Por Paulo Stekel
Em 25 de agosto de
2020 completei 50 anos. Um dia antes, pela manhã, recebi um
"presente", se é que posso dizer nestes termos. Mas, acho
que sim.
Depois de meses
avaliando, recebi de um competente psiquiatra de SC, o laudo de TEA
1, um tipo leve de autismo, antigamente conhecido por Síndrome de
Asperger. Já tinha certeza disso, mas a avaliação por um
profissional especializado, um dos poucos especializados, em
identificar aspies (como muitos preferem ser chamados e se referir a
si mesmos), me tirou qualquer dúvida que pudesse continuar a me
corroer.
Foi libertador? Sim.
Muito libertador. Afinal, eu fui um Aspie não identificado até os
50 anos. Um caso raro em que não houve atraso na fala. Na verdade,
comecei a falar aos seis meses. Mas, muitos aspies têm problemas de
fala na infância. Atrasos são comuns. Mas, eu aprendi a ler
praticamente antes de ingressar na primeira série (entrei direto no
terceiro bimestre!) e hoje leio em pelo menos 12 línguas, fora
outras habilidades. Mas, esta é a parte boa, frequentemente
"romantizada". Até porque famosos como Anthony Hopkins
(diagnosticado aos 70 anos) e Bill Gates possuem laudos Asperger. Com
frequência os “românticos do autismo” nos confundem com
índigos, um conceito nova era que até pode fazer sentido em alguns
contextos e até incluir os Aspies, mas que não pode ser usado como
um tampão para as dificuldades de qualquer autista, seja grave,
moderado ou leve. Vi muitos psicólogos cometendo esse erro mesmo
antes de imaginar a possibilidade de meu autismo leve, o Asperger.
Alguns até escreveram livros sobre índigos e perpetuam este erro
que pode prejudicar, e muito, o desenvolvimento e a inserção
autista na sociedade.
A outra parte, nada
romântica, tem a ver com as dificuldades de interação e de
percepção de emoções, o que, em algum modo, sempre existiu em
minha vida. Foi melhorando com o tempo e hoje está num nível
aceitável. Consegui morar sozinho, trabalhar, viajar, casar, separar
(rsrs), e tudo isso sem ter sido identificado como autista, sem nunca
ter passado por um psicólogo ou psicopedagogo, sem ter feito terapia
ocupacional (TO) e sem ter maiores prejuízos.
Só comecei a tecer
a hipótese Asperger há menos de um ano, após o término do meu
último relacionamento. Eu não consegui perceber algumas coisas e
isso me deixou indignado. A hipótese Asperger era uma das
explicações. Fui mais a fundo e, quando comecei a responder os
questionários do psiquiatra, minha vida começou a se descortinar
diante de mim, explicando muito do que vivenciei. O Asperger se
mostrava com toda a sua clareza.
Quando o laudo saiu,
um dia antes de eu completar 50 anos, foi estranho: libertador e
amedrontador ao mesmo tempo. Mas, como sempre superei muita coisa na
vida, essa era apenas mais uma situação a vencer. Porque, após o
diagnóstico, vem a auto-avaliação, quando toda a vida pregressa
começa a fazer sentido e se explicar automaticamente a partir da
condição Asperger. Isso ainda está em processo, inclusive, e deve
levar um bom tempo para se processar.
Tenho, realmente,
alguns marcadores interessantes: gay e aspie, sem atraso de fala, não
diagnosticado até os 50 anos e que conseguiu ter uma vida “normal”
(dentro do que a sociedade padrão “normatizou” como o
aceitável), a ponto de se sustentar e morar sozinho sem maiores
problemas.
Eu fui uma criança
bem introvertida. Fiz só metade da primeira série e terminei o ano
sendo o único aluno da sala a ler perfeitamente (minha professora me
exibiu para a diretoria no fim do ano, rsrs). Aos 9 anos, comecei a
ler livros de adultos. Nunca li livros infantis. Também não me dava
(e ainda não me dou) bem com romances. Preferia livros técnicos,
adultos e, isso sim, gibis de aventura e ficção científica. Tudo
isso é comum em pessoas aspies.
Na época de escola
havia dois momentos que me eram particularmente angustiantes. Um, era
a hora do recreio, pois ficava isolado e raramente alguém brincava
comigo. Eu também não me interessava em brincadeiras que
considerava bobas. Ficava sentado, observando as outras crianças e
tentando entendê-las (outra coisa comum em aspies). O outro, era a
aula de educação física. Era péssimo em futebol, do qual não
gostava. Vôlei até gostava, mas a bola sempre subia torta e parava
fora da quadra. O único gol que fiz no futebol da escola foi porque
a bola bateu em mim e entrou no gol. Mas, os colegas comemoraram
mesmo assim, o que me deixou feliz naquele momento, mas com uma
sensação de fraude. Rsrs.
