Paulo Stekel
Como
ler
Aos
nove anos de idade li meu primeiro livro. Ele não foi comprado por
ninguém. Simplesmente, apareceu entre as revistas de minha mãe.
Deve ter vindo por engano junto a elas. Como ninguém acusou ser o
dono, ele passou a ser meu. O tenho até hoje, mais de 35 anos
depois! O livro em questão é “O Eremita”, de Lobsang Rampa,
minha primeira visão do Budismo, em idade tenra. Ainda que a obra de
Lobsang Rampa no seu todo seja polêmica e muito contestada, cheia de
imprecisões sobre o Budismo Vajrayana (popularmente chamado de
Budismo Tibetano) e escrita por uma pessoa que afirmava ser um lama
tibetano desencarnado que os registros do Tibete nunca encontraram,
crítica com a qual concordo, não posso negar que foi o
desencadeador de um interesse por espiritualidade muito importante.
Por isso, este livro ainda está na minha estante, sem capa e
esfacelado, desde 1979.
Aos
poucos, fui reunindo outros livros, desde didáticos, livros de
séries escolares bem adiante da minha, e os fui lendo vorazmente,
várias vezes até. O livro de Rampa, por exemplo, li umas cinco
vezes seguidas. Aos doze ou treze anos já possuía uns 30 livros
meus! Aos dezoito anos, uns 300 livros sobre todos os assuntos que se
possa imaginar. No total, nestes meus quase quarenta e cinco anos de
vida, calculo ter lido entre 1300 e 1500 livros, uma média de um por
semana, ou mais, em certos momentos. Nos últimos doze meses, por
exemplo, consegui ler 70 livros!
Por
causa disso, muitos me perguntam se tenho em casa estes mil e tantos
livros. Não. Atualmente, tenho menos de 400 livros impressos e cerca
de 300 livros digitais, totalizando 700 títulos no máximo. O fato é
que, no caso dos livros impressos, a cada seis meses, escolho as
obras que não me interessam mais, ou cujas informações já estão
incorporadas a meu conhecimento geral, e passo a doá-las a meus
amigos, alunos, clientes ou pessoas desconhecidas, para que continuem
a ampliar mentes por aí. Já fiz isto com quase mil livros nos
últimos vinte anos. Para mim, que gosto tanto de livros, serve como
uma prática de desapego.
Comecei
a ler sobre espiritualidade numa época – a década de 1970 – em
que não havia Internet, nem PC, nem celulares, nem arquivos
digitais, muito menos a farta quantidade de títulos sobre qualquer
assunto que encontramos hoje em dia a um baixíssimo custo, no caso
dos livros baixados pela rede. Então, qualquer coisa que se
conseguia, era degustada com muita calma e atenção. Foi neste
contexto que desenvolvi o método de leitura que utilizo hoje. Não
se trata de algo como leitura dinâmica ou o que o valha. Por vezes,
o utilizo, mas não é este o ponto. Meu método, por sinal, é quase
o oposto do dinamismo rápido. É um dinamismo lento...
Livros
de espiritualidade são muito complexos quando são profundos, e
trazem conceitos que precisam de muita atenção para que sejam
adequadamente compreendidos. Então, desde adolescente, eu lia um
parágrafo, sublinhava partes importantes, fazia anotações de
rodapé a lápis e, se ainda achava necessário, fazia anotações em
separado, muitas das quais, futuramente, viraram artigos para
jornais, revistas, blogues e websites. Isto é, realmente,
estudar um livro!
Desde
aquela época, tenho o costume de ler, pelo menos, um livro por
semana. Na verdade, minha média é atualmente de umas duzentas a
trezentas páginas por semana, o que tenho conseguido manter, apesar
da agenda intensa de trabalho. O hábito de leitura é algo que se
adquire desde cedo. Contudo, quem não o tenha desde tenra idade
pode, claro, mudar seu pensamento e começar a ler com mais
frequência. Tudo depende de se dispor do tempo para isso.
