terça-feira, 24 de setembro de 2019

A realidade da aparência

Por David Loy (Este artigo contém a primeira de sete partes que compõem o Capítulo 2 do livro Nonduality, intitulado “Percepção Não-dual”, que está sendo traduzido por Paulo Stekel)


A realidade sem aparências não seria nada, pois certamente não há nada fora das aparências.
F. H. Bradley, Appearances and Reality

De acordo com muitas filosofias "iluminativas", orientais e ocidentais, as percepções sensoriais são ilusórias e devem, de alguma forma, ser transcendidas. Isto é particularmente verdadeiro para as filosofias asiáticas não-dualistas. Para Shankara, o mundo como percebido, embora não seja ilusório de um ponto de vista fenomenal, deve finalmente ser subestimado e percebido como maya de sonho, pois apenas Brahman é realmente real. No Sermão do Fogo, o Buda afirma que seus discípulos deveriam ter aversão aos órgãos dos sentidos, objetos dos sentidos, contato dos sentidos e consciência dos sentidos, caso em que a paixão desaparecerá e ocorrerá a libertação. Tais afirmações parecem recomendar a negação dos fenômenos dos sentidos, a fim de experimentar uma Realidade separada deles. Essa interpretação é consistente com uma predisposição que herdamos da tradição metafísica ocidental, de Parmênides através de Kant, de se distinguir entre o mundo de fenômenos em constante mudança que os sentidos nos apresentam e uma Realidade imutável "por trás" deles; o primeiro é geralmente desvalorizado em favor do segundo, cuja natureza é tarefa da filosofia determinar. As Ideias (ou Formas) de Platão devem ser experimentadas diretamente apenas pelo intelecto, purificadas de qualquer relação com os sentidos, estabelecendo assim uma dicotomia que teve consequências fatais para a filosofia e a cultura ocidentais. Tem sido muito fatídico para a tradição oriental essa dicotomia não ter ocorrido, pois como veremos, os sistemas não-dualistas encaram a mente conceitual como um "sexto sentido" que precisa ser "transcendido" pelo menos tanto quanto o outros cinco - talvez mais.

O problema com essa interpretação usual é que muitas passagens intrigantes, geralmente atribuíveis às mesmas fontes, são incompatíveis com uma rejeição tão geral da percepção sensorial. No Vivekachudamani, Shankara faz uma afirmação que parece inconsistente com suas outras visões, mas que talvez seja apenas inconsistente com a visão alheia sobre ele: "O universo é uma série ininterrupta de percepções de Brahman; portanto, em todos os aspectos nada mais é do que Brahman." Em um dos sutras da Bola de Mel, o Buda ensina ao monge Bahiya que o fim do sofrimento - ou seja, o nirvana - deve ser encontrado no treinamento de si mesmo para que "no visto haja apenas o visto; no ouvido, apenas o ouvido; em cheirar, tocar, provar, apenas cheirar, tocar, provar; nos reconhecidos, apenas os reconhecidos. " Ambas as passagens sugerem que a percepção dos sentidos em si não é o problema: antes, a realidade está nos encarando o tempo todo, mas de alguma forma a interpretamos mal.

Como devemos reconciliar essas afirmações - de maneira alguma incomuns, como veremos - com as críticas dos sentidos? Argumento que o que deve ser transcendido não é a percepção dos sentidos, mas um certo tipo de percepção dos sentidos que, porque geralmente não estamos familiarizados com nenhum tipo alternativo, tendemos a nos identificar com a percepção dos sentidos em geral. Como o Buda recomenda e Shankara sugere, outro tipo de percepção sensorial pode ser desenvolvido que revele a Realidade - ou, para ser mais exato, que é a Realidade. (Isso é complicado pelo fato de que essa outra maneira de perceber pode não ser chamada de percepção dos sentidos, pois pode-se argumentar que o ato de percepção é relativo ao observador e ao objeto dos sentidos, ambos dos quais faltam nessa outra percepção sensorial. Como resultado, o que poderia ser chamado de "percepção única" [ou “percepção-apenas”] resulta no equivalente a nenhuma percepção.) A diferença entre esses dois tipos de percepção sensorial é a diferença entre percepção dualista e não-dualista. A primeira, a percepção que normalmente experimentamos (ou interpretamos), é a percepção sensorial na qual existe uma distinção entre o percebedor e o objeto percebido. O último é não-dual porque não existe tal distinção; portanto, às vezes tem sido descrito negando-se (como o budismo) que exista um sujeito percebendo e às vezes negando-se (como o Vedanta) que exista um mundo objetivo externo que é percebido. Nessa percepção, não há mais distinções entre interno (mente) e externo (mundo), ou entre consciência e seu objeto.

(…) A implicação dessa visão é que o senso comum, o mundo aparentemente objetivo que costumamos dar como garantido - que é entendido como composto de objetos materiais discretos que causam interação no espaço e no tempo - é uma ficção que a mente cria sobrepondo suas construções de pensamento sobre as percepções. Tal abordagem é familiar à filosofia ocidental moderna, pois tem alguma afinidade com a posição básica da metafísica de Kant. Mas existem duas diferenças fundamentais entre essa não-dualidade e a metafísica kantiana. Primeiro, se essa construção do pensamento se deve completamente à aquisição da linguagem e a outras socializações, ou em parte a faculdades inatas da mente, a alegação dos sistemas asiáticos não-dualistas é que esse processo pode ser desfeito - literalmente desconstruído ou "des-automatizado" -, é por isso que a atitude básica deles é tanto soteriológica quanto filosófica. Essa desconstrução é possível por causa da segunda diferença. Um dos problemas com a distinção de Kant entre númenos (coisas-em-si) e fenômenos (coisas como as vivenciamos) é que, embora afirmando que a causalidade é uma categoria aplicável apenas às aparências dos fenômenos, ele também deduziu que as coisas-em-si devem ser as causas das aparências fenomenais. Kant também não pode escapar facilmente dessa inconsistência, pois, sem essa visão, não há razão para postular a existência das coisas em si mesmas, uma vez que ele acreditava que elas não podem, em princípio, ser experimentadas diretamente. O não-dualista não está sujeito a essa crítica, pois as coisas em si mesmas - o que eu chamo de percepções não-duais (ou perceptos não-duais, cfe. or. nondual percepts), no caso da percepção (or. perception) - são experimentadas imediatamente após a cessação da construção do pensamento. Tal visão evita a postulação de uma Realidade "por trás" da Aparência. Pelo contrário, a Realidade é a própria Aparência, embora isso, naturalmente, possa não ser a aparência como normalmente a entendemos, que é a aparência de algo. A explicação não-dualista deixa a visão comum de cabeça para baixo: é o nosso entendimento normal, comum - em que distinguimos entre objetos físicos e sua aparência para nós - que é o culpado (como Berkeley e Nietzsche perceberam) de postular metafisicamente uma realidade "por trás" da aparência. Isso foi tão óbvio para Berkeley que ele ficou surpreso quando outros não aceitaram sua crítica da matéria, aquelas coisas misteriosas que nunca experimentamos. Como Vasubandhu, muito antes, ele estava negando não as qualidades sensíveis, como a impermeabilidade, mas o substrato auto-existente ao qual elas supostamente aderem. Dessa forma, o não-dualista nos apresenta a possibilidade de realmente se retornar às coisas em si mesmas, às percepções (or. percepts) como elas são, antes de serem pensamentos construídos no mundo dualista de um sujeito que confronta um mundo materializado de objetos discretos.

