segunda-feira, 10 de junho de 2019

Estudando Espiritualidade – Método de Leitura, Contemplação e Ação no Mundo

Paulo Stekel


Como ler

Aos nove anos de idade li meu primeiro livro. Ele não foi comprado por ninguém. Simplesmente, apareceu entre as revistas de minha mãe. Deve ter vindo por engano junto a elas. Como ninguém acusou ser o dono, ele passou a ser meu. O tenho até hoje, mais de 35 anos depois! O livro em questão é “O Eremita”, de Lobsang Rampa, minha primeira visão do Budismo, em idade tenra. Ainda que a obra de Lobsang Rampa no seu todo seja polêmica e muito contestada, cheia de imprecisões sobre o Budismo Vajrayana (popularmente chamado de Budismo Tibetano) e escrita por uma pessoa que afirmava ser um lama tibetano desencarnado que os registros do Tibete nunca encontraram, crítica com a qual concordo, não posso negar que foi o desencadeador de um interesse por espiritualidade muito importante. Por isso, este livro ainda está na minha estante, sem capa e esfacelado, desde 1979.

Aos poucos, fui reunindo outros livros, desde didáticos, livros de séries escolares bem adiante da minha, e os fui lendo vorazmente, várias vezes até. O livro de Rampa, por exemplo, li umas cinco vezes seguidas. Aos doze ou treze anos já possuía uns 30 livros meus! Aos dezoito anos, uns 300 livros sobre todos os assuntos que se possa imaginar. No total, nestes meus quase quarenta e cinco anos de vida, calculo ter lido entre 1300 e 1500 livros, uma média de um por semana, ou mais, em certos momentos. Nos últimos doze meses, por exemplo, consegui ler 70 livros!

Por causa disso, muitos me perguntam se tenho em casa estes mil e tantos livros. Não. Atualmente, tenho menos de 400 livros impressos e cerca de 300 livros digitais, totalizando 700 títulos no máximo. O fato é que, no caso dos livros impressos, a cada seis meses, escolho as obras que não me interessam mais, ou cujas informações já estão incorporadas a meu conhecimento geral, e passo a doá-las a meus amigos, alunos, clientes ou pessoas desconhecidas, para que continuem a ampliar mentes por aí. Já fiz isto com quase mil livros nos últimos vinte anos. Para mim, que gosto tanto de livros, serve como uma prática de desapego.

Comecei a ler sobre espiritualidade numa época – a década de 1970 – em que não havia Internet, nem PC, nem celulares, nem arquivos digitais, muito menos a farta quantidade de títulos sobre qualquer assunto que encontramos hoje em dia a um baixíssimo custo, no caso dos livros baixados pela rede. Então, qualquer coisa que se conseguia, era degustada com muita calma e atenção. Foi neste contexto que desenvolvi o método de leitura que utilizo hoje. Não se trata de algo como leitura dinâmica ou o que o valha. Por vezes, o utilizo, mas não é este o ponto. Meu método, por sinal, é quase o oposto do dinamismo rápido. É um dinamismo lento...

Livros de espiritualidade são muito complexos quando são profundos, e trazem conceitos que precisam de muita atenção para que sejam adequadamente compreendidos. Então, desde adolescente, eu lia um parágrafo, sublinhava partes importantes, fazia anotações de rodapé a lápis e, se ainda achava necessário, fazia anotações em separado, muitas das quais, futuramente, viraram artigos para jornais, revistas, blogues e websites. Isto é, realmente, estudar um livro!

Desde aquela época, tenho o costume de ler, pelo menos, um livro por semana. Na verdade, minha média é atualmente de umas duzentas a trezentas páginas por semana, o que tenho conseguido manter, apesar da agenda intensa de trabalho. O hábito de leitura é algo que se adquire desde cedo. Contudo, quem não o tenha desde tenra idade pode, claro, mudar seu pensamento e começar a ler com mais frequência. Tudo depende de se dispor do tempo para isso.