O
hábito de ler não nos deve parecer algo chato, enfadonho e
irritante. Na verdade, a leitura dos livros de escola e de faculdade
são os maiores responsáveis por este pensamento equivocado. Então,
ao lermos sobre espiritualidade, procuremos situar nosso campo de
interesse. Há milhares e milhares de obras sobre o assunto no
mercado brasileiro, novos e usados, impressos e digitais, pagos ou
gratuitos. Portanto, não temos falta de opções. O que temos é
falta de interesse.
Aprender
a classificar as obras do assunto que nos interessa é o primeiro
passo para evitar uma leitura complicada e que não nos ensina muito
do que gostaríamos. Sugiro primeiro que se pesquise o assunto de
interesse e uma bibliografia mínima adequada pela Internet mesmo. Há
várias opções, e a Wikipedia em Português é uma das melhores
para os iniciantes. Você pode pesquisar o assunto pelo navegador
(Google, Bing ou outro sistema de pesquisa) usando palavras-chave
entre aspas, como nos exemplos: “assunto x”, “livros sobre
assunto x”, “bibliografia recomendada para assunto x”,
“wikipedia: assunto x”, “wikipedia: livros sobre assunto x”,
“wikipedia: bibliografia recomendada para assunto x”, etc. Se
também domina espanhol e inglês, o número de opções será,
então, infinitamente maior.
Após
conseguir seus livros – impressos e/ou digitais – proceda a uma
leitura rápida em cada um das seguintes partes (e, nesta ordem):
capa, contracapa, orelha esquerda, orelha direita, apresentação ou
prefácio, introdução e índice. Esta leitura rápida vai lhe
informar sobre a obra, se é introdutória, mediana ou avançada. Se
puder classificá-las assim, comece a ler das mais introdutórias
para as mais aprofundadas. Isso evitará confusão e terá um efeito
didático progressivo.
No
caso do estudo de livros sobre espiritualidade, o número de obras é
enorme, assim como o número de escolas, doutrinas, seitas,
filosofias e tendências. Eles abarcam desde as religiões mais
tradicionais (Cristianismo, Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, etc.),
passando pelas tradições místicas e suas derivações (Cabala,
Yoga, Sufismo, Budismo Esotérico, Gnosticismo, Essenismo, Teosofia,
etc.), chegando às novas formas de espiritualidade que surgiram nas
últimas décadas (livros “new age”, terapias holísticas,
terapias “quânticas”, neoxamanismo, neocabala, etc.) e à mescla
de Psicologia moderna com espiritualidade oriental. O que escolher?
Na falta de uma direção inicial, um pouco de intuição pode
ajudar. Se você é um curioso, não fará mal algum ler um pouco de
tudo e passar as informações por um bom filtro de ceticismo sadio,
pois se aceitar tudo o que ler de uma vez só, vai se dar mal quando
perceber as contradições entre as várias visões espirituais de
mundo. Vá ampliando a sua visão de mundo, antes de qualquer coisa.
Como
contemplar
Quando
me tornei “oficialmente” budista, em 1995, incorporei outro
método ao já usado: a contemplação. É um método budista usado
no estudo de sutras e outros textos sagrados. Mas, eu o uso para
qualquer obra que leio. Se trata de ler um parágrafo ou menos, parar
de ler, contemplar um tempo (trinta segundos ou mais, se for o caso)
olhando para a frente, o céu ou a natureza e, então, retornar à
leitura, indo para o próximo parágrafo ou, se o anterior ainda
requer avaliações, proceder à sua releitura. Isso ajuda a avaliar
melhor o conteúdo que se está lendo de um modo que vai além da
mera racionalidade; este método inclui percepção mais profunda. O
objetivo da contemplação na leitura sobre espiritualidade é, com o
tempo, provocar verdadeiros insights, percepções mais
criteriosas e apercebimentos repentinos sobre o que se lê quando
nossa mente associa o texto a outros já lidos e contemplados. Este
trabalho pode levar anos e até décadas, mas sempre saímos
recompensados.
Com
o tempo, incluí respiração abdominal – aquela do yoga! – ao
processo, tanto no início da leitura quanto entre as contemplações.