Logo depois de Berkeley, viveu um tipógrafo e poeta inglês, para quem isso não era apenas filosofia, mas a própria vida.

Toda a criação será consumida e parecerá infinita e santa, enquanto agora parece finita e corrompida.
Isso acontecerá com a melhoria do prazer sensual.
Mas primeiro a noção de que o homem tem um corpo distinto de sua alma deve ser eliminada...
Se as portas da percepção fossem limpas, tudo pareceria ao homem como é, infinito. Pois o homem se fechou, até ver todas as coisas através de fendas estreitas de sua caverna. (William Blake)

Não foi antes de Kant que a filosofia ocidental se tornou verdadeiramente consciente do papel da mente na percepção sensorial: como a mente não apenas recebe, mas interpreta e sintetiza percepções no mundo fenomenal que experimentamos. Essa percepção que envolve a concepção é um lugar-comum da filosofia contemporânea, embora a atenção tenha mudado das categorias aristotélicas de Kant para a linguagem como o meio pelo qual essa organização ocorre. Mas a filosofia indiana está ciente disso desde pelo menos a época do Buda. Veremos que o budismo páli enfatiza a necessidade de se distinguir a "percepção pura" de suas sobreposições conceituais e emocionais. Uma afirmação mais explícita de que uma percepção tão nua é não-dual é encontrada no budismo mahayana: faz parte da afirmação Prajñaparamita de que a percepção, como todo o resto, é Shunya (vazia); está implícito na crítica Madhyamika de todas as dualidades, e é mais claro na afirmação Yogachara, de que sujeito e objeto não são distintos. A mesma afirmação não-dual será encontrada no Advaita, com uma diferença sutil, mas significativa. Assim como o Vedanta faz uma distinção acentuada entre Brahman e o mundo fenomenal, também distingue entre nossa percepção dualista usual e a experiência não-dual de Brahman, que ela não chama de percepção. Precisamos considerar o quão importante é esse desacordo com o Budismo, se aponta para uma diferença na experiência ou apenas para uma descrição da mesma experiência não-dual.

(…) Uma das principais maneiras pelas quais a filosofia indiana reconhece o papel da concepção na percepção é fazendo uma distinção entre a percepção savikalpa e nirvikalpa. Nossa percepção comum é sa-vikalpa (com construção do pensamento), mas existe a possibilidade da percepção nir-vikalpa, que é "sem a construção do pensamento", porque a sensação nua se distingue de todo pensamento sobre ela. A base de ambos os termos sânscritos é vikalpa, um composto do prefixo vi- (discriminação ou bifurcação) e a raiz kalpanâ (construir mentalmente). Essa distinção é encontrada na maioria dos sistemas indianos importantes, sendo o Jainismo e as escolas monoteístas do Vedanta as principais exceções. É claro que há muita discordância sobre a psicologia e ontologia da percepção, mas, com exceção do Advaita Vedanta (examinado posteriormente), concorda-se que o nirvikalpa e o savikalpa não são tipos de percepção completamente diferentes, mas estágios iniciais e posteriores de um processo complexo. Por exemplo, o sistema pluralista Nyaya, desenvolvido por Gautama, definiu nirvikalpa como "não associado a um nome" (avyapadeshya) e savikalpa como "bem definido" (vyavasayatmaka). Por sua associação com a linguagem, toda percepção se torna "determinada", mas isso é necessariamente precedido por um estágio anterior, quando não associado, uma "sensação nua". "A percepção Nirvikalpa é a apreensão imediata, a consciência pura, a experiência sensorial direta, indiferenciada e não-relacional, livre de assimilação, discriminação, análise e síntese". Podemos sentir essa sensação nua, mas assim que tentemos conhecê-la, essa "experiência bruta não verbalizada" (William James) torna-se associada à concepção do pensamento e, portanto, determinada (savikalpa).

Este resumo da posição dualística do Nyaya levanta duas questões importantes para o não-dualista. Primeiro, qual é o papel da linguagem nessa distinção entre a percepção nirvikalpa e savikalpa? Hipostatizamos uma percepção em um objeto, dando-lhe um nome, "identificando-o" como membro de uma determinada classe de objetos? E, um senso de eu surge da mesma maneira - os conceitos de eu e meu são usados para nos objetificar? Segundo, podemos ver prontamente que essa distinção indeterminada/determinada não é apenas epistemologicamente interessante, mas também obviamente tem implicações éticas, entre outras. Por exemplo, existe uma relação entre a percepção e o problema do desejo. Devido às tendências mentais do passado, a mente é mais propensa a se intrometer em algumas percepções do que em outras e, assim, ativar certas predisposições. Isso sugere que uma resolução permanente do problema do desejo pode estar relacionada ao entendimento da percepção nirvikalpa e ao processo pelo qual ela se torna savikalpa.

Aqui também parece haver um paralelo importante com o Yoga, que é um dos seis sistemas indianos ortodoxos que mais se preocupa em descrever o caminho da libertação. O Yoga Sutra de Patañjali discute os vários estágios do samadhi (meditação yogue) em grande detalhe, e pode-se argumentar que seus quatro estágios preliminares do samprajñata samadhi realmente "desfazem" a percepção savikalpa, a fim de retornar à percepção nirvikalpa. Isso sugere que, apesar da metafísica abertamente dualista do Sankhya adotada por Patañjali, o asamprajñata samadhi mais profundo pode realmente ser não-dual, no sentido de que o meditador não está mais consciente de qualquer distinção entre sua própria consciência e o objeto da meditação.

Sobre o autor


David Robert Loy é professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia, Existencialismo e Budismo" [Lack and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy, Existentialism, and Buddhism] e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada" [Nonduality: A Study in Comparative Philosophy], além de vários artigos. (www.davidloy.org)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Shechinah, o Divino Feminino

Por Jay Michaelson (tradução do artigo publicado no site Learn Kabbalah – https://learnkabbalah.com, feita por Paulo Stekel, sob autorização expressa do autor)


Malchut

Um dos ensinamentos mais profundos da Cabal
a é também um dos mais simples: o mundo não é o que parece. Como já exploramos, aquilo que experimentamos como mundo é realmente um véu para a Unidade Infinita, a única coisa que realmente é. Refratada pelas várias lentes das sefirot, essa "luz" é a verdadeira estrutura do que está acontecendo agora.

Mas o que parece estar acontecendo agora? Um computador, uma mesa, uma pessoa lendo -
são ilusões, mayas nas palavras de uma outra tradição religiosa?

No entendimento da Cabala, o mundo manifesto também é Divino, mas
está - usando a linguagem mítica da Cabala teosófica - no exílio; em um estado de aparente separação; em necessidade de unidade.

Existe um ensinamento sábio de que, embora a mente saiba que tudo é um, o coração ainda experimenta dois. Você e eu; aqui e al
i; agora e mais tarde - ou antes. E assim o coração experimenta um desejo que às vezes é doce, muitas vezes santo e outras vezes amargo e tingido de dor.

Esse anseio também faz parte da nossa realidade. Nossa experiência de separação faz parte da nossa realidade. E o que está presente não é mera ilusão: é a Presença do Divino, a
shechinah, a décima sefirah, também conhecida como malchut, soberania.