O hábito de ler não nos deve parecer algo chato, enfadonho e irritante. Na verdade, a leitura dos livros de escola e de faculdade são os maiores responsáveis por este pensamento equivocado. Então, ao lermos sobre espiritualidade, procuremos situar nosso campo de interesse. Há milhares e milhares de obras sobre o assunto no mercado brasileiro, novos e usados, impressos e digitais, pagos ou gratuitos. Portanto, não temos falta de opções. O que temos é falta de interesse.

Aprender a classificar as obras do assunto que nos interessa é o primeiro passo para evitar uma leitura complicada e que não nos ensina muito do que gostaríamos. Sugiro primeiro que se pesquise o assunto de interesse e uma bibliografia mínima adequada pela Internet mesmo. Há várias opções, e a Wikipedia em Português é uma das melhores para os iniciantes. Você pode pesquisar o assunto pelo navegador (Google, Bing ou outro sistema de pesquisa) usando palavras-chave entre aspas, como nos exemplos: “assunto x”, “livros sobre assunto x”, “bibliografia recomendada para assunto x”, “wikipedia: assunto x”, “wikipedia: livros sobre assunto x”, “wikipedia: bibliografia recomendada para assunto x”, etc. Se também domina espanhol e inglês, o número de opções será, então, infinitamente maior.

Após conseguir seus livros – impressos e/ou digitais – proceda a uma leitura rápida em cada um das seguintes partes (e, nesta ordem): capa, contracapa, orelha esquerda, orelha direita, apresentação ou prefácio, introdução e índice. Esta leitura rápida vai lhe informar sobre a obra, se é introdutória, mediana ou avançada. Se puder classificá-las assim, comece a ler das mais introdutórias para as mais aprofundadas. Isso evitará confusão e terá um efeito didático progressivo.

No caso do estudo de livros sobre espiritualidade, o número de obras é enorme, assim como o número de escolas, doutrinas, seitas, filosofias e tendências. Eles abarcam desde as religiões mais tradicionais (Cristianismo, Budismo, Hinduísmo, Judaísmo, etc.), passando pelas tradições místicas e suas derivações (Cabala, Yoga, Sufismo, Budismo Esotérico, Gnosticismo, Essenismo, Teosofia, etc.), chegando às novas formas de espiritualidade que surgiram nas últimas décadas (livros “new age”, terapias holísticas, terapias “quânticas”, neoxamanismo, neocabala, etc.) e à mescla de Psicologia moderna com espiritualidade oriental. O que escolher? Na falta de uma direção inicial, um pouco de intuição pode ajudar. Se você é um curioso, não fará mal algum ler um pouco de tudo e passar as informações por um bom filtro de ceticismo sadio, pois se aceitar tudo o que ler de uma vez só, vai se dar mal quando perceber as contradições entre as várias visões espirituais de mundo. Vá ampliando a sua visão de mundo, antes de qualquer coisa.

Como contemplar

Quando me tornei “oficialmente” budista, em 1995, incorporei outro método ao já usado: a contemplação. É um método budista usado no estudo de sutras e outros textos sagrados. Mas, eu o uso para qualquer obra que leio. Se trata de ler um parágrafo ou menos, parar de ler, contemplar um tempo (trinta segundos ou mais, se for o caso) olhando para a frente, o céu ou a natureza e, então, retornar à leitura, indo para o próximo parágrafo ou, se o anterior ainda requer avaliações, proceder à sua releitura. Isso ajuda a avaliar melhor o conteúdo que se está lendo de um modo que vai além da mera racionalidade; este método inclui percepção mais profunda. O objetivo da contemplação na leitura sobre espiritualidade é, com o tempo, provocar verdadeiros insights, percepções mais criteriosas e apercebimentos repentinos sobre o que se lê quando nossa mente associa o texto a outros já lidos e contemplados. Este trabalho pode levar anos e até décadas, mas sempre saímos recompensados.

