terça-feira, 18 de junho de 2019

Meditação Gradual X Meditação Direta

Por Paulo Stekel


O paradoxo da liberdade

Gradualismo ou método direto? O que parece funcionar melhor em meditação? O método gradualista subentende fases, níveis, estágios, enquanto o método direto subentende apontar o caminho e seguir direto, sem escalas. O segundo método é o do não-dualismo.

Em seu livro “Despertar – Um guia para a espiritualidade sem religião” (Companhia das Letras, 2015), o filósofo e neurocientista Sam Harris (já citado na postagem sobre os efeitos da meditação no cérebro: https://novodharma.blogspot.com/2019/02/a-meditacao-e-seus-efeitos-no-cerebro.html) diz que o objetivo crucial da espiritualidade é a libertação da ilusão do self. Contudo:

(…) buscar essa liberdade, como se ela fosse um estado futuro a ser alcançado por meio de esforço, é reiterar os grilhões do nosso aparente cativeiro a cada instante.”

Há, então, um paradoxo. Há duas formas tradicionais para solucionar este paradoxo. A primeira, o Gradualismo, é definida por Harris como a solução que desconsidera o paradoxo e adota:

(…) várias técnicas de meditação na esperança de que haja uma evolução. Algumas pessoas parecem consegui-lo, mas muitas fracassam. É verdade que, nesse meio tempo, acontecem coisas boas: podemos nos tornar mais felizes e mais concentrados. Mas também podemos perder a esperança em todo o projeto. As palavras dos sábios podem começar a soar como promessas vãs, e ficamos apenas no aguardo de experiências transcendentes que nunca chegam ou que são apenas temporárias. (…) Experiências culminantes são ótimas, mas a liberdade verdadeira precisa coincidir com a vida normal de quando estamos acordados.”

A forma tradicional não-gradual, direta, súbita, é definida por Harris como a que reconhece o paradoxo da busca espiritual por completo e admite que todos os esforços estão fadados a fracassar:

(…) porque a ânsia por alcançar a autotranscendência ou qualquer outra experiência mística é um sintoma da própria doença que desejamos curar. Não se pode fazer nada a não ser desistir da busca.”

Em seguida, especifica em quais tradições ambas as formas são encontradas:

O caminho da ascensão gradual é típico do budismo Teravada, assim como a maioria das outras técnicas de meditação da tradição indiana. E o gradualismo é o ponto de partida natural para qualquer busca, espiritual ou não. Esses modos de prática orientada para um objetivo têm a virtude de poderem ser ensinados com facilidade, uma vez que o indivíduo pode iniciá-los sem ter nenhum conhecimento fundamental da natureza da consciência ou do caráter ilusório do self. Basta que ele adote novos padrões de atenção, pensamento e comportamento, e o caminho se abrirá à sua frente.

Em contraste, o caminho da realização súbita pode parecer invariavelmente íngreme. Muitos o descrevem como ‘não-dualista’, porque ele se recusa a validar o ponto de vista a partir do qual uma pessoa meditaria ou faria qualquer outra prática espiritual. A consciência já é livre de qualquer coisa que se assemelhe remotamente a um self – e não existe nada que você, como um ego ilusório, possa fazer para compreendê-lo. Essa perspectiva pode ser encontrada na tradição indiana do Advaita Vedanta e em algumas escolas do budismo.

Em geral, quem inicia na linha do gradualismo supõe que o objetivo da autotranscendência está distante e pode passar anos sem notar justo a liberdade que anseia por compreender.”

Uma Atenção Plena Não Dualista

Quando Harris critica a visão dualista do gradualismo em meditação, esclarece que o principal problema é o reforço da noção de um self que, na verdade, é inexistente. Então:

A atenção plena dualista – prestar atenção na respiração, por exemplo – ocorre em geral com base numa ilusão: a pessoa sente que é um sujeito, um lócus de consciência dentro da cabeça, capaz de, estrategicamente, prestar atenção na respiração ou em algum outro objeto em razão do bem que isso lhe fará. Trata-se de gradualismo na ação. No entanto, de um ponto de vista não dualista, poderíamos do mesmo modo ter uma atenção plena voltada diretamente para a ausência do self. Só que, para tanto, é preciso reconhecer que é assim que a consciência é – e esse insight pode ser difícil de alcançar. Contudo, ele não requer que a pessoa atinja a cessação por meio da meditação. (…) Por que não atingir esse estado mental de modo direto?”

Na verdade, a consciência não está sempre atrelada aos sentidos. Acima desta, existe uma “consciência pura”, desvinculada dos sentidos físicos, algo em que a Ciência moderna ainda não acredita. Mas, os Advaitas e os praticantes de Dzogchen acreditam.

