terça-feira, 26 de novembro de 2019

Cabala Luriânica

Por Jay Michaelson (tradução do artigo publicado no site Learn Kabbalah – https://learnkabbalah.com, feita por Paulo Stekel, sob autorização expressa do autor)


O rabino Isaac Luria (1534-1572) está entre os cabalistas mais influentes e notáveis de todos os tempos. Chamado ARI, ou Leão Sagrado (o nome é um acrônimo para Elohi Rabbi Isaac, ou Piedoso Rabbi Isaac), ele está mais associado ao renascimento da Cabala que ocorreu em Tsfat, uma pequena cidade no norte de Israel que é até os dias de hoje um centro de misticismo judaico. No entanto, o Ari viveu em Tsfat apenas por dois anos, e a maioria de seus ensinamentos é conhecida apenas através dos escritos de seus discípulos. Ele era uma figura notável, considerada como um ser quase angélico por seus contemporâneos, e universalmente reconhecido como um gênio, tanto de Cabala quanto do judaísmo não místico.

Luria nasceu em Jerusalém, mas foi criad
o no Egito. Reconhecido desde cedo como um adepto da lei judaica, passou vários anos estudando o Talmude. Lá pelos seus vinte anos, no entanto, se mudou para uma ilha isolada no Nilo a fim de se concentrar no estudo da Cabala, particularmente do Zohar. Pouco se sabe desse tempo na vida de Luria. Ele visitava sua esposa e família apenas no Shabat e falava com eles apenas em hebraico. Ele acreditava estar conversando com Elias, o profeta, e com falecidos mestres da Cabala. Durante uma dessas conversas, Elias disse-lhe para se mudar para Israel e estudar com o rabino Moses Cordovero. Luria fez isso em 1569.

Cordovero morreria no ano seguinte e Luria dois anos depois. No entanto, a influência do Ari foi imediata. Considerado uma figura santa, ele freq
uentemente se comunicava com as almas dos tzaddikim (justos) que partiram e compunha poemas místicos elaborados - os únicos trabalhos conhecidos por serem de autoria do próprio Ari. Foi um período de grande fermento místico em Tsfat. O Kabbalah Shabbat, agora praticado em todo o mundo judaico, foi criado, e o rabino Shlomo Alkabetz escreveu o Lecha Dodi. Os exilados da Espanha construíram um novo centro de aprendizado judaico e se consolaram com os temas do exílio na Cabala, que eles aprimoraram em seus novos escritos. (O próprio Ari era descendente asquenazita, embora seja associado frequentemente com exilados espanhóis como Cordovero.)

A
Cabala Luriânica (Kabbalat HaAri) é, em grande parte, uma elaboração de certos temas a partir das partes posteriores do Zohar. Ainda assim, expõe esses temas de um modo que geralmente é considerado, por estudiosos e cabalistas, como o seu próprio ramo da Cabala. Hoje sua doutrina mais conhecida é a da criação do mundo, que é vista como desdobrando-se em um processo constituído de três partes: Tzimtzum, a retirada do Infinito para “dar espaço” ao finito; Shevirah, a “quebra dos vasos” na qual a luz infinita foi derramada; e Tikkun, o reparo contínuo desses vasos. Essa doutrina é altamente mítica; é uma narrativa, não uma teoria. No entanto, é também extremamente complexa, cheio de especulações místicas sobre como o tsimtzum ocorreu, quais eram as falhas dos "vasos" e uma infinidade de outros detalhes. No entanto, para todos os aspectos míticos da teoria, isso pode explicar um aspecto muito básico da vida: que, embora Deus preencha o universo, o mundo geralmente parece estar quebrado.

É fácil estabelecer uma conexão entre o foco no rompimento do mundo e o rompimento do mundo dos cabalistas, após a expulsão espanhola. Seguindo
Gershom Scholem, muitos estudiosos sugeriram exatamente essa conexão. No entanto, a situação histórica real era bastante sutil, e a própria literatura cabalística parece mais ocupada com exílio, ruptura e retorno cósmicos do que com suas reflexões no plano mundano. Ainda hoje, essas ideias ressoam com aqueles que veem o Holocausto sob uma luz semelhante e se inspiram no grande trabalho de Tikkun Olam, ou em reparar o mundo. Para o Ari e seus associados, Tikkun Olam é efetuado pelas mitzvot (Mandamentos) e por intenções específicas que os acompanham. Hoje, no entanto, a palavra é frequentemente usada para denotar atos de justiça e bondade. E embora Tikkun Olam seja uma inovação do Século XVI, às vezes é descrito como o principal objetivo da vida judaica: reparar o mundo.

Nesse processo, as intenções precisas, ou
kavanot, são essenciais. Muitos judeus estão familiarizados com a palavra kavanah, que significa intenção - orar com kavanah é orar como você quer, com foco e intenção. As Kavanot são um pouco mais complicadas; são intenções específicas, não gerais; elas são como uma tecnologia cósmica. Toda mitzvá (Mandamento) tem um significado místico, em seus detalhes precisos. E toda oração corresponde a um aspecto diferente do Divino. Aprender todos esses detalhes e cumprir Mandamentos com a intenção correta - essa é a tarefa do cabalista e o caminho para a redenção.

Há um maravilhoso ensinamento hassídico de que o Ari forneceu todas as chaves de todas as fechaduras do céu - mas hoje, depois de termos perdido as chaves, estamos tentando arrombar a porta. Essa é a diferença entre a Cabala Lurianica e o Hassidismo em poucas palavras: a primeira fornece as chaves certas para mil bloqueios diferentes, e a segunda usa força emocional em vez de intenção mental calibrada.

Assim como os estudiosos vincularam a doutrina da
Cabala Luriânica ao passado recente da expulsão espanhola, eles também a vincularam ao fervoroso messianismo dos séculos XVI e XVII, que culminou no movimento de massas de Sabbetai Tzvi, uma figura messiânica que na época do auge de sua popularidade tinha mais de um terço da comunidade judaica europeia como seus seguidores. Como antes, há verdade nessas teorias, embora a situação seja mais complexa do que possa parecer à primeira vista. Claramente, o Ari e seus seguidores se viam trazendo redenção - o próprio Ari era visto como uma figura proto-messiânica, e seu discípulo principal, rabino Hayim Vital, também se via dessa maneira. E o principal advogado de Sabbetai Tzvi, o rabino Nathan de Gaza, usou ideias luriânicas para justificar o novo Messias. Mas havia muitos outros fatores também, inclusive as tremendas revoltas e massacres do século XVII, que, muito mais do que as teorias cabalísticas das elites, eram um fenômeno de massa. Para traçar um paralelo mais recente, a Cabala de Rav Kook claramente desempenhou um papel na criação do sionismo religioso - mas o Holocausto provavelmente importou mais e para mais pessoas.

A Kabbalat HaAri está hoje entre os ramos mais complicados e inacessíveis da Cabala. Muito pouco da literatura foi traduzida para o inglês, e muitas vezes é tão ornamentada que, mesmo com a experiência adequada no Zohar, é difícil de entender. Etz Hayim, de Hayim Vital, é provavelmente a sistematização mais amplamente aceita da Cabala Luriânica, e traduções da literatura Luriânica estão em andamento. (A antologia popular da “Cabala Safediana” contém principalmente práticas ascéticas e pietistas, que eram centrais ao movimento, mas periféricas às suas ideias teológicas. O “Médico da Alma”, de Lawrence Fine, é um excelente retrato do Ari e de seu círculo.) Um professor meu comentou que se propôs, desde cedo, a aprender a Cabala Sabática. Mas percebeu que, para fazer isso, teria que entender a Kabbalat HaAri. E, então, percebeu que, para aprender Kabbalat HaAri, realmente tinha que entender o Zohar primeiro. Então, vinte anos depois, ele ainda está aprendendo o Zohar.

Por todos os seus detalhes obscuros, no entanto, não há como negar que a Cabala Luri
ânica criou algumas das ideias e práticas cabalísticas mais familiares, inclusive Tikkun Olam e Kabbalat Shabbat. E, foi Isaac Luria, um gênio que virou eremita e que virou santo, que catalisou esta nova fase da história da Cabala. Seu túmulo em Tsfat é agora um local de peregrinação, onde velas queimam durante a noite.

Sobre o autor

Dr. Jay Michaelson é autor de seis livros e mais de trezentos artigos sobre religião, sexualidade, direito e prática contemplativa. Ph.D. em pensamento judaico pela Universidade Hebraica , é colunista do jornal The Daily Beast e do Forward. Em sua “outra” carreira, Jay é professor assistente afiliado ao Seminário Teológico de Chicago, ensina meditação em linhagens budistas theravadas e judaicas e possui ordenação rabínica não-denominacional. De 2003 a 2013, Jay foi um ativista LGBT profissional. Fundou duas organizações LGBT judaicas e apoiou o trabalho de ativistas em todo o mundo na Arcus Foundation, no Democracy Council, e seu novo projeto no Daily Beast, Quorum: Global LGBT Voices.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Uma visão Dzogchen da experiência da ausência de eu (Anatman)

Por Rudolph Bauer (artigo original em Inglês “A Dzogchen View of the Experience of Absence of Self [Anatman]”, traduzido por Paulo Stekel)

Ausência de Eu

A experiência budista de
Anatman pode ser vista de e à luz da tradição Dzogchen. Anatman é a essência dos primeiros ensinamentos budistas. Anatman é para muitos o pressuposto fundamental do budismo. Anatman significa a ausência de eu [N.T. no original em Inglês, sempre “self”). Para o budismo primitivo, há uma profunda ausência de eu nos seres humanos. Não existe um eu dentro de uma pessoa e não existe um eu como pessoa. A pessoa humana é sem-eu. E não existe um eu pessoal como seu próprio ser e nenhum ser como seu próprio ser pessoal. Não há dimensão do Ser no budismo primitivo. A pessoa humana é sem-ser e sem-eu. Todos os fenômenos são sem-ser e sem-eu.

