanga descreve uma série de dezessete estágios. Existem outras formulações, como o caminho dos cinco estágios, que oferece uma visão geral útil das outras formulações. Resumiremos brevemente o caminho das cinco estágios, conforme estabelecido no Cheng Weishilun de Xuanzang.

O primeiro estágio é chamado de “provisionamento” (sambhārāvasthā), pois esse é o estágio em que se coleta e armazena “provisões” para a jornada. Essas provisões consistem principalmente em orientar-se para a busca do caminho e desenvolver o caráter, a atitude e a determinação adequados para alcançá-lo. Ele começa no momento em que surge a aspiração pela iluminação (bodichita).

O próximo estágio é o estágio “experimental” (prayogāvasthā), no qual se começa a experimentar as teorias e práticas budistas corretas, aprendendo quais funcionam e quais não funcionam, quais são verdadeiras e quais não são. Começa-se a suprimir a relação agarrador-agarrado e começa-se a estudar cuidadosamente a relação entre as coisas, a linguagem e a cognição.

Depois de aperfeiçoar a disciplina, entra-se no terceiro estágio, “aprofundando a compreensão” (prativedhāvasthā). Alguns textos se referem a isso como o Caminho da Visão Corretiva (darshana-mārga). Esse estágio termina quando se obtém algum insight da cognição não-conceitual.

A cognição não-conceitual se aprofunda no próximo estágio, o Caminho do Cultivo (bhāvanā-mārga). A relação agarrador-agarrado é totalmente eliminada, assim como todas as obstruções cognitivas. Esse caminho culmina na derrubada da base, ou na iluminação.

No “estágio final” (niṣṭhāvasthā), permanecemos na Iluminação Completa Insuperável e envolvemos o mundo através das cinco cognições imediatas (veja acima). Todas as nossas atividades e cognições nesta fase são de “pós-realização”. Como um Mahayanista, desde o primeiro estágio, temos nos dedicado não apenas a nossa própria realização da iluminação, mas à realização da iluminação por todos os seres sencientes. Nesta fase, isso se torna a nossa única preocupação.

Bibliografia Selecionada

Anacker, Stefan. (1984) Sete obras de Vasubandhu. Delhi: Motilal Banarsidass (tradução e discussão importantes de obras-chave de Vasubandhu, incluindo alguns de seus tratados pré-Yogācāra)

Buswell, Robert E. (1989) A Formação da Ideologia Ch'an na China e na Coréia: O Vajrasamādhi-Sūtra, um Apócrifo Budista. Princeton: Princeton University Press (o ensaio introdutório a este livro contém o relato publicado mais completo em inglês do debate entre as escolas Yogachara chinesa e Tathagatagarbha. No entanto, sua apresentação representa o ponto de vista deste último que distorce substancialmente as posições reais da Yogachara)

Griffiths, Paul. (1986) On Being Mindless: Buddhist Meditation and the Mind-Body Problem. La Salle, IL: Tribunal aberto (discussão filosófica analítica das meditações de cessação "sem mente", traduzindo e examinando algumas seções relevantes dos textos de Theravāda, Vaibhāṣika e Yogachara. Este livro é útil para entender como as posições dos yogacharianos se relacionam com o budismo em geral)

Griffiths, Paul, Hakamaya Noriaki, John Keenan e Paul Swanson. (1989) O Reino do Despertar: Capítulo Dez do Mahāyānasaṃgraha de Asaṅga. NY e Oxford: Oxford University Press (esforço coletivo de uma aula ministrada por Hakamaya na Universidade de Wisconsin. Compara e traduz versões chinesas e tibetanas do texto raiz, além de comentários importantes. Uma boa apresentação do estilo escolasticamente denso de alguns textos Yogachara)

Hayes, Richard P. (1988) Dignaga sobre a Interpretação de Sinais. Estudos da Índia Clássica, vol. 9. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers (Um exame excelente e desafiador do lógico mais famoso do budismo)

