Por Paulo Stekel
Independente
das classificações didáticas que já existem, podemos dividir a
história da espiritualidade humana em três períodos:
-
Período mágico-panteísta
-
Período religioso-teísta/não-teísta
-
Período espiritual emergente
O
período mágico-panteísta
é o mais antigo. Uma espiritualidade tribal, do
tipo “culto” local, não indo além dos limites da tribo, ainda
encontrada em alguns cantos do mundo. É baseada no conceito de clã,
no totemismo e na inseparatividade entre a prática espiritual e a
vida social. Não há uma separação entre “material” e
“espiritual”, como ocorrerá no segundo período. Tudo é uma
coisa só, e a percepção de consciência de seus praticantes é
mais harmonizada com a natureza, tendendo para a concepção de uma
mente inseparável dos ancestrais, dos reinos superiores e no
universo como um todo.
Do
ponto de vista moral, esta visão é menos “moralizante” que a
segunda, mas também menos elaborada. Contudo, é tão fixada em
assombro, tabus e regras, além de presa ao próprio clã, que vê os
demais como estranhos, estrangeiros, alienígenas, que não é
possível uma conjunção, sem destruição da ordem (como a antiga
“rta”, a ordem cósmica do vedismo arcaico). Nesta fase, a
divindade, ou antes, divindades, são vistas como imanentes, e não
como transcendentes ao ser humano, o que é característica do
segundo período. Os deuses estão e são a
natureza. E, como o ser humano pertence à natureza, está irmanado
em essência aos deuses. “Tudo é Deus” ou “os deuses” (daí,
panteísmo). Persistem alguns resquícios
desta fase nos cultos xamânicos (não o neoxamanismo), práticas
indígenas e aborígenes de várias partes do planeta. Na maior
parte, tais resquícios estão há muito tempo mesclados com
conceitos do período seguinte, que é transcendentalista, no geral.
O
período religioso-teísta/não-teísta,
como o chamo, abdica do imanentismo
panteísta, de uma aparente conexão humana com o todo, e cria a
noção do dualismo: dia e noite, masculino e feminino, luz e trevas,
bem e mal, vida e morte, mundo corrupto e mundo paradisíaco e, por
fim, Deus e Diabo. Aqui, o clã não importa mais, pois a comunidade
de praticantes não tem, necessariamente, laços de sangue, apenas
laços por compromisso doutrinal, irmandade de objetivos. E, estes
objetivos são transcendentais ao mundo, não imanentes a ele. Ou
seja, estava não junto aos deuses, mas abaixo deles, e temos que nos
esforçar para alçar voo até suas esferas ou paraísos, ou ficamos
fadados a permanecer no mundo ou cair em infernos ainda piores. Os
praticantes do primeiro período não pensavam assim. Não havia nada
a ser feito, a não ser viver em harmonia com os deuses.
Esta
segunda fase, que deixou de ser “culto”
para ser “religião”, que substituiu a
“rta” (ordem cósmica) pelo “dharma” (lei a ser cumprida para
subir a altas esferas) e o “pantheos”, possui
duas opções antagônicas: um teísmo
maniqueísta (Ormuz x Ahriman, Deus x Diabo, Suras x Asuras) que
substitui o “pantheos” por “Theos”,
comum às religiões abraâmicas e, quase
sempre, dualista (a exceção seria o Advaita Vedanta, que apresenta
um teísmo não-dualista); um não-teísmo
anti-dualista ou, por vezes, não-dualista (Tao, Shunyata) que
substitui o “pantheos” e o “Theos” pelo “anatma” (não-eu,
não-alma e, por conseguinte, não-Deus)
comum ao taoismo e ao budismo em suas várias vertentes (melhor falar
em “budismos”).
A
vertente teísta desta segunda fase
deposita todo o transcendentalismo em Deus (ou Atman, Brahman, Yavé,
Allah), pintando-o com características humanas idealizadas e
imaginadas como perfeitas (amor, sinceridade, lealdade, bondade,
etc.), mas sem deixar de contradizer-se, ao apresentá-lo com
características menos nobres como ciúme, vingança e ameaça com a
danação eterna. É uma moral dualista e contraditória, portanto. É
usada para referendar a divisão dos papeis sociais, para fixar a
supremacia masculina sobre as mulheres e demonizar os alienados, ou
seja, os diferentes ou contestadores do status quo.
A
vertente não-teísta desta
segunda fase deposita todo o transcendentalismo num conceito
abstrato, como Tao, Vazio (Shunyata) ou Nada (a concepção
cabalística de Áin ou Ên-sof flerta com o não-teísmo
não-dualista, como demonstra em seus artigos o Rabino Jay
Michaelson). Este conceito abstrato não é moralizado, como na outra
vertente. Não tem, portanto, nem qualidades, nem defeitos, e nada a
ser acrescentado ou excluído. Não é um “ateísmo” absoluto e
muito menos um “agnosticismo”, mas uma via alternativa de
transcendentalismo. É tal, porque há um objetivo mais elevado ou,
de mais ampla percepção, a ser acessado, como o Céu e a
imortalidade taoísta ou o Nirvana e as terras puras budistas. Sem
isso, esta vertente não seria transcendentalista, mas uma prática
sem objetivo direto, algo do qual apenas a filosofia tibetana chamada
Dzogchen
parece se aproximar.