A experiência de Anatman implica seriamente que os seres humanos não têm auto-agência e auto-ação. Tudo é determinado pelo contexto e pelas condições anteriores chamadas
originação dependente. Se não existe um eu que seja o agente da experiência, o agente da ação própria, as condições anteriores contextualizam completamente a experiência. Sem auto-presença, auto-agência não existe e auto-ação não existe? A autodeterminação não existe. Tudo é determinado pela condição anterior, pelo contexto prévio e anterior. Isso é sofrimento.

A linguagem budista
primitiva da originação dependente era uma forma antiga de causalidade, entendida como contexto sistêmico e não como uma ação causal, como na auto-intencionalidade ou na auto-manifestação. A auto-agência não pode existir sem o eu do agente? Até a palavra karma é uma função do contexto e das condições. Uma condição momentânea anterior leva à próxima condição momentânea seguinte. Toda a experiência é completamente condicionada. Uma condição é a pré-condição para a próxima condição resultante dependente subsequente. Isso é karma. E isso é sofrimento.

Portanto, a auto-agência humana só pode existir no desejo que realiza a imaginação! Essa auto-agência se torna uma função d
o simular! Essa é a simulação de “como se”. Os budistas primitivos simulam “como se tivessem auto-agência”, como se tivessem intencionalidade e “como se” tivessem auto-manifestação. Eles simulam “como se” pudessem efetuar a cessação! Você pode ser budista sem eu, e ainda assim funcionar com auto-agência, auto-manifestação, auto-intencionalidade e auto-eficácia?

Para o budismo primitivo, os seres humanos não têm um senso real de eu e para as pessoas que dizem ter um senso de eu os budistas consideram que a experiência de eu é uma ilusão ou delusão.

Quando não há personificação do eu, não há nenhuma possibilidade para a realidade da autêntica auto-experiência. Sem o eu interior, não existe um verdadeiro experimentador autêntico e existe uma ausência correspondente de auto-agência autêntica humana, auto-ação autêntica e auto-experiência. Onde não existe aut
o-experiência autêntica, não haverá expressão ética autêntica nas infinitas situações da vida humana. As condições anteriores determinam tudo. As condições anteriores determinaram a condição seguinte. A condição anterior condiciona e contextualiza completamente a condição subsequente.

O que resta é a humanidade oca completamente determinada por condições anteriores. Isso
é sofrimento. Não existe força interior na causalidade condicional sistêmica budista. Do ponto de vista do Dzogchen, no início do budismo, existia a completa ausência de “consciência luminosa” que é realmente a nossa humanidade essencial. Não há essência do coração. Para o budismo primitivo, existe apenas a mente humana que é uma sequência de funções mentais. A mente conhece coisas e seres. A mente conhece formas.

No Dzogchen, o conhecimento da consciência luminosa não é o conhecimento da mente. A luminosidade da consciência conhece a luminosidade do Ser. Esse conhecimento da consciência aberta está excluído no início do budismo, assim como a experiência do fundamento do Ser também está excluída no início do budismo. Somente a mente sabe, e a mente só sabe empiricamente. A mente conhece formas. A mente não conhece o Ser.

Somente a mente empírica existe no budismo primitivo. A mente pertence à percepção sensorial, a mente pertence à percepção empírica, e a mente é a razão empírica. Existe apenas o conhecimento da mente, e não há o conhecimento da consciência primordial como eu ou a consciência primordial como ser.

Para o budismo primitivo, existe apenas o conhecimento da mente, ou melhor, as funções da mente. No início do budismo, não há conhecimento da consciência aberta. Não existe conhecimento direto do Ser. Não há consciência aberta conhecendo nosso próprio Ser ou o Ser dos outros. A mente conhece os seres, mas não conhece o Ser dos seres.

Não há base ontológica de experiência ou fonte ontológica de experiência no budismo primitivo. Não há dimensão ontológica no budismo primitivo. Há um sofrimento de profunda ansiedade ontológica. Há o sofrimento da ausência do Ser e o sofrimento da ausência do eu. Isso é sofrimento existencial.

No início do budismo, a
realidade do eu está ausente, assim como a realidade do ser. A mente conhece os fenômenos, mas não conhece o Ser dos fenômenos. O budismo conhece o corpo, mas não conhece o Ser do corpo. O budismo primitivo conhece os seres, mas não pode conhecer o ser dos seres, incluindo o ser do próprio ser. Este é o sofrimento da ausência.

Todos os fenômenos são
sem base, sem ser e sem eu. O senso humano de eu e o senso humano de ação são fenômenos sem fundamento e sem ser, de um sem fundamento ser sem-ser. A psicologia pessoal é sem base, sem ser, sem presença. Existe apenas essa dimensão ôntica [N.T. de ou relacionada a entidades e aos fatos sobre elas; em relação ao real em oposição à existência fenomenal.] dos fenômenos, usando-se a linguagem da fenomenologia. Não existe uma dimensão ontológica dos fenômenos a ser experimentada no budismo primitivo. Não existe um ser de fenômenos. A mente conhece apenas a experiência ôntica. A experiência ôntica é a experiência da coisa e a experiência da forma sozinha.

Foi assim que o budismo primitivo entendeu o vazio da experiência, o vazio do eu e o vazio do ser. Esse vazio não é o vazio do espaço potencial do Dharmakaya. Esse vazio é simplesmente o vazio existencial da
ausência. Esse vazio da ausência é o vazio do não-ser, não-eu. Este é o vazio da ausência.

O único conhecimento para o budismo primitivo era o conhecimento da mente empírica. Nosso senso de mente é o senso dos agregados mentais na confluência do momento. Essa é uma fenomenologia materialista e uma forma de conhecimento materialista de seres humanos fragmentados.

Em termos fenomenológicos, há uma fenomenologia ôntica e não há dimensão ontológica de nossa existência.
Apenas o que você vê com sua mente é o que alcança. Buda ou Gotama falaria da angústia tanto da falta de algo externo, como da angústia da falta de algo interno. Os seres humanos sofrem com o não-eu, e sofrem com o vácuo interior da ausência do eu, e sofrem com a ausência do Ser encarnado. Essa ausência de eu é a ausência da experiência do próprio ser. Sem o sentido encarnado do eu como nosso Ser ou o sentido encarnado do Ser como nosso eu, sofremos com essa perda generalizada do Ser. Sofremos do nada. Sofremos de ausência, sofremos de vazio, sofremos de uma melancolia interminável. Sofremos com a falta de auto-eficácia.

No início do budismo, o mundo era coisas e coisa
lidades. O mundo foi reificado [N.T. tornar (algo abstrato) mais concreto ou real]. Humanos são coisas vazias. Nós somos coisas humanas vazias. O mundo é entidades vazias. Ser um ser humano é ser uma entidade vazia. Entidades são coisas com forma e configuração. As coisas são entidades com forma e configuração. Além das entidades, existe apenas o nada e o vazio do nada. As entidades estão vazias do ser.

O budismo primitivo declara que não há substância para os seres nem substância para os fenômenos e que existe apenas vazio. Esse vazio do budismo primitivo é o vazio do ser, a ausência da experiência do ser, a ausência da base do ser. Esse vazio é a ausência da presença do Ser, que é a ausência da experiência interior da Presença.

No Dzogchen, nossa experiência de presença em nosso eu e de presença em outro é a nossa experiência de eu. Nosso senso de eu é nosso senso de ser e nosso eu é nossa presença de ser em nós “como nós”. No Dzogchen, ser um humano é experimentar nosso Ser de Presença. O sentido da presença é o sentido do ser luminoso. O sentido da presença é o sentido do nosso Ser como nosso eu. O ser não é conhecido apenas pela mente. O ser é conhecido apenas através do conhecimento da consciência. O conhecimento da consciência é conhecer a fonte do nosso eu inato como Ser.

No budismo primitivo, sem nosso senso de presença, sem o senso de nosso próprio Ser, sem nosso senso de auto-agência, o que somos agora é o que fomos condicionados da condição anterior e dos momentos anteriores até o momento seguinte. No momento da morte, a qualidade da última condição de consciência pode ser seguida pelo surgimento do renascimento da consciência. Nada é transportado, absolutamente nada é transportado, não há continuidade do Ser. A nova consciência surge na dependência da consciência anterior como uma condição para o surgimento dependente da nova consciência. Não há continuidade nessa visão fragmentada e fragmentadora da experiência humana. A experiência budista primitiva de ser humano é incompleta. Esta é uma fonte de sofrimento.