Kochumuttom, Thomas. (1982) Uma doutrina budista da experiência. Delhi: Motilal Banarsi-dass (tradução e análise crítica dos principais textos Yogachara de Vasubandhu que argumentam que eles devem ser interpretados como realismo crítico, e não idealismo)

Lamotte, 'Etienne (tradutor). (1935) Saṃdhinirmocana-sūtra. Louvain e Paris: Uni-versit'e de Louvain e Adrian Maisonneuve (tradução em francês ricamente anotada, desenho nas versões tibetana e chinesa. John Powers publicou uma tradução em inglês do tibetano - 1995, Wisdom of the Buddha: The Saṃdhinirmocana Mahāyāna Sūtra, Berkeley : Publicação do Dharma)

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Poderes, John. (1991) A Escola Yogachara do Budismo: Uma Bibliografia. Metuchen, NJ: Scarecrow Press (Uma bibliografia bastante abrangente, listando virtualmente todos os trabalhos conhecidos da Yogachara em sânscrito e tibetano e os trabalhos mais comuns em idiomas ocidentais. Sua cobertura da Yogachara do Leste Asiático é menos completa)

Rahula, Walpola (tradutor). (1971) O Compêndio da Super-Doutrina d'Asaṅga (Abhidharmasamuccaya). Paris: Publicações da Ecole Française d'Extrême Orient (a única tradução para o ocidente deste importante texto de Asanga)

Sparham, Gareth (tradutor). (1993) Ocean of Eloquence: Comentário de Tsong kha pa sobre a Doutrina da Mente Yogachara. Albany: State University of New York Press (tradução de um trabalho interessante do reformador do Grande Gelugpa Tibetano desde seus primeiros dias)

Tatz, Mark. (1986) Capítulo de ética de Asanga com o comentário de Tsongkhapa. Lewiston, NY: Edwin Mellen Press (tradução e discussão da seção sobre ética do capítulo Bodhisattvabhūmi do Yogācārabhūmi)

Xuanzang (Hsü; an-tsang). (659) Cheng weishilun (Tratado que estabelece o Vijñapti-mātra). Taishou Shinshū Daizokyou 1585.31 1-59; traduzido para o francês por Louis de la Vall'ee Poussin, (1928) Vijñaptimātratāsiddhi, Paris, 2 vols .; traduzido para o inglês por Wei Tat, (1973) Ch'eng Wei-Shih Lun: A Doutrina da Mera Consciência, Hong Kong; tradução parcial para o inglês de Swati Ganguly, (1992) Tratado em Trinta Versos sobre Mera-Consciência, Delhi: Motilal Banarsidass (obra chinesa do século VII de Xuanzang, um comentário sobre o Triṃśikā de Vasubandhu, baseado em comentários sânscritos, tornou-se uma das exposições padrão da doutrina Yogachara no leste da Ásia A versão de Vall'ee Poussin é muito frouxa, baseando-se em antigas bolsas de estudos japonesas e comentários chineses. Vall'ee Poussin interpreta o texto idealmente. A versão de Tat é uma versão em inglês do texto em francês de Vall'ee Poussin, menos o último anotações extensivas. A abreviação de Ganguly é conveniente, mas freqüentemente equivocada)

Sobre o autor

Dan Lusthaus é um escritor norte-americano sobre budismo. Se formou no Departamento de Religião da Temple University e é especialista em Yogācāra. Autor de vários artigos e livros sobre o tema, Lusthaus lecionou na UCLA, Universidade Estadual da Flórida, Universidade do Missouri e, na primavera de 2005, foi professor na Universidade de Boston. Lusthaus também colaborou com Heng-ching Shih na tradução do comentário de Kuiji (K'uei-chi) sobre o Sutra do Coração com o projeto de tradução Numata. É um editor do Dicionário Digital de Budismo, na área de Yogācāra indiano/leste asiático/Tathāgatagarbha.

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