Na oitava série,
pela primeira vez sofri bullying. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Na
época não sabia, mas agora avalio que foi uma mescla de homofobia
com preconceito por meu jeito quieto, estudioso (e Aspie!) e sempre
protegido pelas colegas mais velhas, que enfrentavam os brucutus para
me defender. As mulheres sempre foram minhas melhores amigas.
No (antigo) segundo
grau, eu me fechei mais um pouco e interagi menos que no primeiro
grau e, de alguma forma, invisível, sofri menos preconceito. Com 17
anos, comecei a trabalhar em rádio como técnico de som, algo de que
gostava, pois envolvia música, algo que adoro desde sempre (meu pai
é músico). Era considerado muito competente, mas bastante fechado e
sem vida pessoal pelos colegas. Não tardou a causar inveja de
alguns, bullying de outros e um pouco de agressividade de minha
parte, pois liguei o sistema de sobrevivência.
Então, em 1991, com
20 anos, saí daquele trabalho e, desde então, decidi trabalhar de
forma independente e só, exclusivamente, com o que gosto de fazer e,
necessariamente, sem um patrão. Uma solução aspie. Rsrs. Trabalhar
com coisas envolvendo espiritualidade, terapias complementares,
meditação, aulas de línguas sagradas (estudei várias), astrologia
e botânica oculta (a botânica e a zoologia foram meus hiperfocos
durante muitos anos, junto com a astronomia e as línguas).
Entre os 22 e os 25
anos foi o período da minha primeira saída do armário: o
reconhecimento de minha orientação sexual não heteronormativa. Foi
a primeira libertação. Complicada, mas aconteceu. No meio disso,
ainda fui casado por um ano e meio com uma mulher, que continuou
minha amiga por muitos anos depois que nos separamos. Chegamos à
conclusão juntos de que era melhor nos separarmos, pois éramos
muito diferentes e ela sentia que meu caminho deveria ser outro. Foi
tudo tranquilo, desde então.
Mas, ao longo de
minha vida, mesmo como gay assumido, sentia que faltava alguma coisa
na minha autocompreensão, mas não sabia o que era. Cheguei a essa
conclusão porque meus parceiros de relacionamento diziam coisas
parecidas sobre meus hiperfocos (coisa de aspie!), minha necessidade
de momentos de isolamento, problemas com rotina, falta de ciúmes
(sim!) e uma avaliação muito racional das coisas, entre outras
características. Sim, não deve ser fácil conviver com uma pessoa
que lê em dezenas de línguas, fala outras tantas, pesquisa o tempo
todo, dorme tarde, fala que nem uma gralha sobre o que pesquisa e
consegue explicar os detalhes técnicos de quase tudo. É irritante
mesmo, não? Só é bom num daqueles “maridos de aluguel” que se
contrata para consertar canos, chuveiros e janelas. Aliás, também
fiz muito isso na casa das vizinhas, mas só para ajudar mesmo. Rsrs.
Após o término de
minha última relação, em janeiro deste ano, aumentou minha
desconfiança de que tinha algo mais a ser descoberto a meu respeito.
Coincidência ou não, me interessei em assistir algumas séries
envolvendo o tema autismo. Algumas coisas fizeram sentido para mim.
Outras, não. A série Atypical me chamou um pouco a atenção.
Mas, num determinado dia, assisti a um vídeo sugerido pelo Youtube
e, ouvindo o relato de um Aspie diagnosticado quando já adulto, vi
que tinha muito a ver comigo. Fiz um daqueles testes de Internet e
deu alta probabilidade de ser Asperger. Mas, um teste positivo não
quer dizer muita coisa. Então, pesquisei outros, todos em Inglês, e
deu positivo em DEZ testes! Então, caiu a ficha…
Tomei a decisão de
buscar um diagnóstico, e minha amiga Janice Michels, de Criciúma –
SC, uma competente psicopedagoga habilitada a trabalhar com autistas,
me aconselhou e fez a ponte que acabou me levando ao médico
psiquiatra de Florianópolis que fechou meu diagnóstico: CID-10
F84.5 – Síndrome de Asperger, uma condição que aos poucos está
mudando de nome, já que o CID-11, que já é usado e passará a
valer a partir de 2022, considera a síndrome conforme o DSM-5, onde
o Asperger é classificado como TEA – Transtorno de Espectro
Autista, mas na forma leve. O segundo armário da minha vida, o do
autismo adulto, havia sido aberto...
Diferentemente do
autismo clássico, de que todos já ouviram falar, o autismo asperger
ou TEA leve ou nível 1, não envolve perda cognitiva, mas alta
funcionalidade. Pode, com frequência, pelo contrário, realçar as
funções cognitivas, mas ainda há dificuldades de comunicação e
interação social, e pode incluir dificuldades na parte motora fina
(tenho algo neste sentido). É tão difícil perceber o autismo leve,
Asperger, em adultos, porque muitos aprenderam instintivamente a
conviver com pessoas neurotípicas (quem não tem autismo), a
controlar sua forma de ser (uma autoflagelação, sim!) e a esconder
sua condição neurodiversa (quem tem TEA).