Isso transformou minha leitura, seguramente, numa forma de meditação,
e os resultados foram inúmeros: maior concentração, relaxamento,
atenção, melhora na cognição e na criatividade em geral. Também,
aumentou muito minha capacidade de decorar textos longos ou esquemas
de palestras e cursos apenas com palavras-chave, que incluíam uma
grande quantidade de conceitos, temas e subtemas relacionados a elas.
A mnemônica de Giordano Bruno lembra muito este método, por sinal.
O resultado final deste método é que, com o tempo, ele nos permite
ter entendimento, cognição, percepção e inteligência para não
apenas lermos, mas também para começarmos a escrever os nossos
próprios textos... Foi o que aconteceu comigo.
Em
geral, as pessoas não leem seus livros com esta atenção toda,
sejam livros didáticos da faculdade ou aquela leitura comum de
romances ou obras de autoajuda. Pois, deveriam! Tirariam muito mais
daquilo que estão lendo. Com o tempo e a prática acontece algo que
parece contraditório mas, que na verdade, é produto da maior
concentração facultada pelo método contemplativo em leitura:
começamos lendo parágrafo por parágrafo e contemplando entre eles;
com o passar dos anos, vamos aumentando nossa velocidade não só de
leitura, mas de percepção total do parágrafo, algo quase
“instantâneo”, como na leitura dinâmica, mas que a supera, pois
não perdemos a continuidade do texto em nenhum momento e ainda
conseguimos associar o texto do momento a tudo o que já lemos antes
de modo claro e preciso. Ou seja, ler através da contemplação
aumenta, com certeza, a nossa capacidade de memorização.
Um
desafio: leia este artigo até o fim e, logo após, retorne ao
início, usando o método de contemplação. Leia um parágrafo,
relaxe e contemple o texto lido por cerca de um minuto, e volte à
leitura. Quando estiver relaxado durante um minuto, se permita olhar
para a frente, para os lados, para o céu, para o chão. Faça isso
sem qualquer julgamento do que está observando. Apenas observe e
deixe o cérebro, a mente e o coração fazerem a parte deles. Então,
leia o próximo parágrafo ou, se não compreendeu direito, releia o
mesmo. Só então, passe adiante.
Ainda
que, no começo, pareça que você vai demorar uma eternidade para
ler todo o livro, a qualidade do resultado vai fazer você mudar de
ideia. A grande verdade é que não importa a velocidade com que se
leia, mas o grau de compreensibilidade, de cognição, atingida. E,
isso, depende em grande medida da atenção, de uma atenção focada,
relaxada e interessada no ato de ler. Se não estiver com real
vontade de ler, não o faça. Deixe para depois. Ou, se proponha a um
desafio maior e insista em ler, mas aumentando o tempo de relaxamento
entre um parágrafo enfadonho e outro. Talvez dois ou três minutos.
Em pouco tempo você irá melhorando a velocidade.
Como
agir no mundo
O
mais importante, após uma leitura, é tentar avaliar a
praticabilidade daquilo que se leu e se entendeu. Isto constitui a
ação no mundo, capaz de otimizar nossa experiência de vida,
fazendo ter mais brilho, mais agilidade, criatividade e efetividade
na busca de solução para os problemas cotidianos e para aqueles
emblemáticos, como o sofrimento, a doença e a infelicidade. Os
livros sobre espiritualidade em geral, independentemente da doutrina,
tradição ou fé, podem levar a esta busca, com certeza. Mas, para
evitar fanatismos ou visões estreitas, devemos ler com mente aberta
a informações novas, mas não com uma mente permeável demais ao
encanto dos doutrinadores radicais, em qualquer área. Temos que
deixar em aberto um espaço para argumentos futuros e não quebrar os
pratos imediatamente com nossa atual visão de mundo. Apenas a
experiência e a familiarização com ela pode nos mostrar onde
realmente devemos abandonar antigas formas de ver a realidade.