No início do budismo, mesmo quando uma pessoa sente eu e auto-agência, isso é considerado uma experiência ilusória. À luz do surgimento dependente, o que está surgindo, o que quer que esteja se manifestando, é uma função da condição anterior. Verdadeiramente, uma coisa segue após outra. Uma circunstância segue após outra circunstância. Uma condição segue após uma condição anterior.

Essa visão de causalidade não é a causalidade da força intencional, ou a força dinâmica da auto-manifestação, ou a força da auto-ação, mas a contextualização sistêmica, uma condição sistêmica condiciona o próximo surgimento dependente de uma condição. Não há presença do eu, nem presença do nosso eu como nosso ser humano.

Ausência psicológica

Essa ausência de eu não é simplesmente uma ausência psicológica de eu. Essa ausência de eu não é uma simples e emocional ou afetiva ausência de eu. Essa ausência de eu não é simplesmente uma ausência cognitiva de eu. A ausência de eu não é simplesmente a falta de atenção psicológica. Essa ausência de eu não é simplesmente que nosso eu tenha se retirado profundamente para dentro de um estado esquizoide.

Esta é uma ausência ontológica de eu, a ausência do eu como Ser e, portanto, a ação autêntica no mundo é impossível. Sem auto-agência ontológica, a auto-direção autêntica não pode se manifestar. A ação própria não pode se manifestar na ausência da estrutura ontológica do eu, na ausência ontológica do eu. A ausência ontológica do eu é anterior à ausência do nosso senso psicológico do eu. O Ser da nossa mente, o Ser dos nossos pensamentos e o Ser dos nossos afetos estão ausentes. No budismo primitivo, há apenas ausência.

O budismo primitivo pensava que a maioria das pessoas imagina que sua mente é o seu eu. As pessoas ainda hoje pensam que sua mente é o seu eu. A maioria das pessoas pensa que a mente é o seu eu. Eles acham que sua mente é uma entidade. Mas, para os primeiros budistas, a mente não é eu. A mente deles não é uma entidade. No budismo primitivo, não existe base do ser e não existe base do ser para e da mente. Não há ser da mente. A mente sem Ser é vazia de ser. Não há fonte ontológica de nossa mente nem continuidade em progresso da mente. Não existe consciência aberta como eu. Não existe uma consciência aberta da auto-presença. Não existe uma consciência aberta de nosso Ser como nosso eu.

A auto-ação autêntica não pode surgir de dentro da ausência da essência da consciência interior do coração. No Dzogchen, a essência da consciência no coração interno é a fonte da consciência como conhecedor do Ser dentro de nosso eu, conhecedor do Ser nos outros e conhecedor do Ser como o universo.

Auto-Negação

A deificação budista inicial da ausência do eu nega o poder humano da auto-manifestação criativa e nosso poder humano de ação ética e proteção ética. A ausência de eu nega a presença. No Dzogchen, a presença não é simplesmente um evento psicológico, mas a nossa presença humana é a auto-manifestação do Ser “como nós” e “nós” como nossa consciência incorporada. Presença é a auto-manifestação do fundamento do Ser como nossa própria consciência. Presença é a auto-manifestação da Presença Pura de Dharmakaya. O Dharmakaya é um Ser Puro que não é um ser e que manifesta um número infinito de seres. No Dzogchen, nossa mente psicológica é a manifestação do ser. Nossa mente existe dentro do contexto de nossa presença, que é a presença do Ser.

Mar de passividade

Um domínio ético de um mar de passividade é criado pelo pensamento anatman. Para os primeiros budistas, os eventos humanos acontecem incansavelmente em função da infinidade da origem dependente e da dependência de condições auto-emergentes. Por fim, dentro dessa visão de anatman, a ação humana é não ação. A virtude da não ação ou não fazer nada é realmente o sentido do não-eu. Esse sentimento de não fazer é o sentimento de sentir os agregados de nossa mente. A mente não tem atuação. A palavra aceitação é um tipo de “ir bem”, e é um tipo de progresso, não é?

Os primeiros budistas pensam que imaginamos que nossa mente é o nosso eu, e somos uma série de funções mentais que se fundem, gerando a ideia do eu. Não há fundamento ontológico para essa experiência ideacional. De fato, o budismo primitivo não tinha senso de fundamento ontológico de nenhum fenômeno. Não havia base ontológica de fenômenos ou base ontológica de mente. A única base eram condições mentais materiais circunstanciais.

Dzogchen fenomenológico

Na linguagem do Dzogchen fenomenológico, existe o Ser. O ser que não é um ser manifesta um número infinito de seres. No Dzogchen fenomenológico, como seres humanos, experimentamos o nível ôntico da experiência e, como seres humanos, também experimentamos o nível ontológico da experiência. Esta é uma experiência simultânea. Nós podemos realmente experimentar seres e Ser. Existe o nível experiencial das coisas e formas que é o nosso nível ôntico de experiência empírica. Esse conhecimento é um senso empírico. Para os primeiros budistas, existe apenas esse conhecimento da mente e não há conhecimento direto da consciência luminosa aberta, que é a porta para experimentar o conhecimento primordial como Ser primordial.

No Dzogchen, nosso conhecimento direto da consciência aberta luminosa é a nossa porta para experimentar o conhecimento primordial como Ser primordial. Na visão do Dzogchen, temos a experiência de nossa consciência conhecendo o Ser. Ser é o nível ontológico da experiência. Podemos conhecer o Ser de nosso próprio ser e o Ser de outros seres. Podemos conhecer o ser dos fenômenos e podemos conhecer os fenômenos do Ser dentro de nós “como nós”. Isso é felicidade. Esta é a bem-aventurança do ser que vence o sofrimento. Nós somos o entrelaçamento da mente e do Ser. Esse entrelaçamento produz a experiência do eu como Ser encarnado. No Dzogchen, nosso senso de nosso Ser encarnado é nosso senso de eu. Nosso senso de nosso eu é nosso senso contínuo de nosso Ser encarnado.

A visão Dzogchen da ausência de eu

O Dzogchen tem uma visão particular e única da ausência de eu. Essa visão do Dzogchen da ausência de eu é semelhante às visões contemporâneas da fenomenologia continental e da psicologia fenomenológica existencial. Do nosso ponto de vista Dzogchen, a ausência do sentido do eu é a ausência do sentido do Ser. A ausência do sentido do Ser é a ausência do sentido do eu. Dentro da compreensão direta do Dzogchen, os seres humanos experimentam um sentido desdobrável do eu interior, que é a experiência desdobrável de nosso senso de Ser e o desdobramento e aprofundamento do sentido de nossa Seidade de Ser. “Exatamente como sou”. Ou “Exatamente como é”. Esta é a nossa experiência de essência do coração humano luminoso interior. Na psicanálise existencial contemporânea, Donald Winnicott descreve o desenvolvimento do senso de eu da criança como o desenvolvimento de uma continuidade crescente do Ser.

Experiência Onto-Cosmológica de Eu

O Dzogchen apresenta uma experiência onto-cosmológica de eu. O sentido de eu é convergente com o nosso senso de ser e nosso senso de ser é convergente com o nosso senso de eu. Nossa auto-manifestação de ação é a auto-manifestação de nosso ser luminoso no mundo. A auto-agência está dentro do reino luminoso da imanência da auto-manifestação da ação dramática pessoal de auto-manifestação do nosso Ser neste mundo. O desejo em si é o auto-surgimento de nossa auto-manifestação no mundo. Nosso sentido de eu manifesta o desejo como uma maneira de estar no mundo e gerar o mundo. Como Jacque Lacan disse uma vez ao falar na Universidade Johns Hopkins em Baltimore: “O desejo traz à tona Baltimore!”

Nosso Eu é o Sentido experimentado de Nossa Forma Pessoal de Ser

Na visão do Dzogchen, o sentido de eu não é um conceito de mente ou imagem mental do eu. O sentido de eu não é um evento conceitual. O sentido do nosso eu não é o sentido do eu como algo tal qual um objeto que nos habita. Nosso eu não está vazio nem é algo como alguns sugerem. Por vazio aqui neste contexto, vazio é nada, um vazio como falta, um vazio como ausência.

Nosso eu não é feito de coisas reificadas, como o Homem de Lata no Mágico de Oz. No entanto, a ausência de eu é oca da essência do coração, Snying Po. Nossa amada consciência interior como eu não é a posição aleatória dos agregados mentais da coisa da mente. A visão mental budista da mente dos agregados é uma mente de lata de uma pessoa de lata. Sem a consciência aberta como eu, não há personalidade. A consciência aberta é um conhecimento primordial que se manifesta como nossa própria consciência.

Nosso senso de eu não é coisa nem entidade, e nem está sendo absolutamente vago, ou absolutamente ausente ou vazio. Ser não é nem ser uma coisa, ou ser uma entidade ou ser um nada absoluto. Consciência não é uma coisa, e consciência não é uma entidade. Consciência não é não-Ser, não é a ausência do Ser. Consciência é não-coisa; consciência é conhecimento direto; consciência é gnose; consciência é jñana. A consciência aberta é a nossa abertura para o Ser.

O dilema é que, se estivermos em mente sozinhos, podemos não entender o que acabamos de dizer. Consciência não é uma coisa, consciência não é nada. Consciência é Ser e o conhecimento do Ser. Consciência é um nada que conhece o Ser. Nossa consciência não é uma coisa. Nosso conhecimento é um nada. Nossa consciência é o conhecimento de nosso ser.

