Por David Loy (Este artigo contém a
parte final do
Capítulo 2 do livro Nonduality,
intitulado “Percepção Não-dual”,
que está sendo traduzido por Paulo Stekel. Para
uma maior compreensão, sugerimos a leitura dos trechos anteriores
desta mesma obra já postados aqui:
https://stekelblogue.blogspot.com/search/label/David%20Loy)
Nos
termos da epistemologia moderna, a percepção não dual é melhor
entendida como uma versão do fenomenalismo [Ver Nota do Tradutor, no final do texto].
O fenomenalismo não dual escapa a algumas das objeções que foram
levantadas contra outras teorias fenomenalistas, mas não a principal
dificuldade: como explicar o papel dos
órgãos dos sentidos. Responder a esse
problema nos leva a uma compreensão mais profunda dos problemas
envolvidos. Mas, primeiro considero algumas objeções contemporâneas
à noção de "sensação pura" sem nenhuma sobreposição
conceitual.
Embora
a epistemologia do século XX aceite que a percepção
envolva concepção,
muitos filósofos se opuseram à implicação (por exemplo, nas
teorias dos dados dos sentidos) de que nosso nível primário de
experiência é composto de "sensações puras" despidas de
qualquer referência a objetos no mundo percebido. Eles alegam que
tais “percepções nuas” não constituem os elementos básicos do
mundo em que vivemos, pois são produtos artificiais da análise
intelectual e nunca poderiam ser usados para reconstruir as
estruturas intencionais da experiência consciente. De acordo com
essa visão, a introspecção
não nos dá evidência de tais percepções indeterminadas
distinguíveis de objetos percebidos e, portanto, é correto dizer
que o que fazemos imediatamente intuir na percepção são objetos.
Isso critica reivindicações como esta de Berkeley:
Quando ouço um coche dirigindo pela rua, percebo imediatamente apenas o som: mas, pela experiência que tive de que esse som está conectado a um coche, é dito que eu ouço um coche. No entanto, é evidente que, na verdade e no rigor, nada pode ser ouvido, exceto o som, e o coche não é então percebido adequadamente pelo sentido, mas sugerido pela experiência.
Quando ouço um coche dirigindo pela rua, percebo imediatamente apenas o som: mas, pela experiência que tive de que esse som está conectado a um coche, é dito que eu ouço um coche. No entanto, é evidente que, na verdade e no rigor, nada pode ser ouvido, exceto o som, e o coche não é então percebido adequadamente pelo sentido, mas sugerido pela experiência.
Heidegger
discorda de Berkeley: “o que ouvimos em primeira instância nunca
são ruídos e complexos sonoros, mas o vagão rangente, a
motocicleta... Requer um estado de espírito muito artificial e
complicado ‘ouvir’ um ‘ruído puro’.” No entanto (para
expressar o ponto de vista de Berkeley), tivesse
eu nunca visto ou ouvido um antes, não
seria capaz de dizer que o que estou ouvindo é uma motocicleta.
Portanto, a questão é se, uma vez familiarizado com as
motocicletas, há uma inferência consciente de sensação para
percepção, uma inferência que posso reconhecer através da
introspecção. Então a resposta negativa de Merleau-Ponty e
Heidegger é certamente a correta: uma vez familiarizado com "o
som de uma motocicleta", esse som normalmente não é
distinguível de sua fonte; então o que eu ouço é a motocicleta.
Mas, em vez de discutir sobre o uso correto da palavra ouvir, o que é
importante aqui é que a inferência não pode ser negada; é
simplesmente que a inferência é tão automática que é
inconsciente.
Normalmente (...) a consciência perceptiva parece intuitiva - isto é, sem interpretação e completamente não analisável; exceto na redução perceptiva, seu conteúdo quase sempre consiste em objetos ostensivos. Mesmo assim, as evidências psicológicas mostram que há uma variedade de processos subjetivos (…). A consciência perceptiva é introspectivamente um todo, mas deve ser um produto de uma variedade de processos seletivos, suplementares, integrativos ou organizacionais e quase interpretativos, agindo sobre uma suposta sensibilidade básica. Mas - e esse é o ponto -, tanto os processos quanto a senciência são inconscientes e, portanto, podem ser considerados como atividades cerebrais ou ajustes do sistema nervoso. No entanto, como ainda não podemos fornecer nenhuma declaração neurológica precisa desses processos, temos que descrevê-los como se estivessem conscientes, baseando a descrição na diferença entre a entrada dos sentidos e o produto final, mas este produto (consciência perceptiva) não revela em si os processos que podem ser formados. (R.J. Hirst)
Normalmente (...) a consciência perceptiva parece intuitiva - isto é, sem interpretação e completamente não analisável; exceto na redução perceptiva, seu conteúdo quase sempre consiste em objetos ostensivos. Mesmo assim, as evidências psicológicas mostram que há uma variedade de processos subjetivos (…). A consciência perceptiva é introspectivamente um todo, mas deve ser um produto de uma variedade de processos seletivos, suplementares, integrativos ou organizacionais e quase interpretativos, agindo sobre uma suposta sensibilidade básica. Mas - e esse é o ponto -, tanto os processos quanto a senciência são inconscientes e, portanto, podem ser considerados como atividades cerebrais ou ajustes do sistema nervoso. No entanto, como ainda não podemos fornecer nenhuma declaração neurológica precisa desses processos, temos que descrevê-los como se estivessem conscientes, baseando a descrição na diferença entre a entrada dos sentidos e o produto final, mas este produto (consciência perceptiva) não revela em si os processos que podem ser formados. (R.J. Hirst)
Aqui
a filosofia cede à psicologia, e é significativo que um estudo
científico recente conclua que, na percepção, o elemento
conceitual desempenha um papel ainda maior que a sensação:
A percepção parece ser uma questão de procurar informações armazenadas sobre objetos e como elas se comportam em várias situações. A imagem da retina faz pouco mais do que selecionar os dados armazenados relevantes (...). Podemos pensar na percepção como sendo essencialmente a seleção da hipótese armazenada mais apropriada, de acordo com os dados sensoriais atuais. (Richard Gregory)
Avaliada de acordo com a nossa experiência quotidiana, isso não é implausível. Nossas mentes geralmente estão tão preocupadas com várias intenções que não observamos objetos, mas inferimos sua presença com base no olhar mais superficial. Outra maneira de descrever essa "percepção intencional" é dizer que normalmente a observação é seletiva.
Precisa de um objeto escolhido, uma tarefa definida, um interesse, um ponto de vista, um problema (...). Um animal faminto (...) divide o ambiente em coisas comestíveis e não comestíveis. Um animal em fuga vê estradas para escapar e esconderijos (...). De um modo geral, os objetos mudam de acordo com as necessidades do animal. (Karl Popper)
A percepção parece ser uma questão de procurar informações armazenadas sobre objetos e como elas se comportam em várias situações. A imagem da retina faz pouco mais do que selecionar os dados armazenados relevantes (...). Podemos pensar na percepção como sendo essencialmente a seleção da hipótese armazenada mais apropriada, de acordo com os dados sensoriais atuais. (Richard Gregory)
Avaliada de acordo com a nossa experiência quotidiana, isso não é implausível. Nossas mentes geralmente estão tão preocupadas com várias intenções que não observamos objetos, mas inferimos sua presença com base no olhar mais superficial. Outra maneira de descrever essa "percepção intencional" é dizer que normalmente a observação é seletiva.
Precisa de um objeto escolhido, uma tarefa definida, um interesse, um ponto de vista, um problema (...). Um animal faminto (...) divide o ambiente em coisas comestíveis e não comestíveis. Um animal em fuga vê estradas para escapar e esconderijos (...). De um modo geral, os objetos mudam de acordo com as necessidades do animal. (Karl Popper)
Mas
o que acontece se alguém simplesmente observa sem nenhuma tarefa,
ponto de vista ou necessidade - como ocorre durante alguns tipos de
meditação? Se alguém fosse capaz de abandonar todas as intenções,
poderia perceber de uma maneira muito diferente e realizar algo até
então despercebido nessas percepções? Pode-se admitir que as
inferências que inegavelmente fazemos são inconscientes no momento
em que as fazemos, pois não são observáveis através da
introspecção normal; mas isso não implica que elas
devam permanecer inconscientes e que não existem técnicas pelas
quais possam ser trazidas
à consciência. Sabemos pela psicanálise que é possível reexpor à
consciência as memórias e as respostas emocionais que há muito são
reprimidas. Não há razão para supor, como Hirst, que o mesmo não
se aplica à percepção. É claro que isso não resolve a questão,
mas torna uma questão que só pode ser resolvida empiricamente -
isto é, experimentalmente - uma virada agradável ao não-dualista,
que nos convida a perceber isso por nós mesmos no samādhi
meditativo.