Com o tempo, incluí respiração abdominal – aquela do yoga! – ao processo, tanto no início da leitura quanto entre as contemplações. Isso transformou minha leitura, seguramente, numa forma de meditação, e os resultados foram inúmeros: maior concentração, relaxamento, atenção, melhora na cognição e na criatividade em geral. Também, aumentou muito minha capacidade de decorar textos longos ou esquemas de palestras e cursos apenas com palavras-chave, que incluíam uma grande quantidade de conceitos, temas e subtemas relacionados a elas. A mnemônica de Giordano Bruno lembra muito este método, por sinal. O resultado final deste método é que, com o tempo, ele nos permite ter entendimento, cognição, percepção e inteligência para não apenas lermos, mas também para começarmos a escrever os nossos próprios textos... Foi o que aconteceu comigo.

Em geral, as pessoas não leem seus livros com esta atenção toda, sejam livros didáticos da faculdade ou aquela leitura comum de romances ou obras de autoajuda. Pois, deveriam! Tirariam muito mais daquilo que estão lendo. Com o tempo e a prática acontece algo que parece contraditório mas, que na verdade, é produto da maior concentração facultada pelo método contemplativo em leitura: começamos lendo parágrafo por parágrafo e contemplando entre eles; com o passar dos anos, vamos aumentando nossa velocidade não só de leitura, mas de percepção total do parágrafo, algo quase “instantâneo”, como na leitura dinâmica, mas que a supera, pois não perdemos a continuidade do texto em nenhum momento e ainda conseguimos associar o texto do momento a tudo o que já lemos antes de modo claro e preciso. Ou seja, ler através da contemplação aumenta, com certeza, a nossa capacidade de memorização.

Um desafio: leia este artigo até o fim e, logo após, retorne ao início, usando o método de contemplação. Leia um parágrafo, relaxe e contemple o texto lido por cerca de um minuto, e volte à leitura. Quando estiver relaxado durante um minuto, se permita olhar para a frente, para os lados, para o céu, para o chão. Faça isso sem qualquer julgamento do que está observando. Apenas observe e deixe o cérebro, a mente e o coração fazerem a parte deles. Então, leia o próximo parágrafo ou, se não compreendeu direito, releia o mesmo. Só então, passe adiante.

Ainda que, no começo, pareça que você vai demorar uma eternidade para ler todo o livro, a qualidade do resultado vai fazer você mudar de ideia. A grande verdade é que não importa a velocidade com que se leia, mas o grau de compreensibilidade, de cognição, atingida. E, isso, depende em grande medida da atenção, de uma atenção focada, relaxada e interessada no ato de ler. Se não estiver com real vontade de ler, não o faça. Deixe para depois. Ou, se proponha a um desafio maior e insista em ler, mas aumentando o tempo de relaxamento entre um parágrafo enfadonho e outro. Talvez dois ou três minutos. Em pouco tempo você irá melhorando a velocidade.

Como agir no mundo

O mais importante, após uma leitura, é tentar avaliar a praticabilidade daquilo que se leu e se entendeu. Isto constitui a ação no mundo, capaz de otimizar nossa experiência de vida, fazendo ter mais brilho, mais agilidade, criatividade e efetividade na busca de solução para os problemas cotidianos e para aqueles emblemáticos, como o sofrimento, a doença e a infelicidade. Os livros sobre espiritualidade em geral, independentemente da doutrina, tradição ou fé, podem levar a esta busca, com certeza. Mas, para evitar fanatismos ou visões estreitas, devemos ler com mente aberta a informações novas, mas não com uma mente permeável demais ao encanto dos doutrinadores radicais, em qualquer área. Temos que deixar em aberto um espaço para argumentos futuros e não quebrar os pratos imediatamente com nossa atual visão de mundo. Apenas a experiência e a familiarização com ela pode nos mostrar onde realmente devemos abandonar antigas formas de ver a realidade.