Quididade e Senso de eu

Nosso senso de eu não é uma ilusão de quididade [N.T. orig. “who-ness”, a essência de uma coisa]. Nossa quididade é o conhecimento da consciência aberta, o conhecimento aberto, a abertura do Ser como nossa própria singularidade luminosa. Consciência conhece o Ser e o conhecimento do Ser é Consciência. Existe o conhecimento da mente e o conhecimento pristino [N.T. orig. “pristine”, pristino, primitivo] da consciência.

Somos um conhecedor com duas maneiras de conhecer. Essas duas maneiras de conhecer são muito distintas. Nossa mente conhece a forma e nossa consciência conhece o Ser. Nossa mente conhece os seres e nossa consciência conhece o Ser. Nossa mente conhece o ôntico e nossa consciência conhece o ontológico. Nossa mente conhece o tempo e nossa consciência conhece a atemporalidade.

Nosso sentido de eu é a realidade do nosso Ser no mundo e a manifestação da presença do nosso Ser no mundo. O mundo em si é multidimensional. O mundo em si é uma auto-manifestação do Ser “exatamente como nós somos”, uma auto-manifestação do Ser. O Ser não é um ser, e o Ser manifesta-se um número infinito de seres. O Ser auto-manifesta mundos infinitos e um número infinito de habitantes dos mundos.

Presença de Nosso Ser

Nosso Ser pessoal é a presença de nosso Ser como o Ser do mundo. Você e eu somos a auto-manifestação do Ser no mundo como seres humanos. Você e eu somos a essência do coração interior da pura consciência, o brilho luminoso do Ser. O nosso eu é a nossa continuidade progressiva do Ser luminoso, vida após vida e morte após morte.

A diferença entre Metafísica e Ontologia

Nossa mente conhece a metafísica. Nossa mente conhece a conceitualização sobre o Ser e os seres. Nossa mente conhece a ideação. Nossa mente conhece através de pensamentos, afetos e sensações. Nossa consciência conhece ontologia. Nossa consciência conhece diretamente a experiência do Ser como Ser. Experimentar o Ser e entender nossa experiência de Ser é Ontologia. Pensar no Ser é metafísica. A fenomenologia é uma experiência ontológica do conhecimento direto da transmissão do Ser e do ser dos fenômenos.

Deste modo, a ontologia fenomenológica e o Dzogchen são semelhantes na compreensão do sentido do eu como o sentido do nosso ser. A mente pensará no eu como uma coisa. A consciência compreende a experiência do Ser como minha experiência do Ser, minha auto-experiência do Ser. Minha experiência do meu Ser é a minha experiência do senso de Eu. Meu senso de eu é a minha experiência do meu ser.

Encarnação da Natureza de Buda à luz do Dzogchen

Entendemos a natureza búdica a partir da perspectiva do Dzogchen. A natureza de Buda é presença espontânea, qualidades espontâneas e não fabricadas de conhecimento direto, espaço, energia, luminosidade, compaixão e uma felicidade que não pode ser reificada. O conhecimento que nossa mente tem da forma pode ser integrado ao nosso senso de eu corporificado, à nossa percepção corporificada, ao nosso campo corporificado do Ser, ao nosso campo corporificado de conhecimento sem ser reificado.

A natureza de Buda é um conhecimento primordial luminoso, o fundamento original do Ser, o verdadeiro fundamento, usando a linguagem de Longchenpa. A natureza de Buda é a natureza do ser. O Ser não é um ser, mas o Ser manifesta um número infinito de seres. A natureza de Buda é a natureza do Ser e o Ser é a natureza de Buda. Buda não é uma pessoa.

Nosso senso de eu é nosso senso de nossa Seidade [N.T. orig. “Being-ness”, estado do ser] do nosso ser. O Ser não pode ser reificado dentro do conhecimento do nosso campo de consciência. Nosso Ser , usando a linguagem do Dzogchen, é a nossa natureza búdica. A natureza de Buda é a indivisibilidade da consciência aberta; sua extensão (dbyings); sua luminosidade e sua abertura fundamental do conhecimento primordial (Yeshe).

Entendimento de Longchenpa do Eu Onto-Cosmológico

Longchenpa escreve como é a consciência aberta (Rigpa) e como o conhecimento sobre Rigpa abre o conhecimento primordial como Yeshe. Yeshe é a dimensão expressiva e incorporada do conhecimento primordial. Ser é conhecimento primordial. O conhecimento primordial se manifesta como nossa presença e como a luminosidade natural que permeia nossa personificação e nossa mente.

Longchenpa torna claramente evidente que nosso potencial espiritual inerente já está completa e primordialmente presente dentro de nós. Longchenpa descreve o entendimento do Dzogchen de que essa quintessência espiritual é espontânea, naturalmente presente e incorporada em nós sem faltar nenhuma de suas qualidades inatas. Isso constitui a base do nosso Ser, onde o brilho se manifesta como o sol radiante. O Dzogchen é um caminho de imanência. O Dzogchen é o caminho da perfeição. O Dzogchen é o caminho do ser.

Meditação de se tornar consciente do Ser

É claro que a meditação é nos tornarmos cônscios de nossa consciência, é um processo de limpeza que revela nossa natureza permanente da consciência primordial, que é o simples fato de ocorrer a presença. A presença é uma estrutura invariante, o fluxo absoluto do Ser. Essa consciência pré-reflexiva é a presença do nosso Ser como o próprio Ser. Essa presença do Ser encarnado é o nosso sentido encarnado do eu. Experimentar a natureza de Buda é experimentar o nosso eu. Nosso senso de eu é nosso senso de Ser, e nosso senso de Ser é nossa natureza búdica. Nossa consciência é jñana e nossa consciência é gnose. E dentro de nossa consciência, experimentamos diretamente nosso eu, nosso Ser, e nosso Ser é a dimensão búdica da gnose da sabedoria. Isso é verdade para todos “exatamente como são”.

Possessividade” de nossa auto-experiência de Ser

Usando o entendimento da fenomenologia contemporânea de Michel Henri, nosso eu se refere à nossa experiência pessoal, que está intrinsecamente relacionada à experiência do nosso eu e à experiência do nosso Ser como nosso eu dentro de si.

A experiência do nosso eu é a manifestação de “Possessividade” [N.T. “mineness”]. Possessividade é nossas experiências sendo vivenciadas pela primeira pessoa que dá o que revela nossa experiência como nossa. Michel Henry chama isso de ipseidade [N.T. o caráter particular, individual, único de um ente, que o distingue de todos os outros]. Essa experiência em si não é uma experiência que cria o eu, o eu não é uma entidade psicológica. Antes, o sentido do eu é a manifestação singular do Ser como nós. A experiência do eu é a experiência do nosso próprio ser.

Experimentamos diretamente nossa compreensão fenomenológica de nós mesmos. Nosso eu não se refere a uma identidade pública, nosso eu não se refere a uma coisa, nosso eu se refere à questão da experiência. Experiência é minha experiência, experiência é sempre minha [N.T. eu a possuo, de certa forma, motivo pelo qual traduzimos “who-ness” por “possessividade”]. O eu não é algo como uma mente psicológica ou uma função da mente. Nosso eu é nossa linguagem ou nosso significante, em que a aparência aparece para si mesma como ela mesma. Nossa aparência se manifesta para si mesma. Isso também se aplica à nossa linguagem, como a linguagem dzogchen da essência do coração. Essa redação é a linguagem da minha experiência humana do Ser que aparece e se manifesta como minha experiência.

Nossa linguagem do eu é completamente auto-referencial e nosso eu não é simplesmente um conceito de intencionalidade mental, ou uma cognição mental ou ideação mental. A auto-subjetividade também não está intrinsecamente ligada a um objeto.

O nosso eu é o nosso Ser, revelando o nosso eu para o nosso eu. Para Michel Henry, nossa linguagem da nossa “possessividade” da experiência, nossa vivência da experiência reflete nossa estruturação auto-referencial de nossa experiência do ser. Nossa Existência é nosso Ser pessoal na auto-manifestação como nós para nós. Nossa continuidade progressiva do Ser é a nossa personalidade. Experimentar o nosso eu não significa experimentar algo que é chamado de nós mesmos, mas que minha experiência pessoal do meu Ser me aparece. Aparecendo, essa manifestação acontece dentro da minha perspectiva em primeira pessoa. O nosso Ser é a auto-doação do nosso Ser e essa auto-doação do nosso Ser simboliza que o nosso Ser se manifesta como nosso próprio Ser. Essa auto-manifestação do nosso próprio Ser é a lucidez da realidade da aparência do nosso Ser e a luminosidade da nossa experiência do nosso Ser.

Essa experiência do nosso ser é intrínseca e não é um objeto da observação de nossa mente. Este não é um objeto externo que aparece, mas sim o aparecimento de nossa maior consciência interior. Esta é a aparência do meu Ser em si mesmo. O eu não é um objeto, mas a personalização do próprio Ser no tempo e nesta dimensão inata da personalidade. A consciência primordial, o conhecimento primordial é completamente pessoal e é completamente a imanência da existência. Isso não é transcendental, impessoal ou não pessoal. Não há dissociação, não há distante.