A maioria das pesquisas científicas sobre meditação e samādhi tem se preocupado com sua fisiologia, mas conheço duas experiências científicas cujos resultados parecem apoiar a possibilidade de percepção não-dual. Esses experimentos foram conduzidos pelo Dr. Arthur J. Deikman, do Centro Médico Austen Riggs, em Stockbridge, Massachusetts, e ele os relatou nas edições de abril de 1963 e fevereiro de 1966 do The Journal of Nervous and Mental Disease (do qual cito abaixo).
Nos dois experimentos, os sujeitos (quatro no primeiro, seis no segundo) sentaram-se em uma sala simples com iluminação reduzida e foram solicitados a se concentrarem em um vaso azul de quinze centímetros de altura; o número e a duração das sessões variaram. Depois de excluir aquelas percepções prontamente explicáveis em termos de conceitos familiares como pós-imagens, fosfenos e imagens retinianas estabilizadas, restavam certos fenômenos desconhecidos experimentados por todos os sujeitos. A cor do vaso mudou para um azul mais profundo e intenso, frequentemente descrito como "mais vívido". “O adjetivo ‘luminoso’ era frequentemente aplicado ao vaso, como se fosse uma fonte de luz.” “Era como se a luz estivesse saindo dela.” “Começou a irradiar. Eu estava ciente do que pareciam partículas... [isso] parecia vir dos destaques ali e direto para mim.” Outro efeito foi uma instabilidade na forma do vaso. Seu tamanho e/ou forma foram alterados; parecia tornar-se bidimensional; e havia "uma difusão ou perda de seus limites perceptivos". Frequentemente o vaso parecia se mover: "batendo", "variando", "flutuando". “Os contornos da mudança do vaso. Nesse ponto, eles parecem quase literalmente se dissolver completamente... e passam a uma espécie de azul fluido... uma coisa muito fluida... tipo de movimento.” “(...) As coisas parecem se aguçar e há uma natureza diferente na substância das coisas. É como se eu estivesse vendo entre as moléculas... a massa usual de solidez perde sua densidade ou massa, e se separa.”
A maioria das pesquisas científicas sobre meditação e samādhi tem se preocupado com sua fisiologia, mas conheço duas experiências científicas cujos resultados parecem apoiar a possibilidade de percepção não-dual. Esses experimentos foram conduzidos pelo Dr. Arthur J. Deikman, do Centro Médico Austen Riggs, em Stockbridge, Massachusetts, e ele os relatou nas edições de abril de 1963 e fevereiro de 1966 do The Journal of Nervous and Mental Disease (do qual cito abaixo).
Nos dois experimentos, os sujeitos (quatro no primeiro, seis no segundo) sentaram-se em uma sala simples com iluminação reduzida e foram solicitados a se concentrarem em um vaso azul de quinze centímetros de altura; o número e a duração das sessões variaram. Depois de excluir aquelas percepções prontamente explicáveis em termos de conceitos familiares como pós-imagens, fosfenos e imagens retinianas estabilizadas, restavam certos fenômenos desconhecidos experimentados por todos os sujeitos. A cor do vaso mudou para um azul mais profundo e intenso, frequentemente descrito como "mais vívido". “O adjetivo ‘luminoso’ era frequentemente aplicado ao vaso, como se fosse uma fonte de luz.” “Era como se a luz estivesse saindo dela.” “Começou a irradiar. Eu estava ciente do que pareciam partículas... [isso] parecia vir dos destaques ali e direto para mim.” Outro efeito foi uma instabilidade na forma do vaso. Seu tamanho e/ou forma foram alterados; parecia tornar-se bidimensional; e havia "uma difusão ou perda de seus limites perceptivos". Frequentemente o vaso parecia se mover: "batendo", "variando", "flutuando". “Os contornos da mudança do vaso. Nesse ponto, eles parecem quase literalmente se dissolver completamente... e passam a uma espécie de azul fluido... uma coisa muito fluida... tipo de movimento.” “(...) As coisas parecem se aguçar e há uma natureza diferente na substância das coisas. É como se eu estivesse vendo entre as moléculas... a massa usual de solidez perde sua densidade ou massa, e se separa.”
Material
sólido como eu, o vaso e a mesa... parece ser atribuído a essa
propriedade extra de flexibilidade, como em seu estado natural e
fluido. É quase como se nós fôssemos,
eu e o vaso e a porta, uma forma que perdeu sua fluidez da mesma
maneira que a água perde sua propriedade de fluidez quando está
congelada.
Todos os sujeitos de Deikman relataram que o vaso perdeu sua solidez e limites rígidos, tornando-se mais fluido e sem forma; contudo, paradoxalmente, isso fez parecer algo ainda mais vívido e real para eles. Os sujeitos costumavam usar o termo "sentimento" para descrever essas experiências, ou seja, não toque ou emoção, "mas sim uma percepção que não pode ser localizada nas rotas perceptivas habituais de visão, audição e coisas semelhantes". Os fenômenos observados não foram replicáveis à vontade. “Em diferentes ocasiões, os sujeitos tentavam repetir uma experiência que tiveram e geralmente achavam isso muito difícil, se não impossível. De fato, essas tentativas foram consideradas uma interferência no processo de concentração.”
O fenômeno mais significativo para nós também é o mais interessante para Deikman, pois é o primeiro dos fenômenos individuais discutidos no primeiro relatório: a “experiência de imersão” do Sujeito A, que “desde o início relatou alterações surpreendentes em sua percepção do vaso e em sua relação com ele.”
Todos os sujeitos de Deikman relataram que o vaso perdeu sua solidez e limites rígidos, tornando-se mais fluido e sem forma; contudo, paradoxalmente, isso fez parecer algo ainda mais vívido e real para eles. Os sujeitos costumavam usar o termo "sentimento" para descrever essas experiências, ou seja, não toque ou emoção, "mas sim uma percepção que não pode ser localizada nas rotas perceptivas habituais de visão, audição e coisas semelhantes". Os fenômenos observados não foram replicáveis à vontade. “Em diferentes ocasiões, os sujeitos tentavam repetir uma experiência que tiveram e geralmente achavam isso muito difícil, se não impossível. De fato, essas tentativas foram consideradas uma interferência no processo de concentração.”
O fenômeno mais significativo para nós também é o mais interessante para Deikman, pois é o primeiro dos fenômenos individuais discutidos no primeiro relatório: a “experiência de imersão” do Sujeito A, que “desde o início relatou alterações surpreendentes em sua percepção do vaso e em sua relação com ele.”
“Um
dos pontos dos quais me lembro mais intensamente é quando realmente
comecei a sentir, você sabe, quase como se o azul e eu estivéssemos
fundindo, ou aquele vaso e eu. Quase
fiquei com medo a ponto de me reavivar
de alguma forma disso... Era como se tudo estivesse meio que se
fundindo e eu estivesse de alguma forma perdendo meu senso de
consciência.” Essa experiência de ‘imersão’ era
característica de todas as suas sessões de meditação, mas ela
logo se familiarizou e deixou de descrevê-la como algo notável.
Após a sexta sessão, ela relatou, ‘A certa altura, parecia...
como se o vaso estivesse na minha cabeça e não lá fora: eu sei que
estava lá fora, mas parecia que era quase uma parte de mim.’ ‘Acho
que quase senti naquele momento como, você sabe, a imagem está
realmente em mim, não está lá fora.’ Esse fenômeno de
‘internalização perceptiva’ não se repetiu, embora ela
afirmasse que esperava que isso acontecesse.