Malchut completa a cadeia d
as sefirot. Se imaginarmos que as três primeiras parecem ser uma ideia que surge na mente, as três seguintes como agitações no coração à medida que pesam e avaliam, e as três últimas sendo as qualidades de ação que a tornam realidade, então Malchut é seu ser real; sua manifestação. Yesod reuniu todas as energias da criação - e então ela cria. Malchut é o resultado.

Em termos humanos, seu aspecto
malchut corresponde aos frutos de seu trabalho: o que realmente acontece no mundo, depois que você termina de querer, decidir e criar. Na ética judaica, diferentemente de outros sistemas, malchut é a parte mais importante; ações, não intenções, definem caráter moral.

Em termos Divinos, malchut é o mundo que experimentamos, que é preenchido com a Shechinah, a presença Divina. Malchut é aquele aspecto do Divino que é totalmente imanente, absolutamente aqui e agora, mais perto de você do que o seu conceito de "você".

Consequentemente,
malchut é também aquele aspecto de Deus que - como expresso poeticamente, e de maneiras que horrorizariam alguns filósofos racionalistas - experimenta o que experimentamos. Quando experimentamos alegria, malchut experimenta alegria; quando experimentamos tristeza, malchut experimenta tristeza. Mais radicalmente, quando as pessoas são oprimidas, escravizadas ou mesmo exterminadas - essa também é a experiência de malchut.

O aspecto feminino de Deus


Malchut não é meramente uma qualidade abstrata na Cabala. Também é Shechinah, Presença, o rosto Divino revelado - e o Divino feminino. É Shechinah quem nunca nos abandona, o Divino Feminino - em outros sistemas entendidos como a Deusa - que está sempre conosco e que, como nós às vezes, é exilado de seu amante divino, o Santo. Sefiroticamente, o nome divino "Santo, Bendito seja Ele" refere-se a Tiferet, como expresso por Yesod - o princípio masculino ativo, o "deus do céu" na teologia primitiva. Eroticamente, o grande movimento do universo é a reunificação do princípio masculino e o feminino - yichud kudsha brich hu v'schechintei.

Mais tarde, exploraremos esses temas com mais profundidade, mas você já pode ver como às vezes pode parecer uma teologia cabalística escandalosa. Quão diferente é essa dinâmica do Santo e
Shechinah do antigo casamento de deus e deusa, precisamente as práticas sobre as quais nossos ancestrais estavam tão preocupados? E quanto mais você sabe, mais "preocupante" a situação se torna. Os místicos são exortados a experimentar essa união sexualmente - com suas esposas, na noite de sexta-feira em particular. Poemas e orações são compostas pela própria Shechinah - por exemplo, as muitas referências a “Rainha do Sábado” e “Noiva do Sábado”. (Quem pensamos que estamos abordando nessas orações, afinal?) E as imagens da Shechinah são: descaradamente, deusa-imagem: Ela é a Terra acasalando-se com o céu através dos condutos da chuva, Ela é o espírito das árvores, Ela é o fluxo cíclico sempre renovador dos tempos e estações naturais.

De fato, tudo isso é muito “perturbador” se você tiver uma noção fixa de que Deus é homem ou “sem gênero” e que espírito e sexo devem ser separados. Mas os cabalistas não têm tais noções. O Divino é masculino e feminino. É experimentada através do espírito e do corpo - e também do coração e da mente. É imanente e transcendente; perfeito, mas também, da nossa perspectiva, em constante mudança. Aqueles rostos de Deus com os quais podemos estar familiarizados desde a infância - o juiz irado, o homem de guerra - são rostos reais. Mas o mesmo acontece com os rostos que foram suprimidos por grande parte de nossa história: o útero nutritivo, o Tudo envolvente.

Para entender isso, convido você a consultar o que os politeístas e pagãos pensam que estão fazendo de qualquer maneira. Você já imaginou? Vamos imaginar um membro hipotético de uma sociedade pré-industrial, talvez até pré-alfabetizada, alguém que adore vários deuses e tenha uma rica mitologia de espíritos da natureza, anjos, demônios e assim por diante. O que está acontecendo? Essa pessoa está gravemente enganada? Iludido? Bem, e as centenas de religiões diferentes hoje em dia? As mulheres que veneram a Virgem Maria estão erradas? Confuso? Mais de um bilhão de hindus, devotados a qualquer número de diferentes seres divinos (ou manifestações), realmente adoram algo completamente desprovido de qualquer realidade?

Certamente este não pode ser o caso experimentalmente. Uma religião que não oferece conexão com o espírito não sobrevive - como muitas religiões estão, de fato, deixando de sobreviver em algumas comunidades hoje. Claramente, a pessoa "primitiva", o Cabalista e os devotos de diferentes religiões estão experimentando alguma coisa. Podemos discordar de como essa experiência é interpretada e mitologizada. Ou talvez nem discordemos - podemos ver a linguagem do mito e da interpretação como exatamente isso: um meio de conceituar e enquadrar em palavras aquilo que é conhecido, mas não articulado.

Alguns textos da Cabala adotam exatamente essa visão, mesmo que nos pareça surpreendentemente pluralista. O Zohar, por exemplo, entende até mesmo as idolatrias desprezadas da Antiga Canaã como meramente imprecisas na terminologia. A adoração a Asherah, por exemplo, é basicamente a adoração à Shechinah - apenas com a noção equivocada de que Asherah é realmente um ser separado. De fato, em uma das passagens mais chocantes do Zohar (trazida à minha atenção pelo rabino Jill Hammer), Asherah é até um nome futuro da própria Shechinah.

Se a natureza radical dessas ideias não estiver ecoando em você, imagine algo mais próximo de casa. Imagine um texto que diz que Jesus Cristo é apenas outro nome para Tiferet, ou que Ganesh é apenas um nome para Hod. Todo mundo está no caminho certo, por assim dizer; é apenas em alguns detalhes teológicos que eles ficam confusos.

Esses textos, que eu saiba, não existem. Mas o abraço do Zohar ao paganismo antigo como verdadeiro, mas sutilmente equivocado, é igualmente radical. E, eu acho, muito mais plausível do que qualquer alternativa que eu possa pensar. Existem bilhões de pessoas no planeta, todas tendo experiências religiosas autênticas em diferentes idiomas religiosos. Realmente acreditamos que apenas os filósofos racionalistas estão acessando a verdade do Ser? Ou podemos abrir a possibilidade de que esses modos de vida religiosa não-racionais, até pré-racionais, acessem algo profundo, primordial e verdadeiro?

Certamente, a Cabal
a não é - como alguns acreditam - uma prática pagã de magia, mito e feitiçaria. Até os últimos cem anos, é apenas nos casos mais raros e heréticos que a prática cabalística inclui ritos sexuais coloridos ou linguagem sincrética de Deus/Deusa. A Cabala pode estar ciente dessas energias e honrá-las muito mais do que qualquer outra parte do judaísmo, mas também é de natureza conservadora. A Cabala tradicional não deixa de lado as mitzvot, ou o estudo da Torah, ou a vida dos piedosos. Continua sendo um fenômeno judaico conservador e nomiano.