Em
geral, o que este segundo período da espiritualidade humana criou,
foi a divisão entre “material” e “espiritual”, de onde, por
extensão, saíram noções como pecado x santidade, submissão x
iniquidade, inclusão x separação, puro x impuro, humano x divino,
superior x inferior, sendo esta última noção a responsável por
todas as divisões de classe da modernidade, gestadas deste o período
axial que viu nascer as grandes religiões instituídas de Zoroastro
e Buda até Maomé. Enfim, um período incrivel e fatidicamente
moralizante, hipócrita e elitista. Também misógino, racista,
xenófobo e homofóbico.
Vimos,
desde o Século XIX e por todo o Século XX, a decadência desta
segunda fase da espiritualidade humana, com o fim da influência da
Igreja Católica e da religião em geral sobre os assuntos do Estado,
que se afirmou como plural e inclusivo, aos poucos. Como estamos numa
era de transição, forças retrógradas ainda tentam recuperar o
domínio moralizante da religião, como vemos pela ascensão do
fundamentalismo religioso, especialmente o das religiões abraâmicas,
e tentam dar na humanidade um duro e último golpe de imposição de
ideias e crenças, além de uma moral totalmente desconectada da
realidade, tanto da científica quanto da psicológica e do próprio
bom senso. Tentam “reemburcar” as mulheres, reconstruir armários
para os gays e lésbicas e “reagrilhoar” negros e indígenas
mundo afora. O nazismo foi uma das tentativas mais sórdidas e
(quase) bem sucedidas. Os líderes dos “estertores da religião”
são, em geral, hipócritas, doentes mentais, psicopatas,
delinquentes e maus elementos, frequentemente envolvidos em crimes,
roubos, traições e lavagem cerebral de seus fieis.
Dito
isto, podemos anunciar o FIM DA RELIGIÃO como algo necessário e
objetivo de utilidade pública e bem comum, em prol do nascimento de
uma ESPIRITUALIDADE EMERGENTE, que tenha como corolários a não
moralização do indivíduo em bases dualistas (pessoas boas x
pessoas más, superiores x inferiores, dignos x desprezíveis,
merecedores de vida x merecedores de pena de morte, etc.), mas o
acolhimento do ser por completo.
Não
é o objetivo deste texto especular sobre quais seriam as crenças
metafísicas de uma espiritualidade emergente. Contudo, os pontos em
comum deveriam ser o bem comum das sociedades, a autodeterminação
dos povos, a não
exploração do homem pelo homem, a não inferiorização das
mulheres, dos negros, dos povos nativos e das minorias de qualquer
tipo (gays, transexuais, deficientes, pessoas
com transtornos mentais, etc.), o fim dos benefícios baseados em
classe social, da apropriação unilateral de direitos sobre a vida
humana de outrem e da guerra baseada em religião.
Estamos
entrando aos poucos neste terceira fase da espiritualidade humana, a
da espiritualidade emergente.
É uma espiritualidade com protagonismo político-social, não
político-partidário ou político-ideológico, como infelizmente
temos visto nos últimos anos, tanto no Brasil quanto no nível
internacional. Nos preocupamos tanto com as “fake news”, as
notícias falsas, a pós-verdade, mas não percebemos que, no geral,
as religiões têm sido a grande “fake news” da história, com
suas verdades prontas e enclausuradas em sistemas incompatíveis uns
com os outros
(por isso, as guerras de religião). Todas
querem protagonismo, todas querem expansionismo, todas querem ser a
verdade hegemônica, algo muito parecido com todas as formas de
imperialismo político do Império Romano (ou de antes) até aqui.
Abdicar
dos pontos de vista e de se ter razão ou a última palavra sobre as
coisas é um dos grandes ensinamentos do Buda, 2500 anos atrás. Nem
sempre os próprios budistas têm seguido este conselho, mas ele se
mostra muito útil no momento atual, em que cada um quer fazer valer
sua opinião no grito, no choro e no mimimi, mas sem o mínimo
componente de racionalidade, contemplação ou legitimidade
experiencial. Foram-se os santos, os mestres, os gurus, e ficaram os
santos do pau oco, os mestres abusadores e os gurus e pastores
multimilionários que dizem que Deus quer mesmo é meter a mão no
seu bolso! Esta espiritualidade arcaica DEVE estar com os seus dias
contados, ou não teremos novos dias, apenas o “nada” dos
neonazistas imiscuídos nos governos radicais da atualidade.
Sobre o autor
Paulo
Stekel é instrutor de
Meditação Não-dualista, orientador
do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa,
pesquisador
de Religiões e Espiritualidades, praticante
budista desde 1995 (seu
nome budista vajrayana
é Pema Dorje),
membro
do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e
Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em
Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico,
com vários álbuns lançados desde 2009.
É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista,
Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos
textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS).
Atualmente reside em
Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística
(uma
nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu
livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas
sagradas”, publicado em 2006).
Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) -
filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto
Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo
e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO,
2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras
anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala
- com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]”
(Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de
Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A
Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como
paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da
escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e
publicado em Inglês no website do Museu de Glozel
(http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm)
desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação
livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa
de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de
decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista
Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em
Inglês e Bósnio:
http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.
Contatos:
pstekel@gmail.com