Nas sessões posteriores, o Sujeito A descreveu um “filme de azul” - mais tarde, uma “névoa” e depois “um mar de azul” - que se desenvolveu à medida que os limites do vaso se dissolviam, cobrindo a mesa em que estava o vaso e a parede atrás dele, dando a todos uma cor azul. Ela sentiu uma certa ansiedade na qual “esse [mar azul] perdeu seus limites e eu também podia perder os meus... Eu estava nadando em um mar azul e senti por um momento que iria me afogar...” A ansiedade dela parece semelhante àquela frequentemente experimentada pelos estudantes zen imediatamente antes da autorrealização. A solução zen é "deixar ir" e se fundir com o mar, que é a morte do ego que leva à iluminação. Deikman acrescenta: “apesar da ansiedade que ocasionou, ela sentiu que a experiência era muito desejável”. Deikman menciona uma sessão posterior, realizada após o final da série experimental, na qual o Sujeito A “relatou que um azul difuso ocupava todo o campo visual e que ela se sentia fundida completamente com essa difusão,”
Nas sessões posteriores, o Sujeito A descreveu um “filme de azul” - mais tarde, uma “névoa” e depois “um mar de azul” - que se desenvolveu à medida que os limites do vaso se dissolviam, cobrindo a mesa em que estava o vaso e a parede atrás dele, dando a todos uma cor azul. Ela sentiu uma certa ansiedade na qual “esse [mar azul] perdeu seus limites e eu também podia perder os meus... Eu estava nadando em um mar azul e senti por um momento que iria me afogar...” A ansiedade dela parece semelhante àquela frequentemente experimentada pelos estudantes zen imediatamente antes da autorrealização. A solução zen é "deixar ir" e se fundir com o mar, que é a morte do ego que leva à iluminação. Deikman acrescenta: “apesar da ansiedade que ocasionou, ela sentiu que a experiência era muito desejável”. Deikman menciona uma sessão posterior, realizada após o final da série experimental, na qual o Sujeito A “relatou que um azul difuso ocupava todo o campo visual e que ela se sentia fundida completamente com essa difusão,”
O
segundo artigo de Deikman relata outro exemplo de "quebra na
distinção de auto-objeto":
Era também como se estivéssemos juntos, você sabe, em vez de ser uma mesa e um vaso e eu, meu corpo e a cadeira, tudo se dissolvia em um pacote de algo que tinha... uma grande quantidade de energia, mas que não se transforma em nada, mas parece apenas uma força.
O Sujeito B no primeiro estudo experimentou uma sequência diferente de percepções que Deikman descreve como "desdiferenciação" e depois "transformação". Olhando pela janela após sua sexta sessão, ele não conseguiu organizar suas impressões visuais:
Não sei como descrever, está espalhado. As coisas parecem espalhadas por todo o conjunto, não estando juntas de forma alguma. Quando olho para o fundo, há muita coisa em primeiro plano que está chamando minha atenção... [mais tarde:] A exibição não se organizou de forma alguma. Durante muito tempo, resistiu à minha tentativa de organizá-la para que eu pudesse falar sobre isso. Não havia planos, um atrás do outro. Não houve resposta a certos padrões. Tudo estava funcionando com a mesma intensidade... Eu não vi a ordem ou algo assim e não pude impor, resistiu à minha imposição de padrão.
Deikman comenta que essa descrição "sugere que a experiência resultou de uma desautomatização das estruturas que normalmente fornecem a organização visual de uma paisagem (30 a 50 pés)." Mas durante a sessão do dia seguinte, a percepção da paisagem do Sujeito B "pode ser denominada ‘transfigurada’". Ele mencionou muito poucos objetos ou detalhes, mas falou em termos de prazer, luminescência e belos movimentos. Por exemplo:
Era também como se estivéssemos juntos, você sabe, em vez de ser uma mesa e um vaso e eu, meu corpo e a cadeira, tudo se dissolvia em um pacote de algo que tinha... uma grande quantidade de energia, mas que não se transforma em nada, mas parece apenas uma força.
O Sujeito B no primeiro estudo experimentou uma sequência diferente de percepções que Deikman descreve como "desdiferenciação" e depois "transformação". Olhando pela janela após sua sexta sessão, ele não conseguiu organizar suas impressões visuais:
Não sei como descrever, está espalhado. As coisas parecem espalhadas por todo o conjunto, não estando juntas de forma alguma. Quando olho para o fundo, há muita coisa em primeiro plano que está chamando minha atenção... [mais tarde:] A exibição não se organizou de forma alguma. Durante muito tempo, resistiu à minha tentativa de organizá-la para que eu pudesse falar sobre isso. Não havia planos, um atrás do outro. Não houve resposta a certos padrões. Tudo estava funcionando com a mesma intensidade... Eu não vi a ordem ou algo assim e não pude impor, resistiu à minha imposição de padrão.
Deikman comenta que essa descrição "sugere que a experiência resultou de uma desautomatização das estruturas que normalmente fornecem a organização visual de uma paisagem (30 a 50 pés)." Mas durante a sessão do dia seguinte, a percepção da paisagem do Sujeito B "pode ser denominada ‘transfigurada’". Ele mencionou muito poucos objetos ou detalhes, mas falou em termos de prazer, luminescência e belos movimentos. Por exemplo:
...
o edifício é uma coisa
muito branca...
um tipo de luminescência que os campos têm e as árvores estão
realmente balançando, é muito bom... inclinam-se
e se retornam
como
com
um bom movimento de mola...
... É uma percepção cheia de luz e movimento, que são muito agradáveis. Ninguém sabe quão bom é o dia, exceto eu.
O sujeito B acrescentou mais tarde: “Estava chegando a mim em certo sentido, eu não estava me observando assistindo... a antítese de ser autoconsciente.”
Ao avaliar esses resultados, Deikman considera uma série de hipóteses que podem ser propostas para explicar os fenômenos: projeção, estado hipnagógico, hipnose, tradução sensorial, privação sensorial e sugestão inconsciente (mas “os fenômenos notáveis relatados foram bastante inesperados para o experimentador”). Ele os rejeita em favor da "des-automatização":
Hartmann explica o conceito de automatização da seguinte forma: “Em empreendimentos bem estabelecidos, eles (aparelhos motores) funcionam automaticamente: a integração dos sistemas somáticos envolvidos na ação é automatizada, assim como a integração dos atos mentais individuais envolvidos nela. Com o aumento do exercício da ação, seus passos intermediários desaparecem da consciência... não apenas o comportamento motor, mas a percepção e o pensamento também mostram automação.” “É óbvio que a automatização pode ter vantagens econômicas em poupar a atenção da catexia [N.T. a concentração de energia mental em uma pessoa, ideia ou objeto em particular (especialmente em um grau doentio).] em particular e da simples catexia da consciência em geral…” “... des-automatização é a anulação da automatização, presumivelmente reaplicando ações e percepções com atenção.
A isso pode ser adicionado o resumo de Deikman das implicações do primeiro experimento.
... É uma percepção cheia de luz e movimento, que são muito agradáveis. Ninguém sabe quão bom é o dia, exceto eu.
O sujeito B acrescentou mais tarde: “Estava chegando a mim em certo sentido, eu não estava me observando assistindo... a antítese de ser autoconsciente.”
Ao avaliar esses resultados, Deikman considera uma série de hipóteses que podem ser propostas para explicar os fenômenos: projeção, estado hipnagógico, hipnose, tradução sensorial, privação sensorial e sugestão inconsciente (mas “os fenômenos notáveis relatados foram bastante inesperados para o experimentador”). Ele os rejeita em favor da "des-automatização":
Hartmann explica o conceito de automatização da seguinte forma: “Em empreendimentos bem estabelecidos, eles (aparelhos motores) funcionam automaticamente: a integração dos sistemas somáticos envolvidos na ação é automatizada, assim como a integração dos atos mentais individuais envolvidos nela. Com o aumento do exercício da ação, seus passos intermediários desaparecem da consciência... não apenas o comportamento motor, mas a percepção e o pensamento também mostram automação.” “É óbvio que a automatização pode ter vantagens econômicas em poupar a atenção da catexia [N.T. a concentração de energia mental em uma pessoa, ideia ou objeto em particular (especialmente em um grau doentio).] em particular e da simples catexia da consciência em geral…” “... des-automatização é a anulação da automatização, presumivelmente reaplicando ações e percepções com atenção.
A isso pode ser adicionado o resumo de Deikman das implicações do primeiro experimento.
O
procedimento de meditação descrito neste relatório produz
alterações na percepção visual das propriedades sensoriais e
formais do objeto, e alterações nos limites do ego - tudo na
direção da fluidez e quebra da
diferenciação sujeito-objeto
usual.
Os fenômenos são consistentes com as hipóteses de que, através da
meditação contemplativa, a des-automatização ocorre e permite uma
experiência perceptiva e cognitiva diferente... A des-automatização
é aqui concebida como permitindo ao adulto alcançar uma nova e
fresca
percepção do mundo, libertando-o de uma organização estereotipada
criada ao longo dos anos e permitindo que funções sintéticas e
associativas adultas acessem materiais novos, para criar com eles em
uma nova maneira que representa um avanço no funcionamento mental...
A luta pela percepção criativa em todos os campos pode ser
considerada como o esforço para des-automatizar as estruturas
psíquicas que organizam a cognição e a percepção.
Em seu segundo estudo, Deikman conclui:
Se, como as evidências indicam, nossa passagem da infância para a vida adulta é acompanhada por uma organização do mundo perceptivo e cognitivo que tem como preço a seleção de alguns estímulos em exclusão de outros, é bem possível que uma técnica possa ser encontrada para reverter ou desfazer temporariamente a automatização que restringiu nossa comunicação com a realidade à percepção ativa de apenas um pequeno segmento dela. Esse processo de des-automatização pode então ser seguido por uma consciência de aspectos da realidade que antes não estavam disponíveis para nós.