Mas se estamos falando da Presença de Deus, estamos falando de Deus como experien
ciado - e isso inclui as imagens de gênero e erotização da Deusa da Terra, princesa e noiva. Ao longo de milhares de anos e amplas extensões geográficas, os povos ao redor do mundo experimentaram o Divino como feminino. E quanto mais algumas tradições tentaram apagá-la, mais perspicaz ela persiste - às vezes em "Árvores de Natal" ou "ovos de páscoa" (historicamente, ambos os símbolos pagãos da deusa), às vezes ainda mais sutilmente, como, por exemplo, o objeto que fica atrás de um véu em todas as sinagogas, usando toda a sua elegância (coroa de prata, vestido de veludo); depois, em um determinado momento, ela está despida e suas duas pernas de pergaminho são separadas para revelar os segredos internos. A Deusa é uma experiência humana quase universal, ao que parece, e ela permanece no monoteísmo como parte do Unificado - embora seja uma parte que está em algum momento exilada do todo e necessitando de unificação.

(A propósito, alguns críticos sugeriram que a doutrina da
Shechinah está historicamente ligada ao culto da Virgem no cristianismo medieval. Muitos críticos veem isso como uma simplificação tola demais. Se alguma sefirah é a Mãe de Deus, é Binah, não Shechinah - a "Mãe Superior" que dá à luz a divindade sefirótica. O conceito do Divino feminino é muito maior do que qualquer manifestação particular dele.)

Malchut é provavelmente a mais importante das dez sefirot - lembre-se, o que é mais alto em uma hierarquia cabalística não é mais importante do que o que está abaixo - porque Ela é a mais próxima de nós. O grande projeto cabalístico de restaurar a unidade e a harmonia no Divino começa com a unificação do imanente e do transcendente, ou shamayim e arets. Também podemos ver esse projeto como o trabalho essencial do judaísmo tradicional como um todo: reunindo o mundo real em que vivemos com nossas noções ideais de verdade, justiça e Deus. Esse projeto envolve tanto uma consciência espiritual voltada para cima quanto uma orientação prática voltada para baixo; um aspecto sem o outro é incompleto. E assim começamos e terminamos onde estamos.

Sobre o autor


Dr. Jay Michaelson é autor de seis livros e mais de trezentos artigos sobre religião, sexualidade, direito e prática contemplativa. Ph.D. em pensamento judaico pela Universidade Hebraica , é colunista do jornal The Daily Beast e do Forward. Em sua “outra” carreira, Jay é professor assistente afiliado ao Seminário Teológico de Chicago, ensina meditação em linhagens budistas theravadas e judaicas e possui ordenação rabínica não-denominacional. De 2003 a 2013, Jay foi um ativista LGBT profissional. Fundou duas organizações LGBT judaicas e apoiou o trabalho de ativistas em todo o mundo na Arcus Foundation, no Democracy Council, e seu novo projeto no Daily Beast, Quorum: Global LGBT Voices.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A Perspectiva de uma Nova Espiritualidade

Por Paulo Stekel


Por muitos anos estive envolvido com formas de espiritualidade religiosa. Na verdade, estudei e pratiquei, quase antropologicamente, muitas formas de religião, filosofia e espiritualidade. Nesta jornada, percebi as diferenças e implicâncias entre dogma e mística, crença e contemplação, fanatismo e pensamento livre, verdades prontas e a busca da Verdade como um processo constante no qual o mais importante é o caminhar e não o destino final.

Dogma e Misticismo

O dogma é um dos princípios das religiões organizadas, aquelas que se tornaram mundiais (ex. Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Hinduísmo, Budismo, etc.). Algumas, como as religiões orientais, o têm como algo mais leve e menos problemático, pois inseriram em seus processos a meditação e a racionalização sobre o caminho espiritual. Outras, especialmente as religiões ocidentais teístas, usam o dogma como cavalo de batalha e para suas caças às bruxas, os infiéis, os mundanos e os “perdidos”. Estas últimas demonizam os deuses e espíritos das outras fés, numa evidente presunção de possuir uma verdade absoluta. O dogma é irmão gêmeo da ortodoxia e do sacerdócio, ocupado com as formas e as normas do processo religioso, o qual sustenta – inclusive, financeiramente – o edifício da fé.

O misticismo é mais espontâneo que o dogma, pois não depende de sacerdotes, mas unicamente da experiência interna. O Profetismo se insere no misticismo, assim como o xamanismo, o tantrismo iogue dos “siddhas” e mesmo o mediunismo moderno. Enquanto o dogma induz medo e até depende do medo para se alastrar, a experiência mística pode depender de muitos fatores que, mesmo parecendo negativos, acabam levando a expansões de consciência e estados ampliados: meditação, respiração consciente, substâncias psicoativas e alucinógenas, estados de dor crônica, choques emocionais, estados de alegria e entusiasmo intenso, auto-flagelações, privações, jejuns, etc. O místico-profeta-xamã-iogue-médium tem uma prática espiritual de protagonismo, diferente do sacerdote, que apenas procura manter um status quo que ele encontra já determinado. O místico é, em si, um “produtor” ou “sintonizador” de novo material espiritual, enquanto o sacerdote não o pode ser, pois apenas segue um vademecum.

Crença e Contemplação

A crença tem a ver com uma proposta de “verdade” ao qual se adere, geralmente, de modo irrestrito. Ela não precisa ter, e via de regra não tem, qualquer relação com a verdade científica ou mesmo evidente para a lógica mais simples. A crença é diferente do dogma no sentido de ser mais individual, de foro íntimo, do que o dogma, que é padronizado e ensinado da mesma forma a todos. Mas, a crença é individual, não igual em todos os indivíduos. Enquanto o dogma está no discurso e mesmo na escritura, a crença está na mente. Não pode ser “escaneada” e nem cancelada externamente por um fiscal eclesiástico. Isso, inclusive, explica a diferença entre a religião padrão e a religião popular, que é a praticada a partir das crenças, não do dogma instituído.

Em algumas religiões e formas de espiritualidade, a contemplação é até mais importante que a crença. É o caso do Budismo, que dá pouca importância à crença no processo de atingimento do Nirvana, a libertação dos ciclos infindáveis de sofrimento. Mais importante é a contemplação do sofrimento, do caráter ilusório do “eu” e da importância da ética para o resultado final.

Fanatismo e Pensamento livre

O fanatismo tem a ver com uma forma dura, rígida, irredutível, de pensamento. Especialmente no caso do pensamento religioso isso reforça o dogma e transforma crenças particulares em verdades válidas, algo comum nas justificativas de grupos terroristas de inspiração religiosa. A recusa em pensar diferente, em analisar e contemplar as verdades que se prega, a demonização do outro e até a perseguição por conta das diferenças são características comuns ao fanatismo, seja religioso, espiritual, político ou social.

O pensamento livre é uma característica da filosofia e, em certo aspecto, da ciência moderna, mas encontrou até aqui pouca guarida entre as tradições religiosas. Mesmo no caso de fenômenos espirituais atuais (alguns, semi ou pseudoespirituais), como a espiritualidade new age, o neoxamanismo, a neocabala e o positivismo de auto-ajuda mesclado à psicologia, há pouco espaço para o pensamento livre, já que um conjunto de ideias pregadas como novas verdades não dialoga com outros conjuntos de ideias igualmente pregadas como novas verdades. No final, voltam ao antigo embate comum entre diferentes religiões. Talvez a Teoria Integral, proposta por Ken Wilber, seja uma das poucas modalidades super atuais de visão transcendente que dialoga com praticamente todas as formas de expressão humanas. Sem um pensamento realmente livre, não é possível libertar o ser humano dos liames do dogma e da crença que tanto mal fizeram a gerações sem conta desde que o homem surgiu na Terra.