Interessante que
sempre me dei bem com autistas, sempre gostei deles, e tive dois
amigos Aspergers com quem convivi. Um deles, já falecido, foi muito
importante na minha vida, e tínhamos muitas coisas em comum,
especialmente os hiperfocos, os assuntos que autistas pesquisam até
a exaustão até se tornarem especialistas.
Uma pausa aqui:
Neurodiversidade é uma ideia que afirma que o desenvolvimento
neurológico atípico ou neurodivergente para os padrões
convencionais de “normalidade” é um acontecimento biológico
esperado. Essa diversidade neurológica humana deveria, então, ser
vista como constitutiva da espécie e levada em conta na sociedade. O
termo foi criado pela socióloga Judy Singer no final dos anos 90, e
tornado conhecido em seu livro “Neurodiversity: The Birth of an
Idea” (Neurodiversidade: o nascimento de uma ideia).
Socialmente, a ideia se tornou ainda mais popular a partir de 2015,
com o lançamento do livro “NeuroTribes: The Legacy of Autism
and the Future of Neurodiversity” (NeuroTribos: o legado do
autismo e o futuro da neurodiversidade), de Steve Silberman.
A noção de
neurodiversidade considera o autismo, o TDAH, a dislexia e outras
condições neurológicas como variações humanas naturais,
possíveis de ocorrer, e não como doenças ou distúrbios que devam
ser “curados”. As diferenças neurológicas seriam, nesta visão,
nada mais que autênticas formas de diversidade humana, identidade,
autoexpressão e de ser no mundo. Da mesma forma que a diversidade
sexual, a neurodiversidade é apenas uma possibilidade na complexa
natureza humana. Eu possuo as duas diversidades, por ser gay e Aspie.
Voltando, ao ler
estudos sobre o tema, vi que os manuais psiquiátricos consideram
duas terapias alternativas adequadas para o desenvolvimento dos
Aspies: terapia musical e yoga (que inclui meditação). Como filho
de músico, cantei, compus e produzi música por muitos anos na minha
vida. Pratico yoga desde os 20 anos e meditação budista desde o 25.
“Coincidentemente”, foi quando comecei a sair do isolamento, tive
meu primeiro relacionamento e diminuí a fobia de gente. Parece que a
música e a meditação, mesmo sem apoio profissional especializado,
fizeram o trabalho que poderia ter sido feito por terapia ocupacional
e terapia cognitivo-comportamental. Há estudos sobre autismo e
meditação, poucos ainda, mas a relação parece promissora. Sou
instrutor de meditação e digo a vocês que ela ajuda a organizar a
minha mente e diminuir muito do que incomoda os Aspies. Agora entendo
isso.
Como disse minha
amiga Janice, a música e a meditação fizeram na minha vida o
trabalho que, em outros casos, seria feito por terapia ocupacional e
terapia cognitivo-comportamental. Afinal, a música acalma,
reestrutura a mente e devolve a harmonia aos ritmos cerebrais,
enquanto a meditação ajuda no foco, em um primeiro momento, e na
autoanálise em sua forma mais avançada, permitindo uma melhor
observação de hábitos, vícios e repetições. Ambas me permitiram
sair da casca, trabalhar, casar, viver sozinho, aprender a cozinhar e
até a fazer algumas aventuras quase impensadas para um autista, como
escalada e montanhismo. Ainda quero contar tudo isso num livro.
Enfim, este é meu
primeiro texto público após o laudo, e espero ter sido claro na
descrição do meu diagnóstico. Quem tiver dúvidas, pode pesquisar
o assunto pela Internet ou me solicitar mais informações. Talvez
existam muitos outros Aspies por aí, ainda não diagnosticados e que
não entendem o que lhes acontece e o motivo de acontecer. O objetivo
principal do meu texto é que ele chegue exatamente a estas pessoas
ou a familiares delas, e que possa ser a ponte para um
autorreconhecimento e, num segundo momento, para a busca de um
diagnóstico profissional.
Sobre o autor
Paulo Stekel,
Asperger diagnosticado aos 50 anos, é aromaterapeuta, estudante de
aromatologia, instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do
Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador
de Religiões e Espiritualidades, membro do NEDEC²- Núcleo de
Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC –
Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística,
com ênfase em Paleolinguística. É escritor polímata, jornalista,
tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009.
É um pesquisador não-acadêmico, especialista na interpretação
dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria
(RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Publicou diversas
obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica
na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à
linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano -
estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses
& Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os
anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de
Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008);
“Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e
II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra”
(independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de
formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica
(França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês
no website do Museu de Glozel
(http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm)
desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação
livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa
de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de
decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista
Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em
Inglês e Bósnio:
http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.