Se a automatização fornece um relato satisfatório do processo perceptivo, a alegação de Merleau-Ponty e Heidegger de que o que ouvimos imediatamente é uma motocicleta acaba se mostrando não apenas consistente, mas mesmo implícita, na alegação de que a percepção nirvikalpa é não dual. Da perspectiva do não-dualista, é necessariamente verdade no mundo quotidiano fenomenal que não distinguimos entre o som e o objeto visual, pois isso faz parte do que entendemos por avidya (ilusão [N.T. delusão, ignorância]) da percepção dualista. Então, a diferença entre os epistemologistas não dualistas e a maioria dos ocidentais não está na natureza da experiência fenomenal construída pelo pensamento, mas naquilo ao que leva a des-automatização (se isso é possível) - se a uma sensação meramente inexprimível de nenhum interesse ou a outro modo de perceber que revela algo de outro modo esquecido sobre a natureza da percepção sensorial. O experimento de Deikman sugere o último.
Grande parte da filosofia ocidental do século XX tem se preocupado com esse problema. Por exemplo, Husserl percebeu que toda a nossa experiência explícita de objetos dá como garantido um "background [fundo] não pensado" de práticas e relações com outros objetos - um "horizonte básico" - por assim dizer - e Wittgenstein veio à mesma conclusão sobre o funcionamento da linguagem. A resposta usual é sintetizada pela tentativa de Husserl de analisar fenomenologicamente esse horizonte, que, por mais compreensível que seja o esforço, equivaleria a trazer esse pano de fundo para o primeiro plano, uma façanha não menos extraordinária do que levitar puxando os cadarços de alguém. Para as tradições não dualistas, essa abordagem analítica é auto-destrutiva, uma vez que a tentativa de captar esse pano de fundo objetivamente também hipostatiza o sujeito em seu ato de constituir o objeto. Dessa maneira, nunca seremos capazes de experimentar o fundamento não-dual subjacente a ambos. Mas, se o "fundo não pensado" já foi "pensado" - se esse horizonte é um conjunto sedimentado de crenças, inferências, práticas e assim por diante, que antes estavam conscientes – então, a possibilidade des-automatização abre uma abordagem completamente diferente. Novamente, a melhor maneira de resolver o problema não é lógica, mas experimentalmente.
Em seu segundo estudo, Deikman conclui:
Se, como as evidências indicam, nossa passagem da infância para a vida adulta é acompanhada por uma organização do mundo perceptivo e cognitivo que tem como preço a seleção de alguns estímulos em exclusão de outros, é bem possível que uma técnica possa ser encontrada para reverter ou desfazer temporariamente a automatização que restringiu nossa comunicação com a realidade à percepção ativa de apenas um pequeno segmento dela. Esse processo de des-automatização pode então ser seguido por uma consciência de aspectos da realidade que antes não estavam disponíveis para nós.
Se a automatização fornece um relato satisfatório do processo perceptivo, a alegação de Merleau-Ponty e Heidegger de que o que ouvimos imediatamente é uma motocicleta acaba se mostrando não apenas consistente, mas mesmo implícita, na alegação de que a percepção nirvikalpa é não dual. Da perspectiva do não-dualista, é necessariamente verdade no mundo quotidiano fenomenal que não distinguimos entre o som e o objeto visual, pois isso faz parte do que entendemos por avidya (ilusão [N.T. delusão, ignorância]) da percepção dualista. Então, a diferença entre os epistemologistas não dualistas e a maioria dos ocidentais não está na natureza da experiência fenomenal construída pelo pensamento, mas naquilo ao que leva a des-automatização (se isso é possível) - se a uma sensação meramente inexprimível de nenhum interesse ou a outro modo de perceber que revela algo de outro modo esquecido sobre a natureza da percepção sensorial. O experimento de Deikman sugere o último.
Grande parte da filosofia ocidental do século XX tem se preocupado com esse problema. Por exemplo, Husserl percebeu que toda a nossa experiência explícita de objetos dá como garantido um "background [fundo] não pensado" de práticas e relações com outros objetos - um "horizonte básico" - por assim dizer - e Wittgenstein veio à mesma conclusão sobre o funcionamento da linguagem. A resposta usual é sintetizada pela tentativa de Husserl de analisar fenomenologicamente esse horizonte, que, por mais compreensível que seja o esforço, equivaleria a trazer esse pano de fundo para o primeiro plano, uma façanha não menos extraordinária do que levitar puxando os cadarços de alguém. Para as tradições não dualistas, essa abordagem analítica é auto-destrutiva, uma vez que a tentativa de captar esse pano de fundo objetivamente também hipostatiza o sujeito em seu ato de constituir o objeto. Dessa maneira, nunca seremos capazes de experimentar o fundamento não-dual subjacente a ambos. Mas, se o "fundo não pensado" já foi "pensado" - se esse horizonte é um conjunto sedimentado de crenças, inferências, práticas e assim por diante, que antes estavam conscientes – então, a possibilidade des-automatização abre uma abordagem completamente diferente. Novamente, a melhor maneira de resolver o problema não é lógica, mas experimentalmente.
Por definição, a não-dualidade escapa ao
principal problema da maioria das teorias ocidentais da percepção:
como posso ter conhecimento das coisas
se essas coisas estiverem separadas da minha mente. Por
exemplo, o realismo direto, que afirma que percebemos imediatamente
objetos físicos, não pode explicar como o sujeito (entendido como
mental) pode alcançar algo fora dele e completamente independente
dele. Também não pode explicar erros e ilusões - por que algumas
percepções são verídicas e outras não, como o
prato pode ser redondo
e oval. A ilusão não é um problema para o não-dualista, pois a
percepção do nirvikalpa
não é verídica nem não-verídica; como o dado dos sentidos, isso
não pode parecer outra coisa senão aquilo
que é. Questões de erro e ilusão surgem
apenas com a determinação savikalpa
- isto é, no mundo fenomenal.
O realismo representativo e as teorias causais batem no mesmo ponto: tendo colocado um calço entre o que é realmente experimentado e o objeto representado ou causando a experiência, eles não podem, posteriormente, preencher essa lacuna para estabelecer a existência independente de objetos percebidos. A não dualidade, conforme desenvolvida neste capítulo, pode ser vista como uma teoria "idealista" da percepção, pois nega a existência de objetos independentes da mente. Mas devemos lembrar de distinguir essa não-dualidade do idealismo subjetivo, o que reduz o objeto ao sujeito, enquanto nossa teoria da não-dualidade nega tanto uma quanto a outra. É tão errado dizer que o objeto está "na mente" quanto dizer que a consciência reside "em" todos os objetos físicos. [N.T. Esta última seria a ideia do Pampsiquismo defendido por David Chalmers, enquanto a visão que afirma que a consciência não reside nos objetos físicos se refere ao Panespiritismo de Steve Taylor] Portanto, o idealismo subjetivo não é um rótulo melhor que o realismo. Penso que a percepção não-dual é melhor entendida como uma versão do fenomenalismo: se aceitarmos que (como o Mahayana insiste) o vazio não existe à parte da forma, haverá apenas aparências não-duais.
Tendo chegado a essa conclusão, apresso-me a acrescentar que a não dualidade deve ser diferenciada de outros fenomenalismos (por exemplo, da teorias dos dados dos sentidos) que tomam como garantida uma compreensão ingênua do sujeito. Apesar de Hume, a maioria das versões tende a questionar apenas o status ontológico do objeto e falha em perceber que, na percepção, a natureza do observador é igualmente problemática. Por esse motivo, a teoria não dualista da percepção evita algumas das dificuldades que assolam outros relatos fenomenalistas. Um bom exemplo é a questão do solipsismo: a visão de que nada existe além do eu - que, portanto, só pode ter consciência de sua própria experiência - é um problema que espreita todas as teorias que negam a objetividade. Tradicionalmente, argumentar pelo solipsismo equivale a levar um xequemate no xadrez, mas o não dualista escapa da armadilha do xeque. Como o idealismo subjetivo, o fenomenalismo parece implicar solipsismo porque isola o observador desconstruindo outros seres sencientes em seus próprios dados sensoriais. Mas tal redução não é censurável ao não-dualista, pois o sujeito também é desconstruído em "dados do sentido". Isso evita o problema de todos os dados da consciência se tornarem privados: eu posso ser o único no universo, mas somente porque eu sou o universo.