Harris: “Todo o Advaita pode ser sintetizado em uma série de afirmações simples e possíveis de serem testadas: a consciência é a condição prévia de toda experiência; o self ou ego é uma aparência ilusória dentro dela; se você procurar com atenção o que chama de ‘eu’, o sentimento de ser um self distinto desaparecerá; o que resta, por experiência, é um campo de consciência – livre, indivisa e intrinsecamente não contaminada por seus conteúdos sempre mutáveis.”

Contudo, quando o Advaita é comparado com o Dzogchen (os ensinamentos budistas mais parecidos com este), há uma divergência no tocante à prática do insight, como esclarece Harris:

As duas tradições procuram provocar o mesmo insight sobre a não dualidade da consciência, mas, de modo geral, só o Dzogchen deixa absolutamente claro que é preciso praticar esse insight até atingir a estabilidade, e que é possível fazê-lo sem sucumbir ao empenho dualista que assombra a maioria dos outros caminhos.”

Neste sentido, Harris diz que é fácil nos iludirmos pensando que os avanços alcançados pelas técnicas Advaita são permanentes, e que mestres Advaita (como H. W. L. Poonja, um discípulo de Ramana Maharshi) por vezes garantem que todos os avanços de seus alunos são permanentes.

Harris: “Já os ensinamentos do Dzogchen deixavam claro que pensar sobre o que existe além do pensamento continua a ser pensar, e um vislumbre da ausência de self em geral é apenas o começo de um processo que precisa alcançar a realização. Ser capaz de ficar absolutamente livre do sentido de self é o começo, não o fim, da jornada espiritual.”

Fazendo do objetivo o caminho

O Dzogchen (tradução tibetana da expressão sânscrita “Mahasandhi”, Grande Perfeição), uma prática não-dualista tibetana, tem como uma de suas únicas instruções formais o “apontar”, quando o professor comunica diretamente ao aluno a experiência da autotranscendência.

Harris: “A prática do Dzogchen requer que a pessoa seja capaz de experimentar, a cada momento, a ausência intrínseca de self que acontece quando estamos atentos (isto é, não distraídos por pensamentos). Isso quer dizer que, para um meditador da tradição Dzogchen, atenção plena tem de ser sinônimo de dissipar a ilusão do self. Em vez de ensinar uma técnica de meditação – por exemplo, ficar atento à respiração -, um mestre Dzogchen deve precipitar um insight com base no qual o aluno pode, a partir de então, praticar uma forma de rigpa [consciência desnuda e inteiramente no aqui e agora] livre do dualismo sujeito/objeto. Assim, muitas vezes se diz que, no Dzogchen, o praticante ‘faz do objetivo o caminho’, porque estar livre do self, que, em outras circunstâncias, é o objetivo da busca, é justo aquilo que se pratica. O objetivo no Dzogchen, se é que podemos usar esse termo, é ganhar cada vez mais familiaridade com esse modo de estar no mundo.”

Na verdade, as derivações, fixações e devaneios da mente são os principais obstáculos à meditação.
E, o gradualismo não consegue trabalhar com isso sem reforçar ainda mais a mente de self ilusória.

Harris: “A meditação [não dual] não exige a supressão desses pensamentos, mas requer que os notemos quando surgem e que os reconheçamos como aparições transitórias na consciência. Em termos subjetivos, você é a própria consciência – você não é a imagem evanescente ou a série de palavras que vai surgir logo a seguir na sua mente. No entanto, se não notar o surgimento do pensamento seguinte, ele parecerá se tornar o que você é. (…) a verdadeira meditação não é um esforço para produzir um dado estado mental – como a felicidade suprema, ou imagens visuais incomuns, ou amor por todos os seres sencientes. Métodos assim também existem, mas servem a uma função mais limitada. O propósito mais profundo da meditação é reconhecer o que é comum a todos os estados da experiência, agradável ou desagradável. O objetivo é perceber as qualidades que são intrínsecas à consciência em cada momento presente, independentemente do que surgir para ser notado.”

Mas, há um grande segredo neste processo, e Harris o revela: “(…) é importante distinguir entre aceitar sensações e emoções desagradáveis como uma estratégia – enquanto, lá no fundo, você espera que elas desapareçam – e aceitá-las de verdade como aparições transitórias na consciência. Somente a segunda alternativa abre a porta para a sabedoria e a mudança duradoura.”

Então, o paradoxo se revela: podemos ser mais sábios e melhores em nossas vidas sendo diferentes de como éramos no passado; mas, precisamos relaxar e aceitar as coisas como verdadeiramente são no agora, enquanto procuramos mudar a nós mesmos.




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