segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Uma Nova Espiritualidade é cada vez mais necessária

Por Paulo Stekel


Independente das classificações didáticas que já existem, podemos dividir a história da espiritualidade humana em três períodos:

- Período mágico-panteísta

- Período religioso-teísta/não-teísta

- Período espiritual emergente

O período mágico-panteísta é o mais antigo. Uma espiritualidade tribal, do tipo “culto” local, não indo além dos limites da tribo, ainda encontrada em alguns cantos do mundo. É baseada no conceito de clã, no totemismo e na inseparatividade entre a prática espiritual e a vida social. Não há uma separação entre “material” e “espiritual”, como ocorrerá no segundo período. Tudo é uma coisa só, e a percepção de consciência de seus praticantes é mais harmonizada com a natureza, tendendo para a concepção de uma mente inseparável dos ancestrais, dos reinos superiores e no universo como um todo.

Do ponto de vista moral, esta visão é menos “moralizante” que a segunda, mas também menos elaborada. Contudo, é tão fixada em assombro, tabus e regras, além de presa ao próprio clã, que vê os demais como estranhos, estrangeiros, alienígenas, que não é possível uma conjunção, sem destruição da ordem (como a antiga “rta”, a ordem cósmica do vedismo arcaico). Nesta fase, a divindade, ou antes, divindades, são vistas como imanentes, e não como transcendentes ao ser humano, o que é característica do segundo período. Os deuses estão e são a natureza. E, como o ser humano pertence à natureza, está irmanado em essência aos deuses. “Tudo é Deus” ou “os deuses” (daí, panteísmo). Persistem alguns resquícios desta fase nos cultos xamânicos (não o neoxamanismo), práticas indígenas e aborígenes de várias partes do planeta. Na maior parte, tais resquícios estão há muito tempo mesclados com conceitos do período seguinte, que é transcendentalista, no geral.

O período religioso-teísta/não-teísta, como o chamo, abdica do imanentismo panteísta, de uma aparente conexão humana com o todo, e cria a noção do dualismo: dia e noite, masculino e feminino, luz e trevas, bem e mal, vida e morte, mundo corrupto e mundo paradisíaco e, por fim, Deus e Diabo. Aqui, o clã não importa mais, pois a comunidade de praticantes não tem, necessariamente, laços de sangue, apenas laços por compromisso doutrinal, irmandade de objetivos. E, estes objetivos são transcendentais ao mundo, não imanentes a ele. Ou seja, estava não junto aos deuses, mas abaixo deles, e temos que nos esforçar para alçar voo até suas esferas ou paraísos, ou ficamos fadados a permanecer no mundo ou cair em infernos ainda piores. Os praticantes do primeiro período não pensavam assim. Não havia nada a ser feito, a não ser viver em harmonia com os deuses.

Esta segunda fase, que deixou de ser “culto” para ser “religião”, que substituiu a “rta” (ordem cósmica) pelo “dharma” (lei a ser cumprida para subir a altas esferas) e o “pantheos”, possui duas opções antagônicas: um teísmo maniqueísta (Ormuz x Ahriman, Deus x Diabo, Suras x Asuras) que substitui o “pantheos” por “Theos”, comum às religiões abraâmicas e, quase sempre, dualista (a exceção seria o Advaita Vedanta, que apresenta um teísmo não-dualista); um não-teísmo anti-dualista ou, por vezes, não-dualista (Tao, Shunyata) que substitui o “pantheos” e o “Theos” pelo “anatma” (não-eu, não-alma e, por conseguinte, não-Deus) comum ao taoismo e ao budismo em suas várias vertentes (melhor falar em “budismos”).

A vertente teísta desta segunda fase deposita todo o transcendentalismo em Deus (ou Atman, Brahman, Yavé, Allah), pintando-o com características humanas idealizadas e imaginadas como perfeitas (amor, sinceridade, lealdade, bondade, etc.), mas sem deixar de contradizer-se, ao apresentá-lo com características menos nobres como ciúme, vingança e ameaça com a danação eterna. É uma moral dualista e contraditória, portanto. É usada para referendar a divisão dos papeis sociais, para fixar a supremacia masculina sobre as mulheres e demonizar os alienados, ou seja, os diferentes ou contestadores do status quo.

A vertente não-teísta desta segunda fase deposita todo o transcendentalismo num conceito abstrato, como Tao, Vazio (Shunyata) ou Nada (a concepção cabalística de Áin ou Ên-sof flerta com o não-teísmo não-dualista, como demonstra em seus artigos o Rabino Jay Michaelson). Este conceito abstrato não é moralizado, como na outra vertente. Não tem, portanto, nem qualidades, nem defeitos, e nada a ser acrescentado ou excluído. Não é um “ateísmo” absoluto e muito menos um “agnosticismo”, mas uma via alternativa de transcendentalismo. É tal, porque há um objetivo mais elevado ou, de mais ampla percepção, a ser acessado, como o Céu e a imortalidade taoísta ou o Nirvana e as terras puras budistas. Sem isso, esta vertente não seria transcendentalista, mas uma prática sem objetivo direto, algo do qual apenas a filosofia tibetana chamada Dzogchen parece se aproximar.