O fenomenalista também deve responder a perguntas difíceis sobre o status dos “dados sensoriais” não mediados que se acredita que o “eu” “tenha”. Eles são físicos ou mentais? Espaciais e temporais? Quanto tempo eles duram? A resposta não dualista é que essas perguntas pressupõem que existem "coisas" como "dados dos sentidos", mas entendê-las como algo apresentado a um sujeito significa que a percepção do nirvikalpa já foi processada na savikalpa objetivada. Algo sobre a percepção não-dual é sempre indeterminável pela análise intelectual, pois o pressuposto de todas essas análises é a necessidade dualística de objetivar o que, neste caso, não pode ser apreendido objetivamente. Uma pergunta que é significativa é se as percepções não-duais são físicas ou mentais. A resposta não dualista é que elas não podem existir porque são anteriores à bifurcação ilusória da mente da matéria, o que sugere comparações com o "monismo neutro" de William James e Bertrand Russell.
Uma terceira e mais contemporânea objeção ao fenomenalismo transforma a afirmação ontológica do fenomenalista em uma tese conceitual sobre a linguagem. Como (de acordo com o argumento) não podemos determinar empiricamente a natureza da percepção, o que está em jogo deve ser o que queremos dizer quando falamos de objetos físicos. O fenomenalismo torna-se então a afirmação de que declarações sobre objetos físicos são (ou deveriam ser) conjuntos de afirmações condicionais sobre “o que veríamos se…” Mas é impossível converter declarações sobre objetos físicos em hipotéticas sem perder uma parte importante do significado. A resposta não-dualista a isso é, em primeiro lugar, que o fenomenalismo não-dualista nas tradições asiáticas é uma afirmação que pode ser e é estabelecida empiricamente toda vez que alguém se torna iluminado. A não dualidade não é uma teoria sobre a linguagem, mas sobre como o mundo é experimentado sem as superposições da linguagem. Segundo, pode ser prontamente concedido que nossas crenças normais sobre objetos físicos se estendem além de qualquer tradução em percepções não-duais, pois essa crença adicional na auto-existência do objeto percebido (e do percebedor) constitui a ilusão que precisa ser superada.
O realismo representativo e as teorias causais batem no mesmo ponto: tendo colocado um calço entre o que é realmente experimentado e o objeto representado ou causando a experiência, eles não podem, posteriormente, preencher essa lacuna para estabelecer a existência independente de objetos percebidos. A não dualidade, conforme desenvolvida neste capítulo, pode ser vista como uma teoria "idealista" da percepção, pois nega a existência de objetos independentes da mente. Mas devemos lembrar de distinguir essa não-dualidade do idealismo subjetivo, o que reduz o objeto ao sujeito, enquanto nossa teoria da não-dualidade nega tanto uma quanto a outra. É tão errado dizer que o objeto está "na mente" quanto dizer que a consciência reside "em" todos os objetos físicos. [N.T. Esta última seria a ideia do Pampsiquismo defendido por David Chalmers, enquanto a visão que afirma que a consciência não reside nos objetos físicos se refere ao Panespiritismo de Steve Taylor] Portanto, o idealismo subjetivo não é um rótulo melhor que o realismo. Penso que a percepção não-dual é melhor entendida como uma versão do fenomenalismo: se aceitarmos que (como o Mahayana insiste) o vazio não existe à parte da forma, haverá apenas aparências não-duais.
Tendo chegado a essa conclusão, apresso-me a acrescentar que a não dualidade deve ser diferenciada de outros fenomenalismos (por exemplo, da teorias dos dados dos sentidos) que tomam como garantida uma compreensão ingênua do sujeito. Apesar de Hume, a maioria das versões tende a questionar apenas o status ontológico do objeto e falha em perceber que, na percepção, a natureza do observador é igualmente problemática. Por esse motivo, a teoria não dualista da percepção evita algumas das dificuldades que assolam outros relatos fenomenalistas. Um bom exemplo é a questão do solipsismo: a visão de que nada existe além do eu - que, portanto, só pode ter consciência de sua própria experiência - é um problema que espreita todas as teorias que negam a objetividade. Tradicionalmente, argumentar pelo solipsismo equivale a levar um xequemate no xadrez, mas o não dualista escapa da armadilha do xeque. Como o idealismo subjetivo, o fenomenalismo parece implicar solipsismo porque isola o observador desconstruindo outros seres sencientes em seus próprios dados sensoriais. Mas tal redução não é censurável ao não-dualista, pois o sujeito também é desconstruído em "dados do sentido". Isso evita o problema de todos os dados da consciência se tornarem privados: eu posso ser o único no universo, mas somente porque eu sou o universo.
O fenomenalista também deve responder a perguntas difíceis sobre o status dos “dados sensoriais” não mediados que se acredita que o “eu” “tenha”. Eles são físicos ou mentais? Espaciais e temporais? Quanto tempo eles duram? A resposta não dualista é que essas perguntas pressupõem que existem "coisas" como "dados dos sentidos", mas entendê-las como algo apresentado a um sujeito significa que a percepção do nirvikalpa já foi processada na savikalpa objetivada. Algo sobre a percepção não-dual é sempre indeterminável pela análise intelectual, pois o pressuposto de todas essas análises é a necessidade dualística de objetivar o que, neste caso, não pode ser apreendido objetivamente. Uma pergunta que é significativa é se as percepções não-duais são físicas ou mentais. A resposta não dualista é que elas não podem existir porque são anteriores à bifurcação ilusória da mente da matéria, o que sugere comparações com o "monismo neutro" de William James e Bertrand Russell.
Uma terceira e mais contemporânea objeção ao fenomenalismo transforma a afirmação ontológica do fenomenalista em uma tese conceitual sobre a linguagem. Como (de acordo com o argumento) não podemos determinar empiricamente a natureza da percepção, o que está em jogo deve ser o que queremos dizer quando falamos de objetos físicos. O fenomenalismo torna-se então a afirmação de que declarações sobre objetos físicos são (ou deveriam ser) conjuntos de afirmações condicionais sobre “o que veríamos se…” Mas é impossível converter declarações sobre objetos físicos em hipotéticas sem perder uma parte importante do significado. A resposta não-dualista a isso é, em primeiro lugar, que o fenomenalismo não-dualista nas tradições asiáticas é uma afirmação que pode ser e é estabelecida empiricamente toda vez que alguém se torna iluminado. A não dualidade não é uma teoria sobre a linguagem, mas sobre como o mundo é experimentado sem as superposições da linguagem. Segundo, pode ser prontamente concedido que nossas crenças normais sobre objetos físicos se estendem além de qualquer tradução em percepções não-duais, pois essa crença adicional na auto-existência do objeto percebido (e do percebedor) constitui a ilusão que precisa ser superada.
O problema dos
órgãos dos sentidos
Janelas
escura
da alma
desta vida
Distorcem os céus de polo a polo
E levam você a acreditar em uma mentira
Quando você vê com, não através do olho
Que nasceu em uma noite para perecer em uma noite
Quando a alma dormiu nos raios de luz
William Blake, The Everlasting gospel
Uma dificuldade para o fenomenalismo a que a não dualidade não escapa é a explicação dos processos causais aparentemente envolvidos na fisiologia da percepção. Quando os objetos físicos são desconstruídos em sensações (ou feixes), a experiência parece fragmentada: os objetos de luz nesta sala persistem apenas enquanto há cognição "deles" e desaparecem imediatamente quando minha cabeça vira para o outro lado – para reaparecer quando eu voltar. Para evitar essa implausibilidade, os fenomenalistas algumas vezes postulam o que Bertrand Russell chamou de sensibilia - “objetos que têm o mesmo status metafísico e físico que os dados dos sentidos, sem necessariamente serem dados para qualquer mente” - que Russell de uma só vez, considerou ser “os constituintes supremos da matéria”. Sensibilia de algum tipo está implícita na afirmação não dualista de que os objetos são auto-luminosos. Mas se a sensibilia não dual é auto-luminosa, por que os órgãos dos sentidos são necessários? E é difícil negar a necessidade deles: se alguém não tem olhos, não consegue enxergar, dualmente ou não-dualmente.