As Verdades prontas e A Verdade

Por fim, há uma discrepância enorme entre as diversas verdades prontas disponíveis e o ideal de uma Verdade absoluta que ninguém parece encontrar e, se encontra, não a consegue retransmitir tal qual a encontrou. Aliás, esta é a explicação das práticas não dualistas orientais acerca da percepção da Realidade e de sua Verdade inerente: seu atingimento é de ordem interior e, por isso, a linguagem externa comum não a pode expressar adequadamente. Qualquer descrição dela é uma traição, não a coisa tal qual é.

Contudo, não é possível chegarmos mais perto de uma Verdade mais ampla – ainda que não a uma definitiva – sem abdicarmos das verdades prontas que nos são vendidas todos os dias pelas mais diversas mídias, desde panfletos entregues no domingo pela manhã até e-mails missionários. As verdades prontas possuem uma característica lógica inegável: por serem várias, e muito diferentes, não podem ser A Verdade Absoluta. Escolher entre uma delas é um jogo arriscado e sem resultado eficaz. Todas as religiões são verdades prontas, todas as tradições espirituais fechadas (seitas, cultos, etc.) são verdades prontas, todas as doutrinas definitivas são, na verdade, provisórias, sem o perceber. Deveriam ser todas canceladas pela mente humana, que só então estaria livre para buscar o transcendente de uma forma mais legítima, como o faz o místico há milênios.

Uma nova espiritualidade

Considerando todo o exposto, que tipo de espiritualidade contemplaria tudo o que se escreveu? Uma espiritualidade sem dogmas, mas aberta ao místico, transcendental e interior; uma espiritualidade contemplativa e não meramente “crente”; uma espiritualidade de livres pensadores e não de fanáticos; uma espiritualidade de buscadores da Verdade e não criadores de verdades prontas. Uma tal espiritualidade deveria inserir o que não foi inserido nas formas antigas: a ciência moderna, as descobertas importantes do Séc. XX e do atual, as novas noções da Psicologia, das Neurociências, da Filosofia, da Física e da Cosmologia. Por fim, deveria inserir a atenção aos problemas sociais (direitos humanos, direitos das minorias, igualdade social, etc.) que não interessava ao antigo formato da religião, pois esta sempre dependeu do status social para sobreviver e se expandir. Então, sem isso, e sem um espírito crítico, as formas espirituais modernas se transformarão, em breve, na ortodoxia do futuro, uma ortodoxia tão pérfida e tóxica quanto aquelas das quais os seguidores das novas crenças pretendem fugir.

Em geral, as pessoas não sabem definir em palavras claras os dogmas de sua religião. Não sabem dar detalhes precisos de suas crenças. Não conseguem justificar racionalmente suas ideias mais fanáticas. E, não conseguem aplicar suas verdades prontas à solução dos grandes problemas da existência. Assim, sua espiritualidade é ineficaz e uma perda de tempo. Uma nova espiritualidade não pode ser algo desta natureza. Deve ser libertadora, consciente, sincera e humilde. Se sua frase de efeito principal fosse “enfim, reconhecemos que não sabemos tudo”, poderia uni-la à antiga “conhece-te a ti mesmo” e reconhecer que ainda há muito trabalho pela frente antes de uma pretensão de domínio sobre todos os mistérios. Está tudo em aberto! Basta seguirmos trilhando o caminho.


quarta-feira, 4 de setembro de 2019

A Não-Diferença entre Sujeito e Objeto

Por David Loy (Este artigo contém a terceira parte do Capítulo 1 do livro Nonduality, intitulado “Quantas Não-dualidades Existem?” que está sendo traduzido por Paulo Stekel)



Percebi claramente que a mente não é outra coisa senão montanhas, rios e a grande terra, o sol, a lua e as estrelas. (Dogen)

Vimos a conexão entre as duas primeiras dualidades: é por causa de nossas maneiras dualistas de pensar que percebemos o mundo de maneira plural. A relação entre as não-dualidades correspondentes é paralela: o mundo como uma coleção de coisas discretas (incluindo eu) no espaço e no tempo não é algo objetivamente dado, que apenas observamos passivamente; se nossos modos de pensar mudam, esse mundo muda também para nós. Mas ainda há algo faltando nessa formulação. Por si só, é incompleta, pois deixa sem esclarecimento a relação entre o sujeito e o mundo não-dual que o sujeito experimenta. Foi afirmado anteriormente que o todo não-dual é "espiritual" porque a Mente Una inclui minha mente, mas como a consciência poderia ser incorporada não foi explicado. O mundo não é realmente experimentado como um todo se o sujeito que o percebe ainda está separado dele em sua observação. Dessa maneira, a segunda não-dualidade, concebida objetivamente, é instável e naturalmente tende a evoluir para um terceiro sentido. Este terceiro sentido, como os outros dois, deve ser entendido como uma negação. O dualismo negado é a nossa distinção usual entre sujeito e objeto, um eu experimentador que é distinto do que é experimentado, seja objeto dos sentidos, ação física ou evento mental. A não-dualidade correspondente é a experiência na qual não existe tal distinção entre sujeito e objeto. Por mais extraordinária e contraintuitiva que essa não-dualidade possa ser, é um elemento essencial de muitos sistemas asiáticos (e alguns ocidentais, é claro). Como o objetivo principal deste trabalho é analisar esse terceiro sentido de não dualidade, é necessário estabelecer em detalhes a prevalência e o significado desse conceito.

Começamos com o Vedanta. Muitas das mais importantes passagens dos Upanishad declaram esta não-dualidade; por exemplo, esta famosa do Brihadaranyaka:

Porque quando há dualidade, por assim dizer, então alguém cheira algo, vê algo, ouve algo, fala algo, pensa algo, conhece algo. [Mas] quando, para o conhecedor de Brahman, tudo se tornou o Ser, então o que se deve cheirar e através do que, o que se deve ver e através do que, [repetido por ouvir, separar, pensar e saber]? Através do que se deveria saber Aquilo pelo qual tudo isso é conhecido - através do que, ó Maitreyi, alguém deveria conhecer o Conhecedor?

E quando [parece que] no sono profundo, ele não vê, mas está vendo, embora não veja; pois não há cessação da visão do que vê, porque o que vê é imperecível. Porém, não há outra coisa separada do que vê. [Para enfatizar o argumento, este versículo é repetido, no lugar de ver, substituindo-o por cheirar, provar, separar, ouvir, pensar, tocar e saber.]

A não-dualidade de sujeito e objeto ainda constitui o coração do curto Isha Upanishad: “Para o que vê, todas as coisas realmente se tornaram o Eu: que ilusão, que tristeza pode haver para quem vê essa unidade?” O Taittiriya Upanishad conclui com isso:

Ele [que conhece Brahman] senta-se, cantando o canto da não dualidade de Brahman: "Ah! Ah! Ah!"

"Sou comida, sou comida, sou comida! Sou devorador de comida, sou devorador de comida, sou devorador de comida! Sou o unificador, sou o unificador, sou o unificador!

"... Quem come comida - eu, sendo comida, como-o."

Tantas outras passagens poderiam ser citadas que posso dizer, sem exagero, que afirmar esse terceiro sentido de não-dualidade constitui a reivindicação central dos Upanishad. É mais frequentemente expresso como a identidade entre Atman (o Self, o Eu) e Brahman, implícita no mais famoso mahavakya (grande ditado) de todos: tat tvam asi (que tu és). Essa interpretação é, obviamente, crucial para o Advaita (lit., não-dual) Vedanta, e o grande filósofo advaita Shankara dedicou um trabalho inteiro à exposição, o curto Vakyavritti. Uma estrofe do Atmabodha dá noção clara e sucinta de sua visão:

A distinção entre conhecedor, conhecimento e a meta do conhecimento não persiste no Eu todo-transcendente. Sendo da natureza da bem-aventurança que é pura consciência, ela brilha por si mesma.