Em geral, o que este segundo período da espiritualidade humana criou, foi a divisão entre “material” e “espiritual”, de onde, por extensão, saíram noções como pecado x santidade, submissão x iniquidade, inclusão x separação, puro x impuro, humano x divino, superior x inferior, sendo esta última noção a responsável por todas as divisões de classe da modernidade, gestadas deste o período axial que viu nascer as grandes religiões instituídas de Zoroastro e Buda até Maomé. Enfim, um período incrivel e fatidicamente moralizante, hipócrita e elitista. Também misógino, racista, xenófobo e homofóbico.

Vimos, desde o Século XIX e por todo o Século XX, a decadência desta segunda fase da espiritualidade humana, com o fim da influência da Igreja Católica e da religião em geral sobre os assuntos do Estado, que se afirmou como plural e inclusivo, aos poucos. Como estamos numa era de transição, forças retrógradas ainda tentam recuperar o domínio moralizante da religião, como vemos pela ascensão do fundamentalismo religioso, especialmente o das religiões abraâmicas, e tentam dar na humanidade um duro e último golpe de imposição de ideias e crenças, além de uma moral totalmente desconectada da realidade, tanto da científica quanto da psicológica e do próprio bom senso. Tentam “reemburcar” as mulheres, reconstruir armários para os gays e lésbicas e “reagrilhoar” negros e indígenas mundo afora. O nazismo foi uma das tentativas mais sórdidas e (quase) bem sucedidas. Os líderes dos “estertores da religião” são, em geral, hipócritas, doentes mentais, psicopatas, delinquentes e maus elementos, frequentemente envolvidos em crimes, roubos, traições e lavagem cerebral de seus fieis.

Dito isto, podemos anunciar o FIM DA RELIGIÃO como algo necessário e objetivo de utilidade pública e bem comum, em prol do nascimento de uma ESPIRITUALIDADE EMERGENTE, que tenha como corolários a não moralização do indivíduo em bases dualistas (pessoas boas x pessoas más, superiores x inferiores, dignos x desprezíveis, merecedores de vida x merecedores de pena de morte, etc.), mas o acolhimento do ser por completo.

Não é o objetivo deste texto especular sobre quais seriam as crenças metafísicas de uma espiritualidade emergente. Contudo, os pontos em comum deveriam ser o bem comum das sociedades, a autodeterminação dos povos, a não exploração do homem pelo homem, a não inferiorização das mulheres, dos negros, dos povos nativos e das minorias de qualquer tipo (gays, transexuais, deficientes, pessoas com transtornos mentais, etc.), o fim dos benefícios baseados em classe social, da apropriação unilateral de direitos sobre a vida humana de outrem e da guerra baseada em religião.

Estamos entrando aos poucos neste terceira fase da espiritualidade humana, a da espiritualidade emergente. É uma espiritualidade com protagonismo político-social, não político-partidário ou político-ideológico, como infelizmente temos visto nos últimos anos, tanto no Brasil quanto no nível internacional. Nos preocupamos tanto com as “fake news”, as notícias falsas, a pós-verdade, mas não percebemos que, no geral, as religiões têm sido a grande “fake news” da história, com suas verdades prontas e enclausuradas em sistemas incompatíveis uns com os outros (por isso, as guerras de religião). Todas querem protagonismo, todas querem expansionismo, todas querem ser a verdade hegemônica, algo muito parecido com todas as formas de imperialismo político do Império Romano (ou de antes) até aqui.

Abdicar dos pontos de vista e de se ter razão ou a última palavra sobre as coisas é um dos grandes ensinamentos do Buda, 2500 anos atrás. Nem sempre os próprios budistas têm seguido este conselho, mas ele se mostra muito útil no momento atual, em que cada um quer fazer valer sua opinião no grito, no choro e no mimimi, mas sem o mínimo componente de racionalidade, contemplação ou legitimidade experiencial. Foram-se os santos, os mestres, os gurus, e ficaram os santos do pau oco, os mestres abusadores e os gurus e pastores multimilionários que dizem que Deus quer mesmo é meter a mão no seu bolso! Esta espiritualidade arcaica DEVE estar com os seus dias contados, ou não teremos novos dias, apenas o “nada” dos neonazistas imiscuídos nos governos radicais da atualidade.

Sobre o autor

Paulo Stekel é instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.

Contatos: pstekel@gmail.com