Perder o sentido do pessoal dentro de nós mesmos ou dentro dos outros, é perder a bem-aventurança da auto-manifestação do Ser como nós, como você e eu.

Como Michel Henri descreve, o eu é imanente e não uma experiência transcendental. A experiência do eu está dentro do domínio da imanência e, claro, é a fonte da autenticidade. Autenticidade é a experiência da imanência.

Imanência do eu e autenticidade do eu

A experiência do nosso eu é completamente imanente em contraste com a experiência transcendente do Ser Puro. Nossa experiência de eu é imanente no campo do Ser, e nossa experiência autêntica de nossa própria manifestação é a libertação, exatamente como somos. A auto-liberação no domínio da imanência é a experiência da autenticidade de nossa auto-manifestação de que não podemos ser outros além do que somos dentro do domínio da imanência do Ser. “Eu sou quem eu sou.”

Autenticidade é a nossa experiência relacional pessoal para o nosso Ser, exatamente como é. A libertação é experimentar o meu eu, meu próprio ser em si mesmo, assim como eu sou. Nosso eu em relação ao mundo exterior não pode ser reduzido a ser outro exterior ou simplesmente ao reino interpessoal. Assim, iluminamos a experiência do nosso eu como a linguagem da nossa personificação do Ser primordial como nosso próprio Ser e a experiência do nosso próprio Ser como nosso próprio eu. Da maneira mais profunda, a incorporação de nossos dois modos de conhecimento é o meio de nossa incorporação e o meio de nossa experiência de nossa contínua progressão do eu, nossa contínua progressão do Ser.

Libertação é o amor do Ser, que é o Ser de amor como o nosso eu, e o amor do Ser como o eu do outro. Esse é o amor da auto-manifestação dos seres de Aham (eu sou) dentro de mim, e dentro, todas as infinitas manifestações são Aham. Essa auto-liberação está além do certo e do errado, do bem e do mal, do melhor e do melhor, da verdade e da falsidade. Esse espaço potencial de “eu sou” está sempre presente, sempre estará presente e é a auto-liberação através dessa experiência beatífica da existência.

Separação e divisão de Mente e Consciência

Essa divisão ou dissociação entre mente e consciência [N.T. orig. “mind” e “awareness”] é a divisão mais fundamental dentro de uma pessoa. Esta é a divisão do conhecimento da nossa mente e do conhecimento da nossa consciência. A integração natural da mente e da consciência é nossa tarefa de desenvolvimento existencial mais importante e o desenvolvimento mais importante da integração dentro de nós como seres humanos. Integrar nossa mente em nosso campo de consciência é a tarefa de desenvolvimento mais fundamental. Muitas pessoas, muitos filósofos e muitos psicólogos não conheceram esse segredo ao longo dos séculos. Esta é uma grande contribuição do Dzogchen para a experiência humana de auto-liberação.

Para muitas pessoas, existe uma grave separação entre o conhecimento da mente e o conhecimento da consciência. O conhecimento da mente conhece formas e dualidade. O conhecimento da consciência conhece Ser e não-dualidade. Essa separação limita a pessoa localizada na mente, sozinha em sua vida criativa e pessoal. Sua vida de auto-liberação não é totalmente sustentada pelo campo do Ser permeando seus fenômenos.

Quando uma pessoa está ciente da consciência, ela pode conhecer diretamente seu Ser sem forma. Isso geralmente acontece facilmente na prática da meditação. A pessoa pode experimentar seu Seidade de seu Ser. A pessoa pode experimentar a bem-aventurança do puro Ser. À medida que a pessoa deixa o estado meditativo de consciência, ela deixa de estar consciente e deixa o campo de consciência, e sua experiência sem forma de Seidade desaparece. E então, ela está sozinha na mente e, à medida que passa a vida em sua mente, o campo do Ser não é mais experimentado tão diretamente, tão completamente.

Uma pessoa não pode experimentar seu senso de Seidade plena de ausência de forma luminosa sem estar consciente. No entanto, a pessoa não pode experimentar sua forma sem estar em sua mente. A mente conhece a forma, conhece os seres e as coisas. Portanto, a pessoa não pode experimentar seu Ser de sua forma, o Ser de si mesmo sem estar em mente e consciência simultaneamente. Este estar na mente e na consciência simultaneamente é o meio de auto-liberação. Esta é a verdadeira conjunção misteriosa [N.T. orig. “Mysterious Conjunctio”].

A pessoa não pode experimentar a forma de seu Ser e o Ser de si mesmo sem estar na experiência integrada da mente e da consciência aberta. A experiência integrada da mente e da consciência aberta é o meio de auto-liberação em e através de nossas circunstâncias e eventos da vida. Esta é a essência do Dzogchen existencial. Essa é a essência da auto-liberação natural.

O nosso eu é a nossa experiência do nosso Ser como o nosso eu e a nossa forma do nosso ser como Ser. O eu é a experiência unificada de nossa forma como Ser e nosso Ser como a forma de nosso eu. Esse entendimento revela a natureza do eu. A experiência do nosso eu é a experiência do ser sem forma dentro da forma. A experiência de nosso ser sem forma como nossa forma singular. Você e eu somos Ser sem forma como uma forma. Um ser humano não é uma não-coisa sob a forma de coisa.

Síntese do Esclarecimento: Ausência de eu na visão do Dzogchen!

Esclarecimento 1. A ausência do eu (anatman) é a ausência do nosso conhecimento de nosso eu, não a ausência existencial do nosso eu como tal. A ausência do nosso eu é a ausência experiencial do nosso ser. A ausência de conhecer a nós mesmos é a ausência de conhecer nosso Ser. A ausência de conhecer nosso Ser não significa que ele não exista. Essa ausência de conhecer nosso eu como nosso Ser, significa simplesmente que nosso eu, como nosso Ser, não está sendo conhecido por nós como nós.

Experimentar nossa forma pessoal sem a experiência do Ser de nossa forma é experimentar a ausência de eu ou de Anatman. A experiência da mente conhecendo apenas a forma, sem a experiência do conhecimento da consciência do Ser, resulta no sentido da ausência do eu ou Anatman. Essa falta de experiência do eu não significa que ele não exista. Simplesmente significa que, estando apenas em nossa mente, podemos não ter a experiência direta de nosso Ser como nosso eu. Também podemos não ter a experiência do nosso eu como nosso Ser, porque não experimentamos o Ser. É preciso ter consciência para experimentar o Ser. Isso não significa que o Ser ou o eu não existe. Essa ausência significa apenas que não estamos conhecendo diretamente, através da consciência, nosso senso de Ser como nosso eu. Só sabemos através de nossa mente a forma de nossos fenômenos; essa é Ma Rigpa. O budismo primitivo sofria de Ma Rigpa. Ma Rigpa significa que nosso conhecimento é incompleto. Nosso conhecimento é limitado apenas ao conhecimento da mente.

A mente que conhece a forma sem a nossa consciência que conhece o Ser resulta na ausência de nossa experiência do eu. Nossa mente pode conhecer a forma sem que nossa consciência saiba que o Ser de nossa forma significa que o conhecimento de nossa consciência não está sendo utilizado e é excluído. Essa exclusão da consciência não significa que o nosso eu como nosso Ser não existe, apenas que não estamos conhecendo a experiência do nosso Ser como nosso eu. Isto é Ma Rigpa. Este é um problema epistemológico do budismo primitivo. Somente a forma de conhecer a mente é incompleta. Somente a mente não conhece nosso ser. Somente a mente, sabendo do eu, é uma coisa mental e objetificada.

Esclarecimento 2. Experimentar nossa consciência conhecendo o Ser, sem o conhecimento das formas de seres conscientes de nossa mente é outra maneira de não conhecer a experiência de nosso eu corporificado. Somente o conhecimento da consciência apresenta a experiência do Ser sem a forma do nosso ser. Não existe “Possessividade”. A experiência do Ser sem a forma do nosso ser é Ma Rigpa. A experiência de nossa consciência conhecendo o Ser sem nossa mente conhecendo a forma de nosso ser é um conhecimento incompleto.

Isso acontece em muitas tradições filosóficas onde há uma dissociação entre nosso conhecimento da consciência e nosso conhecimento da mente. Muitas tradições não-dualistas separam o conhecimento da consciência do conhecimento da mente. Portanto, existe apenas o conhecimento do Ser, o Ser sem forma, sem o conhecimento da forma. Uma tradição também pode dividir o conhecimento da nossa mente do conhecimento da consciência e o consequente conhecimento do nosso Ser. Só se experimenta o conhecimento da mente, que é o conhecimento dos seres sem o conhecimento do seu Ser. Muitos sistemas não-dualistas experimentam Ma Rigpa pela mente negadora que conhece formas e fenômenos. Assim, neste contexto, existe apenas consciência conhecendo o Ser. Consciência que conhece apenas o Ser é incompleta. Consciência conhecendo apenas o Ser carece de conhecer a forma e os fenômenos de “mim mesmo”. Este é um entendimento decisivo para religião, espiritualidade e práxis espiritual religiosa.

A integração da mente na consciência é necessária para conhecer a presença do nosso eu como o Ser do nosso eu.


