Paulo Stekel
Um Dharma além
da instituição
Este texto tem um
caráter nitidamente autobiográfico, mas isso é só um detalhe. Seu principal objetivo é apresentar uma noção de Dharma além da
institucionalizada pelo Budismo e outras tradições orientais que,
na verdade, não possuem a tutela ou o direito inalienável sobre algo que faz parte da
essência de todas as coisas.
Um dia, por volta de
2015, conversava com um mestre vajrayana sobre a visão de Dharma que
havia acessado em minhas meditações. Disse-lhe que, em meu insight,
Dharma estava muito além da instituição do Buddhadharma, e
que alguém poderia acessá-lo sem participar da instituição formal
que se criou após a morte de Siddhartha Gautama. Afinal, o Buda o
fez assim! Buda não era budista! Ele praticou o Dharma – hoje
chamaríamos simplesmente de “espiritualidade” - com as técnicas
disponíveis em sua época, e chegou ao resultado final. Seu caminho
percorrido foi discutido, experimentado, virou um sistema e um
conjunto complexo posteriormente, que é o que hoje chamamos de
“budismo”. Muitos continuaram praticando além e testando, e
novas percepções surgiram, gerando outras versões do budismo. Por
isso, deveríamos dizer, como muito bem o faz o decano do budismo
brasileiro, Ricardo Mário Gonçalves, “budismos”. Ele concordou
comigo.
Disse-lhe ainda que
não me sentia à vontade tendo que recorrer a um simbolismo arcaico,
linguagem antiga e um ambiente religioso e cultural em nada conectado
à realidade moderna. Preferia ver o Dharma a partir da perspectiva
atual, como fez o Buda em seu tempo. Ele ensinou o Dharma de um modo
perfeitamente conectado ao seu tempo. Minha meditação, desta forma,
traria mais resultado. Ele novamente concordou e disse que achava que
essa era a percepção real, mas que ele mesmo não a poderia
manifestar publicamente, pois como lama de uma instituição, ao
concordar publicamente com minha posição, ficaria inabilitado para
continuar dirigindo-a no Brasil. O que pensar? É a verdade, mas não
pode ser anunciada! Que disparate! O Buda ensinou a coerência.
O equívoco da
devoção extrema ao guru
Por coerência, me
afastei oficialmente das linhagens a partir de 2016. Em 2017 fiz isso
de modo oficial. Não significa que sou contra as linhagens
instituídas. Pelo contrário, creio que são úteis e até
necessárias para muitos indivíduos que precisam que alguém lhes
digam minuciosamente qual o caminho que suas mentes devem seguir.
Mas, há uma parcela de praticantes, e não sou o único, que percebe
as coisas de outra forma. Eu, e meus companheiros de pensamento,
buscamos uma prática do Dharma que seja mais viva, mais natural,
menos institucionalizada, menos regulada, menos excesso de “guru
yoga” do tipo “infalibilidade do Lama”. Para muitos praticantes
budistas equivocados (ou mal-intencionados) o Dalai Lama é infalível
como guru, os Lamas são infalíveis, pois assim ensina a tradição
do Guru Yoga. Isso é um absurdo! Temos que separar o símbolo do
real, o divino do humano, para que não percamos ainda mais a
sanidade em meio a esse mar de egos inflados.
Minha visão do
verdadeiro “Guru Yoga” é a direção da devoção à semente de
Buda em nós, não a um mestre terreno. Os próprios ensinamentos se
referem ao Guru Interno como sendo o verdadeiro guru, do qual o guru
externo é como um facilitador. O mestre físico deve ser respeitado
enquanto preceptor e alguém mais graduado, praticante mais antigo.
Há, aí, um grande respeito. Mas, ir além disso, como se faz no
guru yoga hinduísta e no vajrayana, não parece adequado à minha
conformação. O excesso desta visão no Tibete, por exemplo,
permitiu aberrações como o excesso de autoimportância do guru, os
abusos cometidos por muitos mestres, atos violentos e uma deturpação
da tradição de Tulkus (Nirmanakayas) instituídos,
pessoas consideradas o renascimento de outros mestres e, assim,
instituídas mestres também desde a tenra infância. É uma ideia
estranha ao Budismo antigo, mas comum no sistema devocional indiano,
e que se incorporou ao vajrayana no Tibete. Durante séculos esta
instituição tulku serviu aos interesses
políticos dos governantes eclesiásticos, e pouca conexão tem com
um suposto renascimento de antigos mestres no corpo de crianças. É
uma invenção que serviu muito bem para aumentar a devoção do povo
aos mestres e, mais ainda, serviu como um modo de controle social por
muito tempo. Não há como negar este fato. Mas, hoje em dia este
tipo de crença não se sustenta mais e deveria ser deixada de lado.
