quinta-feira, 27 de junho de 2019

Como aderi ao Dharma além do Budismo

Paulo Stekel


Um Dharma além da instituição

Este texto tem um caráter nitidamente autobiográfico, mas isso é só um detalhe. Seu principal objetivo é apresentar uma noção de Dharma além da institucionalizada pelo Budismo e outras tradições orientais que, na verdade, não possuem a tutela ou o direito inalienável sobre algo que faz parte da essência de todas as coisas.

Um dia, por volta de 2015, conversava com um mestre vajrayana sobre a visão de Dharma que havia acessado em minhas meditações. Disse-lhe que, em meu insight, Dharma estava muito além da instituição do Buddhadharma, e que alguém poderia acessá-lo sem participar da instituição formal que se criou após a morte de Siddhartha Gautama. Afinal, o Buda o fez assim! Buda não era budista! Ele praticou o Dharma – hoje chamaríamos simplesmente de “espiritualidade” - com as técnicas disponíveis em sua época, e chegou ao resultado final. Seu caminho percorrido foi discutido, experimentado, virou um sistema e um conjunto complexo posteriormente, que é o que hoje chamamos de “budismo”. Muitos continuaram praticando além e testando, e novas percepções surgiram, gerando outras versões do budismo. Por isso, deveríamos dizer, como muito bem o faz o decano do budismo brasileiro, Ricardo Mário Gonçalves, “budismos”. Ele concordou comigo.

Disse-lhe ainda que não me sentia à vontade tendo que recorrer a um simbolismo arcaico, linguagem antiga e um ambiente religioso e cultural em nada conectado à realidade moderna. Preferia ver o Dharma a partir da perspectiva atual, como fez o Buda em seu tempo. Ele ensinou o Dharma de um modo perfeitamente conectado ao seu tempo. Minha meditação, desta forma, traria mais resultado. Ele novamente concordou e disse que achava que essa era a percepção real, mas que ele mesmo não a poderia manifestar publicamente, pois como lama de uma instituição, ao concordar publicamente com minha posição, ficaria inabilitado para continuar dirigindo-a no Brasil. O que pensar? É a verdade, mas não pode ser anunciada! Que disparate! O Buda ensinou a coerência.

O equívoco da devoção extrema ao guru

Por coerência, me afastei oficialmente das linhagens a partir de 2016. Em 2017 fiz isso de modo oficial. Não significa que sou contra as linhagens instituídas. Pelo contrário, creio que são úteis e até necessárias para muitos indivíduos que precisam que alguém lhes digam minuciosamente qual o caminho que suas mentes devem seguir. Mas, há uma parcela de praticantes, e não sou o único, que percebe as coisas de outra forma. Eu, e meus companheiros de pensamento, buscamos uma prática do Dharma que seja mais viva, mais natural, menos institucionalizada, menos regulada, menos excesso de “guru yoga” do tipo “infalibilidade do Lama”. Para muitos praticantes budistas equivocados (ou mal-intencionados) o Dalai Lama é infalível como guru, os Lamas são infalíveis, pois assim ensina a tradição do Guru Yoga. Isso é um absurdo! Temos que separar o símbolo do real, o divino do humano, para que não percamos ainda mais a sanidade em meio a esse mar de egos inflados.

Minha visão do verdadeiro “Guru Yoga” é a direção da devoção à semente de Buda em nós, não a um mestre terreno. Os próprios ensinamentos se referem ao Guru Interno como sendo o verdadeiro guru, do qual o guru externo é como um facilitador. O mestre físico deve ser respeitado enquanto preceptor e alguém mais graduado, praticante mais antigo. Há, aí, um grande respeito. Mas, ir além disso, como se faz no guru yoga hinduísta e no vajrayana, não parece adequado à minha conformação. O excesso desta visão no Tibete, por exemplo, permitiu aberrações como o excesso de autoimportância do guru, os abusos cometidos por muitos mestres, atos violentos e uma deturpação da tradição de Tulkus (Nirmanakayas) instituídos, pessoas consideradas o renascimento de outros mestres e, assim, instituídas mestres também desde a tenra infância. É uma ideia estranha ao Budismo antigo, mas comum no sistema devocional indiano, e que se incorporou ao vajrayana no Tibete. Durante séculos esta instituição tulku serviu aos interesses políticos dos governantes eclesiásticos, e pouca conexão tem com um suposto renascimento de antigos mestres no corpo de crianças. É uma invenção que serviu muito bem para aumentar a devoção do povo aos mestres e, mais ainda, serviu como um modo de controle social por muito tempo. Não há como negar este fato. Mas, hoje em dia este tipo de crença não se sustenta mais e deveria ser deixada de lado. A instituição tulku mais polêmica é a dos renascimentos dos Dalai Lamas. O próprio atual Dalai Lama já sinalizou que a instituição talvez devesse ser abolida e ele mesmo não renascer mais tendo este status.