Em seu comentário sobre passagens do Brihadaranyaka citadas acima, Shankara insiste que nosso senso comum de dualidade sujeito-objeto é ilusório:

Quando, no estado de vigília ou sonho, há algo além do eu, por assim dizer, apresentado por ignorância, então alguém, pensando em si mesmo como diferente daquele algo - embora não haja nada diferente do eu, nem existe diferente dele - pode ver algo.

A frase "por assim dizer" (sânscrito, iva), enfatiza que a aparência ao sujeito de algo objetivo é o que constitui avidya, ignorância ou ilusão. Esta afirmação não é de forma alguma exclusiva do Vedanta; encontra-se em praticamente todas as filosofias asiáticas que afirmam esse terceiro senso de não-dualidade: nossa experiência não apenas pode ser, mas já é e sempre foi não-dual; qualquer sentido de um sujeito à parte do que é experimentado é uma delusão. De acordo com essa visão, não é correto dizer que nossa experiência usual é dualística, pois toda experiência é realmente não-dual. O caminho espiritual envolve eliminar apenas a ilusão da dualidade. Por mais variados que os diferentes sistemas possam caracterizar essa realidade não-dual, o objetivo é simplesmente realizar e viver essa natureza não-dual.

O principal Advaitin do século XX apoia e reafirma a posição tradicional Vedântica sobre a não-dualidade:

A dualidade de sujeito e objeto, a trindade de quem vê, a visão e o visto só podem existir se apoiados pelo Uno. Se alguém se volta para dentro em busca dessa Realidade Única, eles [a trindade] desaparecem.

O mundo é percebido como uma realidade objetiva aparente quando a mente é exteriorizada, abandonando assim sua identidade com o Eu. Quando o mundo é assim percebido, a verdadeira natureza do Eu não é revelada; por outro lado, quando o Eu é realizado, o mundo deixa de aparecer como uma realidade objetiva. (Ramana Maharshi)

O Advaita Vedanta afirma claramente a não-dualidade em nosso terceiro sentido, a ponto de torná-lo o princípio central. O caso do budismo é mais complicado. Ontologicamente, o budismo páli, que se baseia no que se entende por ensinamentos originais de Buda, parece pluralista. A realidade é entendida como consistindo de uma multiplicidade de elementos discretos (dharmas). O eu é analisado em cinco "agregados" (skandhas) que o Abhidharma (o "dharma superior", um resumo filosófico dos ensinamentos do Buda) classifica e sistematiza. Portanto, o budismo primitivo, embora crítico do pensamento dualista, não é não-dual no segundo sentido, monístico. Quanto à não-diferença de sujeito e objeto, a questão é menos clara. Enquanto o segundo senso de não-dualidade implica logicamente em alguma versão do terceiro, não é verdade que uma negação do segundo sentido implique numa negação do terceiro. O mundo pode ser um composto de experiências discretas que não são duais no terceiro sentido. Não estou familiarizado com nenhuma passagem no cânone Páli que afirme claramente a não-dualidade de sujeito e objeto, como se encontra em tantos textos mahayana. Mas, também não encontrei negação de tal não-dualidade. Pode-se ver a doutrina anatman (não-eu) do budismo primitivo como uma outra maneira de levar ao mesmo ponto; em vez de afirmar que sujeito e objeto são um, o Buda simplesmente nega que exista um sujeito. Essas duas formulações podem muito bem conter a mesma coisa, embora a última possa ser criticada por ser ontologicamente desigual: como sujeito e objeto são interdependentes, o sujeito não pode ser eliminado sem transformar a natureza do objeto (e vice-versa, como o Advaita Vedanta estava ciente).

O budismo mahayana é abundante em afirmações de não-dualidade sujeito-objeto, apesar do fato de que não se pode dizer que a filosofia mahayana mais importante, a Madhyamika, afirme a não-dualidade, uma vez que faz poucas (se houver) afirmações positivas, mas se limita a refutar todas as posições filosóficas. A Madhyamika é advayavada (a teoria do não-dois, aqui significando nenhuma das duas visões alternativas, nosso primeiro sentido de não-dualidade) em vez de advaitavada (a teoria da não-diferença entre sujeito e objeto, nosso terceiro sentido). Prajña é entendido como conhecimento não-dual, mas isso novamente é advaya, conhecimento desprovido de pontos de vista. Nagarjuna não afirma nem nega a experiência da não-dualidade no terceiro sentido, apesar do fato de a dialética Madhyamika criticar a auto-existência do sujeito e do objeto, pois, na relação de um com o outro, ambos devem ser irreais.

Nagarjuna sustenta que a origem dependente nada mais é do que chegar ao resto da variedade de coisas nomeadas (prapañcopashama). Quando a mente cotidiana e seu conteúdo não estão mais ativos, o sujeito e o objeto das transações cotidianas desapareceram porque o tumulto da originação, decadência e morte, foi deixado completamente para trás, o que é a bem-aventurança final. (Chandrakirti)

Comparativamente, a literatura Yogachara contém diversas passagens explícitas afirmando a identidade entre sujeito e objeto. Esta, de Vasubandhu, é talvez a mais conhecida:

Através da obtenção do estado de Consciência Pura, há a não-percepção do perceptível; e através da não-percepção do perceptível (isto é, do objeto) ocorre a não-aquisição da mente (isto é, do sujeito).
Pela não-percepção desses dois, surge a realização da Essência da Realidade (dharmadhatu).

Onde há um objeto, há um sujeito, mas não onde não há objeto. A ausência de um objeto resulta na ausência também de um sujeito, e não apenas no de apreender. É assim que surge a cognição que é homogênea, sem objeto, indiscriminada e supermundana. As tendências de tratar objeto e sujeito como entidades distintas e reais são abandonadas, e o pensamento é estabelecido apenas na verdadeira natureza do pensamento de alguém. (Vasubandhu)

A afirmação yogacara de cittamatra (mente-apenas), de que apenas mente ou consciência existe, previsivelmente deu origem à má interpretação (corrigida em trabalhos recentes) de que o yogacara é uma forma de idealismo subjetivo. Mas, o subjetivismo não é um aspecto de nenhuma escola budista, e nem, devido ao papel vital da doutrina anatman, poderia ser. Como essas duas passagens sugerem, para o Yogacara o mundo aparentemente objetivo não é uma projeção da minha consciência do ego. Antes, a bifurcação ilusória entre sujeito e objeto surge dentro da Mente não-dual. Assim, na parinishpanna-svabhava (natureza absolutamente realizada), que é o estado mais elevado da existência, a experiência é sem dualidade sujeito-objeto. No Yogacara, a afirmação de que a experiência é não-dual, em todos os nossos sentidos, atinge pleno desenvolvimento e explicitação; portanto, é adequado que, com essa afirmação, possa-se dizer que a filosofia budista atingiu seu ponto culminante. O que se seguiu foram elaborações e sínteses derivadas (populares no budismo chinês, por exemplo, T'ien T'ai e Hua Yen) e a aplicação dessas perspectivas filosóficas à prática (especialmente na Terra Pura, no Ch'an e no budismo tântrico). O que é mais significativo para nós é que o terceiro sentido de não-dualidade, a não-diferença entre sujeito e objeto, era essencial para todos eles. (A seguir, a menos que seja indicado de outra forma, o termo não-dualidade sempre se referirá a esse terceiro sentido.)