A instituição tulku mais polêmica é a dos
renascimentos dos Dalai Lamas. O próprio atual Dalai Lama já
sinalizou que a instituição talvez devesse ser abolida e ele mesmo
não renascer mais tendo este status.
Ainda que minha
opinião possa chocar aqueles praticantes mais devotados ao guru yoga
e os caçadores de bênção de tulkus,
não tenho como dizer que acredito nisso. O próprio Dalai Lama fica
claramente desconfortável quando lhe perguntam sobre ser um tulku,
uma emanação de Avalokiteshvara, o buda patrono do
Tibete. Ele muda de assunto e diz ter só uma certeza: a de que é um
simples monge. Não é humildade, é a realidade!
Já não bastasse a
tradução errônea difundida pelos chineses de “buda vivo” dada
aos tulkus, a continuação da
instituição não contribui em nada para a causa tibetana, nem para
um Dharma vivo no século XXI, nem para o entendimento da real
proposta do Buda Shakyamuni. Ela deveria ser abolida. É uma crença
meramente cultural.
Dissolvendo o
status quo e as reservas de mercado do conhecimento
Devido a isso e à
evidente decadência da qualidade dos mestres que têm ensinado
dentro das instituições budistas, sendo apenas mantenedores do
status quo e das reservas de mercado que os ensinamentos
constituem, fenômeno que atinge em cheio em especial o budismo
vajrayana, tomei a decisão de me afastar oficialmente dessas
instituições cujos objetivos me parecem duvidosos.
Quando vi um dos
meus mestres budistas brasileiros quebrando seus votos, buscando
prostitutas na Tailândia em intervalos de retiros, batendo na
mulher, manipulando a verdade para ter a guarda do filho e
demonstrando falta de engajamento social por estar mais interessado
em ser sustentado pela comunidade de praticantes (sangha), vi que a
era escura se instalou de vez e não é mais possível confiar em
instituições que estão morrendo um pouquinho mais a cada dia.
Seguindo um conselho
do Buda, melhor é seguir só quando não se encontra “bons amigos
espirituais”. Mas, na verdade, tenho encontrado bons amigos depois
que tomei essa decisão. Amigos que passaram pelas mesmas coisas e se
tornaram praticantes independentes do Dharma. Amigos que também
desejam praticar e divulgar os ensinamentos a todos os interessados
sem ficar à mercê de gurus duvidosos que só querem manter reservas
de mercado.
Vivemos um momento
em que o conhecimento deve ser espalhado. Não pode mais ficar
escondido. O mundo mudou, e os métodos também devem mudar. O
budismo sempre se adaptou ao momento, ao lugar e à cultura nesses
2500 anos de existência. Não há motivo para não fazê-lo agora.
E, o Dharma é a
busca espiritual viva, não engessada em dogmas e limitações. Deve
ser algo espontâneo, natural, benéfico, além da rigidez e da
vassalagem exigida por muitos mestres de seus discípulos. Neste
contexto têm surgido vários movimentos, como o neoadvaita,
neodzogchen, nova espiritualidade, espiritualidade integral,
neocabala e a ideia de um “budismo ocidental” destituído do
culturalismo oriental que nada nos diz sobre nossa realidade.
Novas
perspectivas
O nascimento do blog
“Novo Dharma” segue nessa linha. Uma proposta abrangente
incluindo todas as forças da nova espiritualidade que se distanciam
do dogma das religiões, dos mestres fraudulentos, das reservas de
mercado do conhecimento espiritual, do abuso dos buscadores, da
desautorização do ser para simplesmente repousar em sua natureza
primordial sem intermediários, sem iniciações e sem grandes somas
de dinheiro envolvidas. Um dharma simples, mas eficaz. Esta é,
também, a proposta do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre
Não-Religiosa que passei a desenvolver em 2017.
O mau uso da
espiritualidade deve ser denunciado. O bom uso, elogiado. O que não
podemos é ficar mornos enquanto há tanto sofrimento, ilusório na
perspectiva da mente primordial, mas sofrimento para nossas mentes
relativas. Devemos espalhar, debater, praticar, vivenciar, permanecer
na presença radiante da natureza verdadeira da mente, e assim,
simplesmente sentar e apreciar a vida como ela se nos desenrola, como
flui, e como passa…
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