Sobre o autor

Rudolph Bauer Ph.D, é diplomado em psicologia clínica e detém status de consultor na Sociedade Americana de Hipnose Clínica. É psicólogo fenomenológico e psicoterapeuta existencial, afiliado ao Centro de Estudos da Consciência (Washington Center for Consciousness Studies) e do Centro de Estudos de Psicoterapia Fenomenológica e Existencial (Washington Center for Phenomenological and Existential Psychotherapy Studies), ambos em Washington (EUA).

Concluiu a bolsa de pós-doutorado em psicologia na Universidade de Louvain, na Bélgica. Era membro do
Institute of Time Perspective em Leuven e seu foco era na fenomenologia, além de estudos experimentais em esperança e desespero. Foi bolsista de pós-doutorado em psicologia clínica infantil na Fundação Devereux. Seu foco era a psicoterapia psicanalítica relacional e a psicologia clínica do desenvolvimento infantil. Também estudou Sistemas Familiares no Philadelphia Child Guidance Center e participou de seminários psicanalíticos na Associação de Psicanálise da Filadélfia, bem como na Escola de Psiquiatria de Washington.

Estuda há mais de 30 anos com os mestres do budismo tibetano Dzogchen, d
o Xivaísmo da Caxemira e do Qi Gong taoísta. Tem mais de 100 publicações nas áreas de psicoterapia, hipnose clínica, teoria da relação de objetos psicanalíticos, estudos experimentais sobre a perspectiva temporal da esperança e do desespero, além de numerosos estudos fenomenológicos sobre consciência existencial e meditação, conforme descrito no budismo tibetano dzogchen, xivaísmo da caxemira, e Fenomenologia Continental.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O Enigma da Consciência

Por Steve Taylor (Este texto contém parte do capítulo 3 do livro “Spiritual Science: Why Science Needs Spirituality to Make Sense of the World”, publicado em 2018)


Francis Crick foi um dos cientistas mais eminentes do século XX. Em 1953, ele ajudou, juntamente com James Watson, a “quebrar” o código genético (descobrindo a estrutura da molécula de DNA). Mais tarde em sua carreira científica, Crick decidiu voltar sua atenção para o que via como o maior problema remanescente na ciência: a consciência. Ele decidiu que iria resolver o enigma de como o cérebro produz nossa “vida interior” de pensamentos e sensações.

Crick esperava que o enigma fosse resolvido dentro de alguns anos, com a ajuda da mais recente tecnologia de varredura cerebral e geração de imagens. A questão parecia direta: os seres humanos experimentam a consciência, e a consciência é produzida pelo cérebro. Afinal, não está claro que, quando o cérebro está danificado, a consciência fica prejudicada? E não está claro que, quando o cérebro para de funcionar - no momento da morte - a consciência também p
ara? Como Crick colocou, graficamente: “Você, suas alegrias e tristezas, suas memórias e suas ambições, seu senso de identidade pessoal e livre arbítrio, na verdade não são mais do que o comportamento de um vasto conjunto de células nervosas e suas moléculas associadas.” Portanto, sua tarefa era clara: investigar exatamente como essas células e moléculas nervosas deram origem à nossa experiência consciente.

Infelizmente, a consciência provou ser muito mais difícil de “quebrar” do que o código genético. Trabalhando em conjunto com um jovem pesquisador chamado Christof Koch, Crick dedicou as duas últimas décadas de sua vida ao enigma da consciência, mas fez um progresso frustrantemente pequeno. Ele fez várias sugestões - por exemplo, que a consciência estava relacionada ao córtex visual do cérebro, à memória de curto prazo ou a “alguma forma de mecanismo atencional serial” - mas nenhuma delas foi confirmada por evidências.

Curiosamente, embora Crick nunca tenha desistido de sua fé em uma explicação materialista da consciência, seu co-pesquisador o fez. Christof Koch acabou por duvidar da suposição básica de seu trabalho: que a consciência pode ser explicada em termos de atividade cerebral. Ele começou a investigar formas alternativas de explicar a consciência e adotou uma perspectiva pa
mpsiquista.

Aqui, examinaremos por que Crick e muitos outros cientistas fizeram tão pouco progresso na tentativa de explicar a consciência em termos de atividade cerebral. E veremos como, de uma perspectiva espiritual, a consciência começa a parecer muito menos problemática. De fato, veremos que o panespiritismo oferece uma solução sensata para o “enigma da consciência”.

Definindo Consciência

Primeiro de tudo, vamos definir exatamente o que queremos dizer com
consciência. Consciência é uma dessas palavras - como “espiritual” ou “espiritualidade” - que é usada em tantos contextos diferentes com tantas conotações diferentes que é difícil de definir. Até estudiosos e teóricos da consciência às vezes usam o termo com significados ligeiramente diferentes. Então, acho melhor usar uma definição bastante ampla. Na minha universidade, ensino um módulo de Estudos da Consciência para alunos do primeiro ano do ensino médio, a maioria com 18 anos. Outros acadêmicos às vezes me dizem: “Como você pode ensinar consciência a jovens de 18 anos?” Mas eu acho que uma vez que concordamos com uma definição do que é a consciência, eles são surpreendentemente claros sobre o assunto e ficam muito envolvidos com isto.

Então, o que é consciência? Uma razão pela qual é difícil de definir é porque somos nós. Somos conscientes, por isso é difícil sair de nós mesmos e observá-l
a como se fosse algo “outro” para nós. Em vista disso, a melhor maneira de entender a consciência é mais em termos de experiência do que de definição. É por isso que, na primeira sessão do nosso módulo de Estudos da Consciência, eu guio os alunos através de um exercício - uma espécie de meditação. De fato, darei a você - o leitor - o mesmo exercício agora:

Feche os olhos e observe suas próprias experiências interiores. Observe seus pensamentos passarem, como se estivesse sentado na margem de um rio, vendo um rio passar. Estes podem ser pensamentos sobre o que aconteceu hoje cedo, sobre o que pode estar acontecendo hoje, sobre as outras pessoas ao seu redor, sobre este texto e assim por diante. O importante é apenas observar os pensamentos surgirem, se manifestarem e desaparecerem.

Da mesma forma, esteja ciente de qualquer sensação dentro de você - por exemplo, qualquer sentimento de desconforto, irritação ou cansaço. Novamente, apenas esteja ciente desses sentimentos, com a sensação de que você está separado deles, como observador. Além disso, esteja ciente da cadeira em que está sentado, das sensações das costas contra ela e do seu traseiro sobre ela. Esteja ciente de seus pés contra o chão.

Agora - ainda com os olhos fechados - tente sentir a parte de você que está ciente de seus pensamentos e sensações. Como você está observando seus pensamentos passarem, há uma parte de sua consciência que está separada de seus pensamentos - um observador ou sentinela. Em termos metafóricos, essa é a parte de você que está sentada na margem do rio, observando o rio de pensamentos fluir. Este é o seu senso de “eu”. Depois de um tempo, você pode ter uma noção da distância entre esse “eu” e seus pensamentos. Você também pode estar ciente de como seus pensamentos tentam afastá-lo deste local de observação, como eles imergem sua atenção, como se o rio estivesse tentando levá-lo embora.

Finalmente, vamos trazer a consciência para fora de nós mesmos. Ainda com os olhos fechados, esteja atento aos sons na sala e fora dela. Esteja ciente de quaisquer aromas ao seu redor. Em seguida, toque em alguns dos objetos ao seu redor. Em seguida, abra os olhos e observe os objetos, as pessoas e os diferentes fenômenos ao seu redor. Esteja ciente de seu entorno através de todos os seus sentidos.

Este exercício ilustra três aspectos diferentes da consciência. O primeiro aspecto é a nossa
experiência interior de pensamentos e sensações. Os filósofos da consciência chamam essas experiências interiores de “qualia”. No singular, um quale é uma unidade de experiência da consciência. Um quale pode ser o sabor de um tomate, uma sensação de dor quando você acidentalmente toca um fogão em brasa ou um pensamento ansioso sobre um evento futuro.

A segunda parte do exercício ilustra que
parecemos ter um centro de consciência, um senso de “eu” com o qual estamos cientes de nossa própria experiência. Isso significa que não temos apenas experiência, também estamos cientes disso. Em outras palavras, essa é a parte de nós que é autoconsciente. Ela observa nossos pensamentos, observa nossas interações com outras pessoas, comenta e critica nosso comportamento, e assim por diante. Esse observador autoconsciente é um segundo aspecto da consciência.

A terceira parte do exercício ilustra que
a consciência inclui nossa percepção do ambiente que a rodeia. Essa consciência trabalha através dos nossos sentidos e nos coloca em contato com o mundo fora de nós. Este é o terceiro aspecto da consciência.

Uma das questões interessantes sobre a consciência é se ela é apenas um fenômeno humano ou é compartilhada por outros animais. A definição em três aspectos talvez lançe alguma luz sobre isso. Em termos do primeiro aspecto - experiência interior -, o filósofo Descartes acreditava que apenas os seres humanos têm mentes (ou almas) e que os animais são apenas autômatos. Mas a maioria dos filósofos modernos seria mais cautelosa, pois é obviamente impossível saber se os animais têm alguma consciência subjetiva - ou qualia - ou não. Ao mesmo tempo, parece aparente que muitos animais têm a capacidade de sentir dor, medo e até tristeza (como quando elefantes, macacos e cavalos parecem sofrer por parentes falecidos). Obviamente, isso sugere algum grau de experiência interior.