A não-dualidade entre sujeito e objeto é também o conceito central tanto no tantra hindu quanto budista, conforme S. B. Dasgupta:

A meta definitiva de ambas as escolas é o perfeito estado de união – união entre os dois aspectos da realidade e a realização da natureza não-dual do eu e do não-eu. Sendo o princípio do Tantrismo fundamentalmente o mesmo em qualquer lugar, as diferenças superficiais, sejam elas quais forem, fornecem apenas tons e cores diferentes.

A síntese ou melhor, a unificação de toda dualidade em uma unidade absoluta é o princípio real da união, que foi denominado Yuganaddha ... o princípio real de Yuganaddha é a ausência da noção de dualidade como o percebível (grahya) e o percebedor (grahaka) e sua síntese perfeita em uma unidade.

As traduções de Evans-Wentz dos textos budistas tibetanos fornecem exemplos para apoiar a visão de Dasgupta. Do "Yoga do Conhecimento da Mente", atribuído a Padmasambhava:

Não havendo realmente dualidade, o pluralismo é falso.
Até que a dualidade seja transcendida e realizada em um momento, a iluminação não pode ser alcançada.
Todo o Sangsara e o Nirvana, como uma unidade inseparável, são a mente ...
Os não iluminados externamente veem o externamente transitório dualmente.

Encontramos isso exemplificado no Mahamudra (Yoga do Grande Símbolo), que fornece um conjunto de meditações graduais. As duas práticas finais são, primeiro, "o Yoga da Transmutação de todos os Fenômenos e da Mente, que são inseparáveis, em Um Momento (ou Unidade)". Isso envolve meditações sobre a não-dualidade entre sono e sonhos, água e gelo, água e ondas. Finalmente, existe o "Yoga da Não-Meditação", que significa simplesmente o fim do esforço, pois, com a transmutação acima em não-dualidade, completamos o Caminho: "obtemos o benefício supremo do grande símbolo, o estado inabalável do Nirvana."

Mais recentemente, o estudioso italiano Giuseppe Tucci resumiu o objetivo final da soteriologia do budismo tibetano da seguinte forma:

A cognição superior é a penetração e o conhecimento da verdadeira natureza dessas aparências, dessas formas criadas por nosso conhecimento discursivo, esses produtos de uma falsa dicotomia entre sujeito e objeto ... O objetivo final continua sendo o despertar dessa cognição superior, aquele shes rab, sânscrito prajña, na consciência do adepto, que lhe permite examinar a natureza última de todas as coisas com a clareza do insight direto; em outras palavras, a transcendência da dicotomia sujeito-objeto.

Em seus volumosos escritos sobre o Zen, D. T. Suzuki repetidamente enfatiza que a experiência do satori é a realização da não-dualidade. Por exemplo, na primeira série de seus Ensaios sobre Zen Budismo, durante uma discussão sobre “Mente original”, ele declara que “não há separação entre conhecedor e conhecido”. O Zen é "o desenvolvimento de um novo mundo até então não percebido na confusão da mente treinada dualisticamente". Há muitos diálogos Zen tradicionais para apoiar isso:

Monge: "Se a natureza própria é pura e não pertence a nenhuma categoria de dualidade, como ser e não-ser etc., onde é que essa visão acontece?"
Chih de Yun-chu (século VIII): "Há o que ver, mas nada é visto."
Monge: "Se nada é visto, como podemos dizer que há alguma visão?"
Chih: "De fato, não há vestígios de ver."
Monge: "Em tal visão, de quem é a visão?"
Chih: "Também não há quem vê."

Outro monge perguntou a Wei-kuan: "Onde está o Tao?"
Kuan: "Bem diante de nós".
Monge: "Por que não vejo?"
Kuan: "Por causa do seu egoísmo, não pode vê-lo."
Monge: "Se não posso vê-lo por causa do meu egoísmo, sua reverência vê isso?"
Kuan: "Enquanto houver 'eu e você', isso complica a situação e não há como ver o Tao".
Monge: "Quando não há 'eu' nem 'você', é visto?"
Kuan: "Quando não há 'eu' nem 'você', quem está aqui para vê-lo?"

O que é sem dúvida a mais famosa de todas as histórias Zen - pretendendo descrever como Hui Neng se tornou o Sexto Patriarca - apresenta o conceito Zen de "não mente" (chinês, wu-hsin; japonês, mushin), que afirma, de fato, a não-dualidade de sujeito e objeto. De acordo com a primeira parte autobiográfica do Sutra da Plataforma, Shen Hsiu, monge-chefe do mosteiro do Quinto Patriarca, submeteu uma estrofe comparando a mente a um espelho que deve ser constantemente limpo de toda poeira conceitual. Em resposta, Hui Neng compôs uma estrofe negando a existência de um espelho mental: "como tudo está vazio desde o início, onde pode surgir a poeira?" O Quinto Patriarca elogiou publicamente o verso de Shen Hsiu por mostrar a maneira correta de praticar, mas criticou-o em particular por revelar que Shen Hsiu ainda não havia se iluminado. Sua visão ainda era dualista, concebendo a mente como um espelho que reflete um mundo externo. O verso de Hui Neng aponta que não existe tal mente separada do mundo.

Em sua explicação de "não mente", D. T. Suzuki enfatiza o significado dessa história para o Zen.

Hui Neng e seus seguidores passaram a usar o novo termo chien-hsing em vez do antigo k'an-ching [manter um olho na pureza]. Chien-hsing significa "olhar para a natureza (da Mente)". K'an e chien se relacionam com o sentido da visão, mas o caractere k'an, que consiste em uma mão e um olho, é observar um objeto como independente do espectador; o visto e o ver são duas entidades separadas. Chien, composto apenas de um olho em duas pernas estendidas, significa o puro ato de ver... O ver não está refletindo em um objeto como se o que vê não tivesse nada a ver com isso. A visão, pelo contrário, une o que vê e o objeto visto, não na mera identificação, mas na tomada de consciência de si mesmo, ou melhor, de seu trabalho.

O ensino dos mestres Zen contemporâneos também apoia a centralidade da não-dualidade na experiência Zen. Aqui estão trechos das entrevistas particulares de Yasutani-roshi com ocidentais durante um retiro de meditação:

Há uma frase que um famoso mestre zen escreveu na época em que se tornou iluminado e dizia: "Quando ouvi o sino do templo tocar, de repente não havia sino e nem eu, apenas som". Em outras palavras, ele não estava mais consciente de uma distinção entre ele mesmo, a campainha, o som e o universo. Este é o estado que você precisa atingir.

Kensho [auto-realização] é a consciência direta de que você é mais do que esse corpo insignificante ou mente limitada. Em termos negativos, é a percepção de que o universo não é externo a você. Positivamente, está experimentando o universo como você mesmo.