A
leitura frequente tem como propriedade mudar ou ampliar nossa visão
de mundo. Mudar ou ampliar aqui são coisas diferentes, não
sinônimos. Quando mudamos de uma visão para a outra (da visão
cristã para a visão budista ou islâmica, por exemplo), isso não
constitui, necessariamente, uma ampliação do modo como vemos o
mundo e a realidade. Pode significar apenas uma mudança de métodos,
de referenciais, de sistemática.
Quando
ampliamos nossa visão de mundo, o que a leitura permite certamente,
podemos continuar cristãos, muçulmanos ou budistas e, mesmo assim,
nos permitirmos a uma inclusão em nossa mente de novos conceitos
sobre o mundo e a realidade, sobre nós mesmos e a vida. Não se
trata de uma heresia, mas de uma ampliação mental, um novo frescor
intelectual, uma arejada nos métodos. Isso, a propósito, é uma via
oposta à do fundamentalismo em qualquer área.
Algumas
pessoas podem ter dificuldade nesta ampliação e acabam fazendo uma
“salada de doutrinas contraditórias”, doutrinas estas que elas
tentam encaixar em sua visão esfacelada de mundo, causando muita
confusão em suas cabeças e nas dos próximos. Vejo isso o tempo
todo! Não basta lermos centenas de livros e fazermos de nossa mente
uma “clipagem”, um conjunto de recortes, de partes de doutrinas e
proposições. Temos que assimilar tudo e descobrir a “nossa”
verdade, reconhecer a “nossa” percepção da realidade e
ampliá-la cada vez mais, sem liames, sejam externos ou internos.
Vejo
muitas pessoas que se consideram “universalistas” fazendo esta
miscelânea insalubre para seus cérebros. Se consideram
universalistas, mas só conhecem as doutrinas que usam na mistura de
modo muito superficial, muito pobre e, mesmo assim, as tentam impor
aos demais sem qualquer conhecimento de causa e efeito. É como
indicar um remédio sem tê-lo tomado ou nem sequer testado seus
efeitos. Cegos guiando cegos vão abraçados para o abismo!
Uma
boa forma de percebermos como nossa visão de mundo muda ou se amplia
com o tempo é relermos nossos livros principais e mais profundos
cinco ou dez anos após a primeira leitura. Fiz isso com muitos dos
meus e, confesso, por vezes, me sentia lendo obras completamente
novas, inéditas até. Rsrs.
O
conjunto de tudo o que lemos deve nos servir como referencial para a
vida, não como uma regra ditada. No caso de livros sobre
espiritualidade isso é mais sério ainda. O caminho espiritual
requer prática, teste, experimentos. O empirismo espiritual é o
método mais antigo para se confirmar verdades filosóficas e um guia
confiável para evitarmos o pedantismo, o fanatismo, a
superficialidade e o “achismo”, um mal terrível atualmente.
Então,
leiamos e ajamos no mundo de modo cuidadoso, sem ficarmos mudando de
opinião ao bel-prazer das palavras escritas e não testadas. Não é
este o propósito da leitura. Contudo, um senso crítico saudável é
muito bem-vindo aqui. Não aceitar tudo, nem rejeitar tudo é o
método mais usado pelos meditadores orientais realizados. Perceber
onde se encaixa a realidade da informação lida é um trabalho
meticuloso que pode levar anos.
Para
finalizar, não esqueça o desafio: retorne ao início deste artigo,
usando o método de contemplação ensinado aqui. Ao terminar, teste
na leitura de seu próximo livro sobre espiritualidade. O resultado
será surpreendente.
Sobre o autor
Pema Dorje (Paulo
Stekel) é jornalista,
escritor, tradutor, revisor e produtor musical, com vários álbuns
lançados desde 2008. Stekel é um pesquisador não-acadêmico, um
professor autodidata de diversos temas, entre eles Budismo, Sânscrito
e línguas sagradas em geral. É um especialista na interpretação
dos textos sagrados das religiões. Ainda que seja oficialmente um
praticante do Budismo, pesquisa todas as tradições espirituais da
humanidade, incorporando a seu trabalho o que há de mais útil nelas
para o bem estar geral.
Email: pstekel@gmail.com
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