Ainda que minha opinião possa chocar aqueles praticantes mais devotados ao guru yoga e os caçadores de bênção de tulkus, não tenho como dizer que acredito nisso. O próprio Dalai Lama fica claramente desconfortável quando lhe perguntam sobre ser um tulku, uma emanação de Avalokiteshvara, o buda patrono do Tibete. Ele muda de assunto e diz ter só uma certeza: a de que é um simples monge. Não é humildade, é a realidade!

Já não bastasse a tradução errônea difundida pelos chineses de “buda vivo” dada aos tulkus, a continuação da instituição não contribui em nada para a causa tibetana, nem para um Dharma vivo no século XXI, nem para o entendimento da real proposta do Buda Shakyamuni. Ela deveria ser abolida. É uma crença meramente cultural.

Dissolvendo o status quo e as reservas de mercado do conhecimento

Devido a isso e à evidente decadência da qualidade dos mestres que têm ensinado dentro das instituições budistas, sendo apenas mantenedores do status quo e das reservas de mercado que os ensinamentos constituem, fenômeno que atinge em cheio em especial o budismo vajrayana, tomei a decisão de me afastar oficialmente dessas instituições cujos objetivos me parecem duvidosos.

Quando vi um dos meus mestres budistas brasileiros quebrando seus votos, buscando prostitutas na Tailândia em intervalos de retiros, batendo na mulher, manipulando a verdade para ter a guarda do filho e demonstrando falta de engajamento social por estar mais interessado em ser sustentado pela comunidade de praticantes (sangha), vi que a era escura se instalou de vez e não é mais possível confiar em instituições que estão morrendo um pouquinho mais a cada dia.

Seguindo um conselho do Buda, melhor é seguir só quando não se encontra “bons amigos espirituais”. Mas, na verdade, tenho encontrado bons amigos depois que tomei essa decisão. Amigos que passaram pelas mesmas coisas e se tornaram praticantes independentes do Dharma. Amigos que também desejam praticar e divulgar os ensinamentos a todos os interessados sem ficar à mercê de gurus duvidosos que só querem manter reservas de mercado.

Vivemos um momento em que o conhecimento deve ser espalhado. Não pode mais ficar escondido. O mundo mudou, e os métodos também devem mudar. O budismo sempre se adaptou ao momento, ao lugar e à cultura nesses 2500 anos de existência. Não há motivo para não fazê-lo agora.

E, o Dharma é a busca espiritual viva, não engessada em dogmas e limitações. Deve ser algo espontâneo, natural, benéfico, além da rigidez e da vassalagem exigida por muitos mestres de seus discípulos. Neste contexto têm surgido vários movimentos, como o neoadvaita, neodzogchen, nova espiritualidade, espiritualidade integral, neocabala e a ideia de um “budismo ocidental” destituído do culturalismo oriental que nada nos diz sobre nossa realidade.

Novas perspectivas

O nascimento do blog “Novo Dharma” segue nessa linha. Uma proposta abrangente incluindo todas as forças da nova espiritualidade que se distanciam do dogma das religiões, dos mestres fraudulentos, das reservas de mercado do conhecimento espiritual, do abuso dos buscadores, da desautorização do ser para simplesmente repousar em sua natureza primordial sem intermediários, sem iniciações e sem grandes somas de dinheiro envolvidas. Um dharma simples, mas eficaz. Esta é, também, a proposta do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa que passei a desenvolver em 2017.

O mau uso da espiritualidade deve ser denunciado. O bom uso, elogiado. O que não podemos é ficar mornos enquanto há tanto sofrimento, ilusório na perspectiva da mente primordial, mas sofrimento para nossas mentes relativas. Devemos espalhar, debater, praticar, vivenciar, permanecer na presença radiante da natureza verdadeira da mente, e assim, simplesmente sentar e apreciar a vida como ela se nos desenrola, como flui, e como passa…

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