Em termos do segundo aspecto, há evidências de que alguns animais possuem um certo grau de
autoconsciência. Vários animais - incluindo chimpanzés, bonobos, elefantes e até pombos pegas da Eurásia - passaram no “teste de auto-reconhecimento de espelhos”. Quando manchas são colocadas em seus rostos e colocadas na frente de um espelho, elas reagem tocando-as ou tentando esfregá-las, como faria um ser humano. Uma variação do teste de espelho foi tentada com golfinhos. Um pesquisador marcou partes do corpo com tinta, e elas frequentemente viravam essas áreas para o espelho, sugerindo que estavam fazendo um esforço consciente para vê-las. No entanto, a maioria dos animais não passa no teste de auto-reconhecimento-espelho, o que sugere que a maioria não tem autoconsciência.

Em termos do terceiro aspecto, podemos dizer com segurança que todos os animais têm algum grau de
consciência de seu entorno. Até uma ameba unicelular se move em direção à luz e às fontes de alimento, mostrando a consciência do ambiente. E quanto mais fisicamente complexos os animais se tornam, mais demonstram consciência de seus arredores. Portanto, nesse sentido, a questão importante não é se os animais são conscientes, mas o quão conscientes são.

O cérebro como fonte da consciência

A crença de Francis Crick de que a consciência era a última grande questão remanescente na ciência ajuda a explicar sua popularidade nos últimos 30 anos. De acordo com essa narrativa, chegamos ao ponto em que compreendemos amplamente problemas como evolução, a natureza da vida e as origens do universo; portanto, é hora de voltarmos nossa atenção para dentro e resolvermos o problema da consciência. Obviamente, essa atitude foi amplamente baseada em falsa confiança - é muito discutível que
compreendamos amplamente os fenômenos acima, principalmente em vista de descobertas mais recentes. Por exemplo, a descoberta da energia escura na década de 1990 (embora sua existência ainda não tenha sido diretamente detectada) - juntamente com a teoria mais antiga da matéria escura - mostrou que há muito sobre o universo que não entendemos. Da mesma forma, o mapeamento do “genoma humano” mostrou que entendemos muito menos sobre a base genética da vida do que presumíamos.

E, como Francis Crick descobriu, a crença de que seríamos capazes de resolver o mistério da consciência também se baseava em falsa confiança. Após décadas de intensa pesquisa e teorização, muito pouco progresso foi feito no entendimento de como as redes neuronais do cérebro se relacionam com a consciência. Muitas sugestões foram feitas, além das de Crick. Por exemplo, o filósofo escocês Donald MacKay sugeriu que a consciência está relacionada a interações entre a camada cortical e outras camadas mais profundas do cérebro; o neurocientista Rodney Cotterill sugeriu que o local da consciência é o cingulado anterior, enquanto V.S. Ramachandran - um dos neurocientistas mais eminentes de todos - sugeriu que o “circuito” da consciência reside tanto nos lobos temporais quanto em parte do lobos frontais chamados giro cingulado.

A natureza extremamente variada dessas sugestões conta sua própria história. Quando existe tão pouco consenso nas explicações, isso sugere que a suposição causal subjacente às explicações (neste caso, o cérebro produz consciência) é duvidosa. De fato, a ideia de que a consciência provém de uma área específica do cérebro agora foi largamente descartada pelos teóricos, em favor da visão de que a consciência é de alguma forma gerada pelo cérebro como um todo. Como afirmou o neurocientista Giulio Tononi, “a consciência está associada a um sistema neural distribuído: não existe uma área única onde tudo se reúna”. Mas ainda ninguém apresentou uma teoria viável de como todo o cérebro pode produzir consciência.

Existem outras dificuldades também. Como Tononi também apontou, as células cerebrais disparam quase tanto no sono profundo quanto no estado de vigília, apesar da falta de (ou pelo menos um nível mais baixo) de consciência no primeiro. El
as também disparam em alto grau em crises epilépticas de ausência (quando uma pessoa se apaga), mesmo que a consciência esteja perdida. Em certas partes do cérebro - como o sistema talamocortical - é possível identificar alguns neurônios que se correlacionam com a experiência consciente, enquanto outros neurônios parecem não ter nenhum efeito sobre ela. Por que a consciência deve se correlacionar com alguns neurônios, mas não com outros? Tudo isso sugere a falta de uma relação direta e confiável entre a atividade cerebral e a experiência consciente.

No entanto, existe uma questão ainda maior:
muitos filósofos sugeriram que a própria suposição de que o cérebro produz consciência deveria ser abandonada. Se você segurasse um cérebro na mão, descobriria que é um amontoado de massa cinzenta, um pouco parecido com massa de vidraceiro e quase tão pesado quanto um saco de farinha. Como é possível que esse material cinza encharcado possa dar origem à riqueza e profundidade de sua experiência consciente? Essa presunção é um “erro de categoria”. A matéria física do cérebro - não importa quão complicadas sejam as interações entre as células - pertence a uma categoria de substância, e os qualia não-físicos de experiências conscientes pertencem a outra, de modo que como ela pode ser explicada em termos da primeira ? Como o filósofo Colin McGinn colocou, dizer que o cérebro produz consciência é como dizer que a água pode se transformar em vinho.

Alguns filósofos sugeriram que a consciência é uma propriedade “emergente”, que naturalmente surge quando a matéria atinge um certo nível de complexidade. No entanto, isso é apenas uma descrição e não uma explicação. Como ninguém foi capaz de explicar como a consciência pode emergir da matéria, é apenas uma reafirmação do problema. E, em qualquer caso, quando uma propriedade emerge dos componentes mais básicos de um sistema, essa propriedade é normalmente inerente a esses componentes e pode ser deduzida deles. Mas não há nada na experiência consciente que seja relacionado às coisas físicas do cérebro. No nível mais microcósmico, o cérebro consiste em partículas subatômicas, que possuem qualidades como massa, rotação e carga. Não há nada sobre essas qualidades que se relacione com as qualidades associadas à consciência, como pensamento, paladar, dor ou ansiedade. Como Colin McGinn afirma sarcasticamente: “Você também pode afirmar que os números emergem de biscoitos ou a ética do ruibarbo”.

O filósofo australiano David Chalmers se referiu a isso como o “problema difícil [orig. hard problem]. Na opinião de Chalmers, existem alguns aspectos da relação entre atividade cognitiva e atividade cerebral que psicólogos e neurocientistas entendem bastante bem. Por exemplo, temos uma ideia bastante boa das funções cerebrais envolvidas na memória, atenção e processamento de informações. Mas esses são apenas - na terminologia de Chalmers - os “problemas fáceis” [orig. easy problems]. O problema de como o cérebro pode dar origem à consciência está em uma escala completamente diferente. O “problema difícil” pode não ser solúvel.

Isso também foi descrito como a
“lacuna explicativa” [orig. explanatory gap]. Mesmo se, de alguma forma, conseguimos identificar com precisão as redes neurais associadas à consciência, o que isso nos diria? Ainda haveria um abismo entre as coisas físicas do cérebro e a riqueza da experiência consciente. (Essencialmente, esse é o mesmo problema que foi expresso pelos filósofos gregos como ex nihilo, nihildo nada, nada vem.) Como Christof Koch, explicando por que duvidou das explicações neurológicas de consciência, colocou: “[o] surgimento de sentimentos subjetivos das coisas físicas parece inconcebível... O fenomenal vem de um reino que não seja o físico e está sujeito a leis diferentes. Não vejo como a divisão entre estados inconscientes e conscientes seja superada por cérebros maiores ou neurônios mais complexos.” Koch percebeu que o pampsiquismo oferecia uma maneira de transcender esse problema, e agora ele acredita que, em vez de ser produzida pelos circuitos do cérebro, a consciência é “inerente ao design do universo”.

David Chalmers ilustrou isso com seu conceito de “zumbi”. Imagine que há uma versão zumbi de você que se parece exatamente, fala exatamente e se comporta exatamente como você, e só é diferente de você por não ter experiência consciente. É exatamente o mesmo que você, exceto que não existe um eu que reflita e experiment
e sensações por dentro. Não há ninguém para pensar no que você está fazendo, comentar sobre sua experiência ou tomar planos ou decisões. Chalmers acredita que, hipoteticamente, essa versão zumbi de você poderia sobreviver no mundo. Você poderia funcionar perfeitamente bem no mundo sem experiência consciente. E não há nada na sua forma física que exija experiência consciente. Isso significa que a consciência é “algo extra”, algo além do material físico de nossos cérebros e corpos que não pode ser reduzido a eles.

Consciência como ilusão

Outra abordagem possível para a consciência é dizer que ela não precisa ser explicada porque é uma ilusão. O
defensor mais conhecido dessa abordagem é o filósofo americano Daniel Dennett. Ele acredita que não precisamos explicar como as coisas físicas do cérebro dão origem à consciência, porque não precisamos. Em outras palavras, não há “problema difícil”. A resposta de Dennett ao conceito de zumbi de Chalmers é dizer que somos todos zumbis. Nenhum de nós é realmente consciente, apesar de nos convencermos de que somos.