O budismo devocional da Terra Pura, que enfatiza a dependência de Amitabha para ajudar a renascer em Sukhavati (o paraíso ocidental do Mahayana), não é tratado em detalhes neste trabalho. Mas o desenvolvimento de Shinran do Budismo da Terra Pura no Budismo Shin, uma escola que tem sido mais popular no Japão que o Zen, é relevante para o meu propósito. Shinran redefiniu a doutrina da Terra Pura na direção da não-dualidade. O renascimento na Terra Pura não é um trampolim para o nirvana, mas é em si "uma iluminação insuperável completa". A fé em Shinran não era meramente crença no poder e benevolência de alguma força externa; nas palavras de um comentarista, "O despertar da fé no budismo Shin é um instante de pura ausência de ego". Isso acontece quando nos rendemos à compaixão infinita de Amitabha, que não é um Deus externo ou Buda, mas a própria Realidade, que também é a nossa verdadeira natureza.

A comparação de todos os Budas, apesar de transcender todas as categorias de pensamento, incluindo sujeito e objeto, aparece para nossa percepção orientada para o ego como uma força que age sobre nós externamente - como o Outro Poder [tariki]. Isto Shinran deixa bem claro quando diz "O que se chama poder externo é o mesmo que dizer que não há discriminação disso ou daquilo". Entregar-se ao Outro Poder significa transcender a distinção entre sujeito e objeto. Assim como nos identificamos com Amida, Amida se identifica conosco. (Sangharakshita)

Infelizmente, a ênfase no tariki (Outro Poder) muitas vezes levou a minimizar a importância de qualquer prática de meditação pessoal, continuando a divisão tradicional entre Terra Pura e Zen, que enfatiza o jiriki (esforço próprio). Esse desacordo deve-se a um mal-entendido: a não-dualidade parece implicar a negação da oposição entre tariki e jiriki em um esforço que não é identificado como meu ou de outro. Podemos dizer que o esforço que Amida exerce para se identificar comigo é ao mesmo tempo meu esforço para me identificar com ele.

Nenhum dos três textos taoístas clássicos - Tao Tê Ching, Chuang Tzu e Lieh Tzu - é definitivo como o Vedanta e o Mahayana ao negar a dualidade sujeito-objeto. Existem várias passagens no Tao Tê Ching (por exemplo, no capítulo 13) que podem sugerir essa não-dualidade, mas não são claras. O Chuang Tzu é menos ambíguo. "O homem perfeito não tem eu; o homem espiritual não tem realizações; o verdadeiro sábio não tem nome." "Se não houver outro, não haverá eu. Se não houver eu, não haverá quem faça distinções." No capítulo 6, "O Grande Instrutor", Nu Chü ensina o Tao a Pu Liang I:

Depois de três dias, ele [Pu Liang I] começou a ser capaz de desconsiderar todos os assuntos mundanos. Depois de ter desconsiderado todos os assuntos mundanos, sete dias depois, ele foi capaz de desconsiderar todas as coisas externas; depois de nove dias, sua própria existência. Tendo desconsiderado sua própria existência, ele estava iluminado ... foi capaz de obter visão do Uno... capaz de transcender a distinção entre passado e presente ... capaz de entrar no reino onde a vida e a morte não existem mais.

Esta e outras passagens se referem à negação da dualidade enquanto em transe meditativo. Encontramos o mesmo no Lieh Tzu, onde Lieh Tzu aprende a "andar no vento", meditando até que "Interno e Externo fossem misturados à Unidade". Essas passagens implicam fortemente, mas não afirmam explicitamente, que o objetivo, a experiência resultante do Tao, também é não-dual. Algumas outras passagens de Chuang Tzu, no entanto, são mais explícitas. A primeira citação deste capítulo é do Chuang Tzu, criticando o pensamento dualista; ele continua:

Então, o "eu" também é o "outro"; o "outro" é o "eu"... Mas existem realmente distinções como "eu" e "outro", ou não existem tais distinções? Quando o "eu" e o "outro" perdem a contrariedade, aí temos a própria essência do Tao.

Chuang Tzu pede repetidamente: "Identifique-se com o infinito"; "esconda o universo no universo". Mas, como devemos fazer isso? "Com o estado de pura experiência", explica Fung Yu-lan na introdução de sua tradução do Chuang Tzu:

No estado de pura experiência, é alcançado o que é conhecido como a união do indivíduo com o todo. Nesse estado, há um fluxo ininterrupto de experiência, mas o experimentador não o conhece. Ele não sabe que existem coisas, para não falar em fazer distinções entre sujeito e objeto, entre o "eu" e o "não-eu". Portanto, nesse estado de experiência, não há nada além de um, o todo.

Outro comentarista contemporâneo, Chang Chung-yuan, concorda: "a consciência da identificação e interpenetração do eu e do não-eu é a chave que desvenda o mistério do Tao".

Chih [conhecimento intuitivo] é a chave para entender o Tao e desvendar todos os segredos do não-ser. Em outras palavras, o conhecimento intuitivo é pura autoconsciência por meio de penetração imediata, direta e primitiva, e não pelos métodos derivados, inferenciais ou racionais. Na esfera do conhecimento intuitivo, não há separação entre o conhecedor e o conhecido; sujeito e objeto são identificados.

Tendo estabelecido a significância da não-dualidade de sujeito e objeto para o Taoismo, a apresentação das não-dualidades chega ao fim. Ofereci um certo número de passagens de fontes Vedantinas, budistas e taoistas, e referi a opinião de vários eruditos respeitados comentando sobre estas tradições. (…) Por exemplo, os textos budistas contém mais advertências contra o pensamento dualista e menos declarações a respeito da não-pluralidade do mundo, como pudemos ver. Geralmente, afirmações explícitas de não-dualidade de sujeito e objeto são menos comuns na China que na metafísica da Índia, refletindo seus interesses filosóficos distintos, e como consequência, as fontes indianas serão citadas com mais frequência nos capítulos seguintes. Minha ênfase continua a ser sobre o terceiro sentido de não-dualidade, mas as relações entre todos os três continua a ser importante.

Quando reunimos as reivindicações incorporadas nesses três significados de não-dualidade, com o que terminamos? Devido a nossos modos conceituais, duais, de pensamento, experimentamos o mundo como uma colação de objetos discretos interagindo no espaço e no tempo. Um destes objetos sou eu: eu experimento a mim mesmo como um sujeito olhando para um mundo externo e ansioso a respeito de minha relação para com ele. Expresso assim, a peculiaridade de tal entendimento se torna mais óbvia, pois certamente eu devo estar “em” meu mundo de um modo diferente de uma caneta com a qual estou escrevendo. Os sistemas não-dualistas concordam que esta forma de experiência não é a única possível, e nem a melhor, pois envolve ilusão tanto a respeito da verdadeira natureza do mundo quanto de nós mesmos, e esta ilusão causa sofrimento. Se nosso pensamento muda, se os nossos modos dualistas de pensamento são transformados de alguma forma não especificada, experimentaremos o mundo como não-plural e, o mais importante de tudo, superaremos nossa alienação realizando nossa unidade não-dual com ele. A experiência espiritual nos revelará pela primeira vez nossa verdadeira natureza, que é também a verdadeira natureza do mundo: sem forma, indivisível, sem nascimento e sem morte, e além da compreensão do intelecto. Mas, também notamos que pode haver um sério desacordo a respeito do preciso relacionamento entre este Um imperceptível e os fenômenos sensíveis.

Sobre o autor

David Robert Loy é professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia, Existencialismo e Budismo" [Lack and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy, Existentialism, and Buddhism] e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada" [Nonduality: A Study in Comparative Philosophy], além de vários artigos. (www.davidloy.org)