A leitura frequente tem como propriedade mudar ou ampliar nossa visão de mundo. Mudar ou ampliar aqui são coisas diferentes, não sinônimos. Quando mudamos de uma visão para a outra (da visão cristã para a visão budista ou islâmica, por exemplo), isso não constitui, necessariamente, uma ampliação do modo como vemos o mundo e a realidade. Pode significar apenas uma mudança de métodos, de referenciais, de sistemática.

Quando ampliamos nossa visão de mundo, o que a leitura permite certamente, podemos continuar cristãos, muçulmanos ou budistas e, mesmo assim, nos permitirmos a uma inclusão em nossa mente de novos conceitos sobre o mundo e a realidade, sobre nós mesmos e a vida. Não se trata de uma heresia, mas de uma ampliação mental, um novo frescor intelectual, uma arejada nos métodos. Isso, a propósito, é uma via oposta à do fundamentalismo em qualquer área.

Algumas pessoas podem ter dificuldade nesta ampliação e acabam fazendo uma “salada de doutrinas contraditórias”, doutrinas estas que elas tentam encaixar em sua visão esfacelada de mundo, causando muita confusão em suas cabeças e nas dos próximos. Vejo isso o tempo todo! Não basta lermos centenas de livros e fazermos de nossa mente uma “clipagem”, um conjunto de recortes, de partes de doutrinas e proposições. Temos que assimilar tudo e descobrir a “nossa” verdade, reconhecer a “nossa” percepção da realidade e ampliá-la cada vez mais, sem liames, sejam externos ou internos.

Vejo muitas pessoas que se consideram “universalistas” fazendo esta miscelânea insalubre para seus cérebros. Se consideram universalistas, mas só conhecem as doutrinas que usam na mistura de modo muito superficial, muito pobre e, mesmo assim, as tentam impor aos demais sem qualquer conhecimento de causa e efeito. É como indicar um remédio sem tê-lo tomado ou nem sequer testado seus efeitos. Cegos guiando cegos vão abraçados para o abismo!

Uma boa forma de percebermos como nossa visão de mundo muda ou se amplia com o tempo é relermos nossos livros principais e mais profundos cinco ou dez anos após a primeira leitura. Fiz isso com muitos dos meus e, confesso, por vezes, me sentia lendo obras completamente novas, inéditas até. Rsrs.

O conjunto de tudo o que lemos deve nos servir como referencial para a vida, não como uma regra ditada. No caso de livros sobre espiritualidade isso é mais sério ainda. O caminho espiritual requer prática, teste, experimentos. O empirismo espiritual é o método mais antigo para se confirmar verdades filosóficas e um guia confiável para evitarmos o pedantismo, o fanatismo, a superficialidade e o “achismo”, um mal terrível atualmente.

Então, leiamos e ajamos no mundo de modo cuidadoso, sem ficarmos mudando de opinião ao bel-prazer das palavras escritas e não testadas. Não é este o propósito da leitura. Contudo, um senso crítico saudável é muito bem-vindo aqui. Não aceitar tudo, nem rejeitar tudo é o método mais usado pelos meditadores orientais realizados. Perceber onde se encaixa a realidade da informação lida é um trabalho meticuloso que pode levar anos.

Para finalizar, não esqueça o desafio: retorne ao início deste artigo, usando o método de contemplação ensinado aqui. Ao terminar, teste na leitura de seu próximo livro sobre espiritualidade. O resultado será surpreendente.


Sobre o autor


Pema Dorje (Paulo Stekel) é jornalista, escritor, tradutor, revisor e produtor musical, com vários álbuns lançados desde 2008. Stekel é um pesquisador não-acadêmico, um professor autodidata de diversos temas, entre eles Budismo, Sânscrito e línguas sagradas em geral. É um especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Ainda que seja oficialmente um praticante do Budismo, pesquisa todas as tradições espirituais da humanidade, incorporando a seu trabalho o que há de mais útil nelas para o bem estar geral.

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