Essa objeção é óbvia demais para ter sido negligenciada. Embora a resposta não-dualista esteja implícita em tudo o mais discutido neste capítulo, ela ainda é um choque, revelando mais claramente do que qualquer outra coisa como a percepção não-dualista é estranha, não apenas para a epistemologia ocidental, mas para todo o nosso senso comum. O não dualista faz o sacrifício e nega que os processos fisiológicos sejam causas de percepções. Mais insignificantes, os órgãos dos sentidos não são mais necessários para a percepção do que os objetos dos sentidos, porque ambos são shunya. Como o Sutra do Coração diz, “não há... olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo ou mente.” Uma exposição e defesa filosófica dessa visão é encontrada no terceiro capítulo do Mulamadhyamikakarika, onde Nagarjuna refuta a realidade dos órgãos dos sentidos, dos objetos sensoriais e do ato de percepção, demonstrando a relatividade entre eles. Como todos eles são shunya, acreditar que percebemos com os órgãos dos sentidos é uma ilusão. Em vez de rejeitar tal conclusão de imediato como um absurdo (e, no primeiro encontro, poderia parecer menos para Nagarjuna e seus contemporâneos), devemos considerar se nossa compreensão habitual da fisiologia da percepção realmente prova o dualismo, ou se esse entendimento é a ilusão que perpetua nosso senso de dualismo.
Para começar, lembremo-nos de que, na percepção não dual, não há consciência de que se está vendo com os olhos ou ouvindo com os ouvidos. De acordo com o nono quadro da Doma do Touro, a percepção de uma pessoa iluminada é “como se fosse cega e surda” no sentido de que “ela se absorve tão inconscientemente no que vê e ouve que sua visão não é visível e sua audição é sem audição.” Estar simultaneamente consciente do órgão dos sentidos significaria que a atenção é dividida; portanto, a experiência é dualística e o objeto da Luz (por exemplo) não pode ser completamente auto-luminoso. Essa visão é igualmente agradável tanto para o Mahayana quanto para o Advaita, mas o Advaita quer, de maneira compreensível, distinguir entre essa experiência transcendental e nossa percepção usual, na qual a consciência dos sentidos depende do contato entre órgão e objeto. Mas a única maneira de evitarmos dividir a experiência em dois tipos radicalmente diferentes, separando o samsara do nirvana, é fazer uma afirmação extraordinária de que, na verdade, ainda não percebemos com os órgãos dos sentidos.
Como alguém se atreve a sugerir uma coisa dessas? O ponto crucial é que a necessidade dos olhos para a percepção visual (por exemplo) não é algo imediatamente experimentado (nirvikalpa), mas é uma inferência (daí a savikalpa) - por mais inevitável que essa inferência possa ser toda vez que fecho os olhos. Wittgenstein fez uma afirmação semelhante no Tractatus:
Distorcem os céus de polo a polo
E levam você a acreditar em uma mentira
Quando você vê com, não através do olho
Que nasceu em uma noite para perecer em uma noite
Quando a alma dormiu nos raios de luz
William Blake, The Everlasting gospel
Uma dificuldade para o fenomenalismo a que a não dualidade não escapa é a explicação dos processos causais aparentemente envolvidos na fisiologia da percepção. Quando os objetos físicos são desconstruídos em sensações (ou feixes), a experiência parece fragmentada: os objetos de luz nesta sala persistem apenas enquanto há cognição "deles" e desaparecem imediatamente quando minha cabeça vira para o outro lado – para reaparecer quando eu voltar. Para evitar essa implausibilidade, os fenomenalistas algumas vezes postulam o que Bertrand Russell chamou de sensibilia - “objetos que têm o mesmo status metafísico e físico que os dados dos sentidos, sem necessariamente serem dados para qualquer mente” - que Russell de uma só vez, considerou ser “os constituintes supremos da matéria”. Sensibilia de algum tipo está implícita na afirmação não dualista de que os objetos são auto-luminosos. Mas se a sensibilia não dual é auto-luminosa, por que os órgãos dos sentidos são necessários? E é difícil negar a necessidade deles: se alguém não tem olhos, não consegue enxergar, dualmente ou não-dualmente.
Essa objeção é óbvia demais para ter sido negligenciada. Embora a resposta não-dualista esteja implícita em tudo o mais discutido neste capítulo, ela ainda é um choque, revelando mais claramente do que qualquer outra coisa como a percepção não-dualista é estranha, não apenas para a epistemologia ocidental, mas para todo o nosso senso comum. O não dualista faz o sacrifício e nega que os processos fisiológicos sejam causas de percepções. Mais insignificantes, os órgãos dos sentidos não são mais necessários para a percepção do que os objetos dos sentidos, porque ambos são shunya. Como o Sutra do Coração diz, “não há... olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo ou mente.” Uma exposição e defesa filosófica dessa visão é encontrada no terceiro capítulo do Mulamadhyamikakarika, onde Nagarjuna refuta a realidade dos órgãos dos sentidos, dos objetos sensoriais e do ato de percepção, demonstrando a relatividade entre eles. Como todos eles são shunya, acreditar que percebemos com os órgãos dos sentidos é uma ilusão. Em vez de rejeitar tal conclusão de imediato como um absurdo (e, no primeiro encontro, poderia parecer menos para Nagarjuna e seus contemporâneos), devemos considerar se nossa compreensão habitual da fisiologia da percepção realmente prova o dualismo, ou se esse entendimento é a ilusão que perpetua nosso senso de dualismo.
Para começar, lembremo-nos de que, na percepção não dual, não há consciência de que se está vendo com os olhos ou ouvindo com os ouvidos. De acordo com o nono quadro da Doma do Touro, a percepção de uma pessoa iluminada é “como se fosse cega e surda” no sentido de que “ela se absorve tão inconscientemente no que vê e ouve que sua visão não é visível e sua audição é sem audição.” Estar simultaneamente consciente do órgão dos sentidos significaria que a atenção é dividida; portanto, a experiência é dualística e o objeto da Luz (por exemplo) não pode ser completamente auto-luminoso. Essa visão é igualmente agradável tanto para o Mahayana quanto para o Advaita, mas o Advaita quer, de maneira compreensível, distinguir entre essa experiência transcendental e nossa percepção usual, na qual a consciência dos sentidos depende do contato entre órgão e objeto. Mas a única maneira de evitarmos dividir a experiência em dois tipos radicalmente diferentes, separando o samsara do nirvana, é fazer uma afirmação extraordinária de que, na verdade, ainda não percebemos com os órgãos dos sentidos.
Como alguém se atreve a sugerir uma coisa dessas? O ponto crucial é que a necessidade dos olhos para a percepção visual (por exemplo) não é algo imediatamente experimentado (nirvikalpa), mas é uma inferência (daí a savikalpa) - por mais inevitável que essa inferência possa ser toda vez que fecho os olhos. Wittgenstein fez uma afirmação semelhante no Tractatus:
Onde
no mundo se encontra um sujeito metafísico?
Você dirá que isso é exatamente como o caso do olho e do campo visual. Mas realmente você não vê o olho.
E nada no campo visual permite inferir que é visto por um olho.
É claro que Wittgenstein não está argumentando em favor da percepção não-dual, mas sua citação pode, no entanto, lançar luz sobre a refutação peculiar de Nagarjuna das faculdades dos sentidos: “A visão (darshana) não se vê. Como pode algo que não se vê ver outras coisas?” Esse argumento estranho está aberto a várias interpretações, talvez nenhuma das quais seja imediatamente convincente. A resposta óbvia é que é apenas porque o olho não se vê que pode ver outras coisas - uma objeção que Nagarjuna imediatamente considera. Mas acho que Wittgenstein aponta para o que Nagarjuna está alcançando: como o olho não se vê vendo outras coisas, como sabemos que vemos com o olho? É circular tornar a minha visão dependente do meu olho, quando a conclusão de que vejo com o meu olho é uma inferência dependente da minha visão. Nunca podemos ver imediatamente que é o olho que está vendo, mas apenas inferi-lo de várias maneiras (por exemplo, olhando no espelho). Por mais automatizada que seja essa inferência básica, ainda assim nada mais é do que uma construção de pensamento savikalpa. Esse argumento também implica algo mais importante para o não dualista: que nunca tivemos nenhuma experiência sensorial dualista. O senso de dualidade só pode ser construído por pensamento justapondo uma experiência não-dual (por exemplo, uma abertura dos olhos) com outra (a experiência de um objeto de luz auto-luminoso).
Então, “transcender” todas as determinações savikalpa é também “transcender” os órgãos dos sentidos, mas - não podemos parar ainda - transcender os órgãos dos sentidos se torna equivalente a transcender completamente a percepção dos sentidos. Nossa compreensão da percepção dos sentidos é tão relativa aos órgãos dos sentidos e aos objetos dos sentidos que, se esses forem completamente negados, o conceito de percepção perde todo o significado. A percepção assim inflada torna-se a percepção negada: se existe o que pode ser chamado apenas de percepção (sem objetos e órgãos dos sentidos), então não existe percepção, e nunca houve.
Embora não exista um ser por causa do conhecimento apenas da percepção, através desse conhecimento de que não há objeto, a “somente percepção” também é refutada. Quando não há ser (de um objeto), a percepção não é possível; portanto, são semelhantes dessa maneira. (Vasubandhu)
Você dirá que isso é exatamente como o caso do olho e do campo visual. Mas realmente você não vê o olho.