O que Dennett tenta fazer não é, portanto, explicar como surge a consciência, mas tentar mostrar como surge a ilusão de consciência. Ele sugere que essa ilusão está intimamente relacionada à ilusão do eu. No exercício que descrevi anteriormente, o eu é o aspecto da consciência que observa nossos próprios processos mentais e “olha para o mundo”. Dennett descreve isso como a ilusão do “Teatro Cartesiano”, baseado na famosa frase de Descartes, “Penso, logo existo”. Parece que estamos sentados em um teatro, vendo nossos pensamentos passarem, mas, na realidade, ninguém está lá. Segundo Dennett, existem apenas processos mentais, fluxos de pensamentos, sensações e percepções passando pelo cérebro, sem um local central onde todos esses fenômenos estão organizados. As pessoas só acreditam que estão conscientes quando olham para dentro e tiram um instantâneo desses processos. Mas até aquele momento não havia nada na consciência.

No entanto, há um absurdo básico no argumento de que a consciência é uma ilusão. O argumento só pode ser feito através da consciência de seres humanos individuais, como Daniel Dennett. E esses indivíduos estão obviamente assumindo que sua própria consciência é autêntica e confiável - caso contrário, não se importariam em declarar suas observações. Se eles realmente acreditassem que sua própria consciência não existe, certamente não confiariam em suas percepções e ideias? Dennett pressupõe que exista um observador confiável dentro dele que seja capaz de julgar a consciência - e essa mesma presunção contradiz seus próprios argumentos, uma vez que esse observador é exatamente aquilo cuja existência ele está tentando refutar. Você confiaria na evidência de uma testemunha que demonstrou não ser confiável - na verdade, uma testemunha que você concluiu que não existe? Em outras palavras, o argumento é capturado em um loop. A consciência não pode provar que não existe.

A questão se torna ainda mais absurda quando consideramos que, para argumentar que a consciência não existe, Dennett coleta muitos exemplos de experimentos que mostram como a consciência humana não pode ser confiável, como muitas vezes interpretamos mal as situações e fazemos suposições que acabam sendo falsas. Todos esses experimentos foram realizados por seres humanos que acreditavam estar conscientes. Mas se as consciências individuais que conduziram esses testes e descreveram esses achados são realmente ilusórias, por que devemos confiar em seus achados?

Relacionado a isso, há um problema de confusão de sujeito/objeto. Dennett tenta examinar a consciência de fora. Ele
a trata como um botânico que examina uma flor, como um objeto para examinar e categorizar. Mas, é claro, com consciência, o sujeito é o objeto. Você é consciência. Portanto, é falacioso examiná-la como se fosse algo “outro”. Novamente, você é pego em um loop. Você não pode ficar fora da consciência. E assim, quaisquer pronunciamentos “objetivos” que fizer sobre isso são falaciosos desde o início.

De fato, o que Dennett faz é simplesmente ignorar o aspecto subjetivo da consciência, incluindo sua própria subjetividade. Como os comportamentalistas da psicologia, ele acredita que a subjetividade pode ser apenas desconsiderada.
Mas a própria ideia de que a consciência é uma ilusão pressupõe que haja alguém para quem é uma ilusão. E que alguém é o próprio sujeito humano.

Tudo isso mostra como é problemático e bizarramente contra-intuitivo argumentar que a consciência é uma ilusão.

A alternativa espiritual

Alguns filósofos acreditam que, devido às dificuldades de explicar a consciência em termos do cérebro - e ao absurdo de fingir que é uma ilusão - não devemos esperar entend
ê-la. Isso é conhecido como a posição “misteriosa” [orig. the “mysterian” position] e, de certa forma, faz sentido. O intelecto humano é limitado; certamente existem algumas coisas que estão além do nosso entendimento, alguns enigmas que nunca seremos capazes de resolver. E o enigma da consciência é especialmente problemático, pois - como acabei de observar - somos consciência e, portanto, é impossível investigá-la com clareza ou objetividade. Por causa disso, podemos muito bem estar - como o filósofo Colin McGinn colocou - “cognitivamente fechados” ao problema da consciência. No entanto, acredito que podemos entender o enigma da consciência se olharmos para ele da perspectiva do panespiritismo.

Do ponto de vista espiritual, a consciência não emerge de arranjos complexos de partículas materiais; não está localizad
a em certas áreas do cérebro ou é produzida por certos tipos de atividade cerebral. A consciência não emerge da matéria porque sempre esteve na matéria. A consciência é uma qualidade fundamental que existe em todo lugar e em tudo.

Da perspectiva pan
espiritista, o cérebro não produz consciência, mas age como uma espécie de receptor, que transmite e canaliza a consciência universal (ou força espiritual, que é equivalente a ela) para o nosso próprio ser. Através do cérebro (não apenas o cérebro humano, mas o de qualquer outro animal), a essência crua da consciência universal é canalizada para a nossa própria consciência individual. E porque o cérebro humano é tão grande e complexo, é capaz de receber e canalizar a consciência de uma maneira muito intensa e intrincada, de modo que somos (provavelmente) mais intensos e expansivamente mais conscientes do que a maioria dos outros animais. Como o filósofo Robert Forman colocou:

A consciência é mais um campo do que um ponto localizado, um campo que transcende o corpo e, de alguma forma, interage com ele... As células cerebrais podem receber, guiar, arbitrar ou canalizar uma consciência que de alguma forma é transcendental para elas. O cérebro pode ser mais um receptor ou transformador para o campo da consciência do que seu gerador.

Como vimos, uma das razões mais óbvias para supor que o cérebro produz consciência é que a consciência pode ser prejudicada ou alterada se o cérebro estiver danificado. E quando o funcionamento do cérebro é alterado em algum grau - por exemplo, por drogas -, a consciência geralmente é afetada. No entanto, isso não invalida a explicação espiritual da consciência. Mesmo que o cérebro não produza consciência, mas a receba e transmita, qualquer dano ou alteração terá um efeito igualmente significativo. Um rádio não produz a música que passa através dele, apenas o recebe e transmite; no entanto, se o rádio estiver danificado, sua capacidade de transmitir a música será prejudicada. E se alguém alterar o controle de modulação do rádio (que é análogo ao uso de drogas) ou violar seu circuito interno, sua saída será obviamente afetada.

O panespiritismo também se encaixa bem com a suposição dos neurocientistas de que a consciência está de alguma forma associada ao cérebro como um todo (apesar de não ser claro sobre os processos envolvidos), em vez de localizada em uma parte ou padrão particular da atividade neurológica. Se o papel do cérebro não é produzir consciência, mas recebê-la e transmiti-la, esperamos que seja amplamente distribuído dessa maneira. A consciência não depende de nenhuma parte específica do cérebro; o papel de “receber e transmitir” do cérebro depende de seu funcionamento como um todo integrado e inter-relacionado.

Pode-se argumentar que o panespiritismo não resolve realmente o enigma da consciência, porque não explica de onde veio a consciência. Mas, em certo sentido, não precisa fazer isso. A consciência não vem de lugar nenhum - apenas é. Os físicos não consideram necessário tentar explicar de onde vêm o eletromagnetismo, a massa ou a gravidade - eles são apenas construídos no universo. E o mesmo pode ser verdade para a consciência ou força espiritual. (De fato, a consciência pode ser ainda mais fundamental que as forças acima, se assumirmos que ela realmente precedeu e deu origem ao universo.)

De maneira semelhante, você poderia argumentar que o panespiritismo não pode nos dizer como o cérebro recebe e transmite consciência. Ele não pode identificar os processos envolvidos, assim como os materialistas não podem identificar os processos pelos quais o cérebro pode dar origem à consciência. Isso é verdade, é claro. Pode ser que nunca saibamos disso - talvez esse seja um sentido em que o argumento “misterioso” seja verdadeiro, pois há algumas coisas que nosso intelecto e consciência limitados nunca serão capazes de entender.

No entanto, em um nível teórico, o argumento panespiritista parece muito viável como uma alternativa às explicações materialistas da consciência. E quando você leva em conta a ampla gama de outras evidências do panespiritismo, a teoria parece muito convincente como uma explicação da consciência.

De acordo com o panespiritismo, não se trata apenas de termos consciência, mas de sermos consciência. E não é uma questão de termos consciência individual, porque compartilhamos a mesma consciência. Isso significa que somos essencialmente uma parte de uma unidade maior, ao invés de indivíduos separados. Essa unidade é a fonte do altruísmo e pode ajudar a explicar alguns tipos de experiências psíquicas. Também é experimentada diretamente em algumas experiências espirituais ou místicas.

Sobre o autor

Steve Taylor é professor sênior de psicologia na Leeds Beckett University e autor de vários livros mais vendidos sobre psicologia e espiritualidade. Nos últimos seis anos, ele foi incluído na lista da revista Watkins Mind, Body, Spirit das “100 pessoas mais influentes em termos espirituais”. Seus livros incluem Waking From Sleep, The Fall, Out of the Darkness, Back to Sanity e seu último livro The Leap (publicado por Eckhart Tolle). Seus livros foram publicados em 19 idiomas, e seus artigos e ensaios foram publicados em mais de 40 periódicos, revistas e jornais acadêmicos.