E nada no campo visual permite inferir que é visto por um olho.
É claro que Wittgenstein não está argumentando em favor da percepção não-dual, mas sua citação pode, no entanto, lançar luz sobre a refutação peculiar de Nagarjuna das faculdades dos sentidos: “A visão (darshana) não se vê. Como pode algo que não se vê ver outras coisas?” Esse argumento estranho está aberto a várias interpretações, talvez nenhuma das quais seja imediatamente convincente. A resposta óbvia é que é apenas porque o olho não se vê que pode ver outras coisas - uma objeção que Nagarjuna imediatamente considera. Mas acho que Wittgenstein aponta para o que Nagarjuna está alcançando: como o olho não se vê vendo outras coisas, como sabemos que vemos com o olho? É circular tornar a minha visão dependente do meu olho, quando a conclusão de que vejo com o meu olho é uma inferência dependente da minha visão. Nunca podemos ver imediatamente que é o olho que está vendo, mas apenas inferi-lo de várias maneiras (por exemplo, olhando no espelho). Por mais automatizada que seja essa inferência básica, ainda assim nada mais é do que uma construção de pensamento savikalpa. Esse argumento também implica algo mais importante para o não dualista: que nunca tivemos nenhuma experiência sensorial dualista. O senso de dualidade só pode ser construído por pensamento justapondo uma experiência não-dual (por exemplo, uma abertura dos olhos) com outra (a experiência de um objeto de luz auto-luminoso).
Então, “transcender” todas as determinações savikalpa é também “transcender” os órgãos dos sentidos, mas - não podemos parar ainda - transcender os órgãos dos sentidos se torna equivalente a transcender completamente a percepção dos sentidos. Nossa compreensão da percepção dos sentidos é tão relativa aos órgãos dos sentidos e aos objetos dos sentidos que, se esses forem completamente negados, o conceito de percepção perde todo o significado. A percepção assim inflada torna-se a percepção negada: se existe o que pode ser chamado apenas de percepção (sem objetos e órgãos dos sentidos), então não existe percepção, e nunca houve.
Embora não exista um ser por causa do conhecimento apenas da percepção, através desse conhecimento de que não há objeto, a “somente percepção” também é refutada. Quando não há ser (de um objeto), a percepção não é possível; portanto, são semelhantes dessa maneira. (Vasubandhu)
Então,
terminamos com o que foi negado no início: a
necessidade de transcender a percepção. Mas
nossa rota tem sido atrasada; por essa razão, a maneira de
transcender a percepção é tornar-se ela
não-dualisticamente.
Não devemos negar a percepção em benefício de outra faculdade
(por exemplo, intuição), mas perceber que o que entendemos como
percepção (o ato de relação entre órgão dos sentidos e objeto
dos sentidos) é de fato algo muito diferente. Em outras palavras, o
que transcende a percepção nada mais é do que a verdadeira
natureza da própria percepção.
O que essa percepção/não percepção não-dual nos deixa? De acordo com o Mahayana e o Advaita, o mundo é maya porque é como sonhos e um show de mágica. Conforme o Sutra do Diamante conclui:
Todos os fenômenos são como um sonho
Uma ilusão, uma bolha e uma sombra,
Como orvalho e raios.
Assim, você deve meditar sobre eles.
Outros textos Prajñaparamita comparam a percepção a uma miragem, pois nada é criado ou destruído. Tudo, sonhos, miragens e maya têm todas as mesmas características de parecer diferentes do que são, de nos apresentar algo que parece real quando é realmente shunya. Enquanto dormimos, podemos sonhar que estamos “em um corpo” e usando seus órgãos sensoriais, mas eles não são realmente necessários para a experiência do sonho. Se isso também fosse verdade para as nossas vidas "acordadas", explicaria a afirmação não dualista de que o universo é a Mente. Também é consistente com os exercícios de visualização no budismo tibetano Vajrayana. É comum meditar primeiro em um objeto físico (por exemplo, uma divindade representada na mandala em um thangka) e depois desenvolver a capacidade de visualizá-lo em detalhes na mente. A iluminação ocorre quando o aluno percebe que o objeto físico no mundo visual e o objeto mentalmente visualizado em sua mente não são essencialmente diferentes um do outro. A percepção não dual, ao refutar a auto-existência dos objetos de Luz, implica que o objeto físico não é mais real do que o visualizado. Negar a base da objetividade remove nossas bases para distinguir uma da outra: de acordo com nossas simpatias, isso é um absurdo auto-refutador ou aponta para a raiz do dualismo sujeito-objeto, mente-corpo: a aguda, mas ilusória distinção que fazemos entre objetos físicos e eventos mentais. Talvez os objetos materiais sejam apenas pensamentos que foram concretizados de alguma maneira. Tais especulações dificilmente são originais, mas a afirmação da percepção não-dual nos dá um modo diferente de abordagem a eles.
No entanto, seguir muito essa lógica e negar completamente o papel dos órgãos dos sentidos seria unilateral, para dizer o mínimo. Como o Advaita, o Budismo também enfatiza a necessidade fenomenal dos órgãos dos sentidos (samvriti,“verdade menor”). A doutrina da pratitya-samutpada (origem interdependente), que explica todos os fenômenos relacionando-os em um continuum causal, identifica a sensação como o efeito do contato entre órgão dos sentidos e objeto. O problema crucial passa a ser, então, como entender a conexão entre essas relações de verdade inferior, causa e efeito e a verdade superior ao se afirmar que a experiência não-dual é incondicionada (nirvikalpa, tathata) sem bifurcar os dois como o Advaita faz. Expressa dessa maneira, a questão se torna parte da questão maior da causalidade.
O que essa percepção/não percepção não-dual nos deixa? De acordo com o Mahayana e o Advaita, o mundo é maya porque é como sonhos e um show de mágica. Conforme o Sutra do Diamante conclui:
Todos os fenômenos são como um sonho
Uma ilusão, uma bolha e uma sombra,
Como orvalho e raios.
Assim, você deve meditar sobre eles.
Outros textos Prajñaparamita comparam a percepção a uma miragem, pois nada é criado ou destruído. Tudo, sonhos, miragens e maya têm todas as mesmas características de parecer diferentes do que são, de nos apresentar algo que parece real quando é realmente shunya. Enquanto dormimos, podemos sonhar que estamos “em um corpo” e usando seus órgãos sensoriais, mas eles não são realmente necessários para a experiência do sonho. Se isso também fosse verdade para as nossas vidas "acordadas", explicaria a afirmação não dualista de que o universo é a Mente. Também é consistente com os exercícios de visualização no budismo tibetano Vajrayana. É comum meditar primeiro em um objeto físico (por exemplo, uma divindade representada na mandala em um thangka) e depois desenvolver a capacidade de visualizá-lo em detalhes na mente. A iluminação ocorre quando o aluno percebe que o objeto físico no mundo visual e o objeto mentalmente visualizado em sua mente não são essencialmente diferentes um do outro. A percepção não dual, ao refutar a auto-existência dos objetos de Luz, implica que o objeto físico não é mais real do que o visualizado. Negar a base da objetividade remove nossas bases para distinguir uma da outra: de acordo com nossas simpatias, isso é um absurdo auto-refutador ou aponta para a raiz do dualismo sujeito-objeto, mente-corpo: a aguda, mas ilusória distinção que fazemos entre objetos físicos e eventos mentais. Talvez os objetos materiais sejam apenas pensamentos que foram concretizados de alguma maneira. Tais especulações dificilmente são originais, mas a afirmação da percepção não-dual nos dá um modo diferente de abordagem a eles.
No entanto, seguir muito essa lógica e negar completamente o papel dos órgãos dos sentidos seria unilateral, para dizer o mínimo. Como o Advaita, o Budismo também enfatiza a necessidade fenomenal dos órgãos dos sentidos (samvriti,“verdade menor”). A doutrina da pratitya-samutpada (origem interdependente), que explica todos os fenômenos relacionando-os em um continuum causal, identifica a sensação como o efeito do contato entre órgão dos sentidos e objeto. O problema crucial passa a ser, então, como entender a conexão entre essas relações de verdade inferior, causa e efeito e a verdade superior ao se afirmar que a experiência não-dual é incondicionada (nirvikalpa, tathata) sem bifurcar os dois como o Advaita faz. Expressa dessa maneira, a questão se torna parte da questão maior da causalidade.
O
problema que enfrentamos ao tentar entender o papel dos órgãos dos
sentidos não pode ser distinguido da dificuldade mais geral de
entender filosoficamente a percepção não-dual. Como nossa
compreensão usual da experiência é dualista,
podemos "pensar" na não-dualidade apenas de uma de duas
maneiras incompatíveis. Ou concebemos a consciência materialmente,
como residindo pampsiquicamente
em objetos físicos, ou idealmente reduzimos o objeto a uma imagem
"na mente". É a primeira concepção, na qual o objeto de
alguma forma incorpora a consciência, que vacila diante dos
processos causais dos órgãos dos sentidos. A segunda concepção,
ao explicar os órgãos dos sentidos também como experiência mental
objetivada, reduz os órgãos dos sentidos materiais a percepções
mentais que não são mais privilegiadas do que qualquer outra
percepção, escapando assim à dificuldade. Isso não quer dizer que
a segunda concepção seja válida, enquanto a primeira não. Ambos
são inadequados porque são baseados em categorias dualistas de
entendimento, que infelizmente a filosofia não pode esperar escapar
completamente. Mas a segunda concepção
parece lançar mais luz sobre esse problema. [N.T.
a visão do panespiritismo,
segundo a qual a consciência não está nos objetos físicos, nem
exclusivamente na mente, mas que tudo tem consciência, mas não é
necessariamente consciente, parece uma alternativa nesta
argumentação] Como a maioria das
respostas filosóficas, ela também levanta outra questão: se é
verdade que os órgãos dos sentidos não são necessários, por que
eles se materializaram? O que causou sua objetificação?
Concluímos oferecendo uma resposta especulativa para essa pergunta.
O problema dos órgãos dos sentidos poderia ser ignorado até agora, porque a abordagem usada foi quase completamente "mentalista", a segunda das duas concepções acima. É a construção do pensamento que transforma o nirvikalpa em percepção savikalpa, e assim por diante. Mas mesmo uma análise puramente mentalista pode ser acusada de considerar um dualismo mente-corpo do tipo cartesiano (agora senso comum), pois os pontos de partida idealista e materialista pressupõem o próprio dualismo que tentam eliminar. Como o parágrafo anterior implica, esse dualismo mental - físico é um corolário do sujeito - a dualidade do objeto sendo negada. A alegação de não dualidade do objeto é mais consistente com diferentes abordagens do problema da mente e do corpo, como o monismo neutro de James e Russell ou a teoria dos dois aspectos de Spinoza, segundo a qual mente e corpo são aspectos diferentes da mesma substância. A adoção de uma abordagem de aspecto duplo exigiria que considerássemos o processo de construção e projeção do pensamento do lado material. Tem um correlato físico?
O homem não tem um Corpo distinto de sua Alma; pois isso, o chamado Corpo é uma parte da Alma discernida pelos cinco sentidos, as principais entradas da Alma nesta era. (William Blake)
Concluímos oferecendo uma resposta especulativa para essa pergunta.
O problema dos órgãos dos sentidos poderia ser ignorado até agora, porque a abordagem usada foi quase completamente "mentalista", a segunda das duas concepções acima. É a construção do pensamento que transforma o nirvikalpa em percepção savikalpa, e assim por diante. Mas mesmo uma análise puramente mentalista pode ser acusada de considerar um dualismo mente-corpo do tipo cartesiano (agora senso comum), pois os pontos de partida idealista e materialista pressupõem o próprio dualismo que tentam eliminar. Como o parágrafo anterior implica, esse dualismo mental - físico é um corolário do sujeito - a dualidade do objeto sendo negada. A alegação de não dualidade do objeto é mais consistente com diferentes abordagens do problema da mente e do corpo, como o monismo neutro de James e Russell ou a teoria dos dois aspectos de Spinoza, segundo a qual mente e corpo são aspectos diferentes da mesma substância. A adoção de uma abordagem de aspecto duplo exigiria que considerássemos o processo de construção e projeção do pensamento do lado material. Tem um correlato físico?
O homem não tem um Corpo distinto de sua Alma; pois isso, o chamado Corpo é uma parte da Alma discernida pelos cinco sentidos, as principais entradas da Alma nesta era. (William Blake)
Assim
que fazemos a pergunta dessa maneira, algo se encaixa. Pois, e se os
órgãos dos sentidos não funcionarem para condicionar as sensações?
Pensar que os órgãos dos sentidos devem meramente receber sensações
passivamente, e que a construção do pensamento ocorre apenas no
cérebro, é uma suposição que, embora profundamente enraizada,
parece pressupor alguma forma de dualismo mente-corpo. Um relato de
duplo aspecto de Spinozan levanta a possibilidade de que nossos
órgãos dos sentidos sejam objetivações de nossa prapañca
- de nossas tendências a sensações de condição de pensamento.
Isso é consistente com a visão do budismo tibetano, segundo a qual
o corpo é entendido como o que poderia ser chamado de potencial
de
karma materializado e os órgãos dos
sentidos são aquelas partes do corpo em que esses samskaras
(tendências cármicas) tendem a se
concentrar.
Isso não significa que os samskaras
sejam fixos, tanto para o corpo quanto para a mente, mas sugere que
vikalpa e
prapañca
podem estar mais profundamente arraigados e mais difíceis de superar
do que uma análise puramente mentalista sugere
- assim como a concepção Advaita de maya
como avidya
materializada sugere.
Se essa especulação estiver correta, então, conforme o órgão dos sentidos muda, o mundo muda. “A alteração dos olhos altera tudo... A luz do sol quando ele a desdobra depende do órgão que a contempla.” Essa afirmação não é original de Blake, mas faz parte da tradição Neoplatônica:
Pois é preciso vir à vista com um poder de ver semelhante e gostar do que é visto. Nenhum olho sequer viu o sol sem se tornar semelhante ao sol, nem uma alma pode ver a beleza sem se tornar bonita. (Plotinus)
Essa crença é consistente com a ênfase tântrica no corpo como meio de libertação, como microcosmo do macrocosmo. O Buda disse que o mundo inteiro está neste corpo de uma braça de comprimento. Mais recentemente, Merleau-Ponty argumentou que o corpo humano e o mundo percebido formam um único sistema de relações intencionais, que experimentar um é experimentar o outro, e que a presença do corpo no mundo é o que permite que as coisas existam. Em outras palavras, uma compreensão não dualista da percepção também parece implicar a não dualidade do corpo e da mente.
Se essa especulação estiver correta, então, conforme o órgão dos sentidos muda, o mundo muda. “A alteração dos olhos altera tudo... A luz do sol quando ele a desdobra depende do órgão que a contempla.” Essa afirmação não é original de Blake, mas faz parte da tradição Neoplatônica:
Pois é preciso vir à vista com um poder de ver semelhante e gostar do que é visto. Nenhum olho sequer viu o sol sem se tornar semelhante ao sol, nem uma alma pode ver a beleza sem se tornar bonita. (Plotinus)
Essa crença é consistente com a ênfase tântrica no corpo como meio de libertação, como microcosmo do macrocosmo. O Buda disse que o mundo inteiro está neste corpo de uma braça de comprimento. Mais recentemente, Merleau-Ponty argumentou que o corpo humano e o mundo percebido formam um único sistema de relações intencionais, que experimentar um é experimentar o outro, e que a presença do corpo no mundo é o que permite que as coisas existam. Em outras palavras, uma compreensão não dualista da percepção também parece implicar a não dualidade do corpo e da mente.
Nota do Tradutor: N.T. Fenomenalismo é a visão de que objetos físicos não existem como coisas em si, mas só como fenômenos perceptivos ou estímulos sensórios situados no tempo e no espaço. O termo deriva do adjetivo fenomenal, e não do substantivo fenômeno. Trata-se de uma posição que defende que tudo tem o caráter de fenômeno. Tendemos a pressupor que as outras coisas, por exemplo os objetos materiais, existem para lá destes dados imediatos. Pontos de vista fenomenalistas, como os que foram propostos por Carnap e Ayer, as nossas crenças e afirmações sobre as coisas só podem fazer sentido se forem redutíveis a crenças ou afirmações sobre os dados sensíveis. John Stuart Mill havia sugerido uma análise de conceito de objeto material como o conceito de uma possibilidade permanente de experiências sensíveis. Isto implica que crenças e afirmações sobre objetos materiais podem ser reduzidas a crenças e afirmações em termos de dados sensíveis, de tal modo que a tese de Mill pode também ser apropriadamente descrita como fenomenalista. Fonte: https://educalingo.com/pt/dic-pt/fenomenalismo
Sobre
o autor
David Robert
Loy é
professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de
Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um
professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e
Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia,
Existencialismo e Budismo" [Lack
and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy,
Existentialism, and Buddhism]
e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada"
[Nonduality: A
Study in Comparative Philosophy],
além de vários artigos. (www.davidloy.org)