Uma Cruzada Contra a Espiritualidade
Por Paulo Stekel
(Escritor, jornalista, crítico da espiritualidade, espiritualista engajado e filosófico)
Parte 1
A Esquerda Radical e a Demonização da Espiritualidade: Um Obstáculo à Superação do Extremismo Religioso
A crescente ascensão do extremismo político associado à religião – especialmente no Brasil e em diversas partes do mundo – tem sido uma das maiores ameaças à democracia, à liberdade de pensamento e aos direitos humanos. Este fenômeno se manifesta de forma mais intensa no conservadorismo e na extrema-direita, que distorcem fundamentos religiosos para justificar autoritarismos, retrocessos sociais e até mesmo tentativas de golpe de Estado. No entanto, há uma armadilha pouco discutida no campo progressista: a tendência, entre setores mais radicais da esquerda marxista, de demonizar não apenas a religião institucionalizada, mas toda e qualquer forma de espiritualidade, incluindo manifestações legítimas do pensamento místico, simbólico e transcendente do ser humano.
Essa crítica indiscriminada à espiritualidade, com raízes em uma leitura reducionista do materialismo histórico, pode parecer coerente à primeira vista – afinal, as religiões organizadas foram e continuam sendo utilizadas como instrumentos de dominação. Contudo, ao rejeitar completamente o fenômeno espiritual, essa ala radical comete um erro estratégico e filosófico profundo: ignora que o anseio espiritual é uma dimensão constitutiva da experiência humana, presente em todas as culturas, e que pode ser não só emancipadora, mas também catalisadora de lutas por justiça, solidariedade e transformação social.
O Preconceito Antiespiritual como Herança do Materialismo Dogmático
Desde Marx e Engels, há críticas contundentes à religião como "ópio do povo" – ou seja, uma forma de alienação que impede o proletariado de perceber sua condição de exploração. Essa crítica, embora válida no contexto histórico do século XIX, foi cristalizada em muitas correntes marxistas como um dogma. No século XX, regimes comunistas como o soviético e o chinês perseguiram abertamente religiões, destruindo templos, proibindo práticas espirituais e promovendo uma visão de mundo estritamente materialista e científica, muitas vezes sob o manto do "racionalismo revolucionário".
A consequência foi o apagamento forçado de tradições espirituais milenares e a criminalização de formas alternativas de religiosidade – inclusive aquelas que resistiam à opressão estatal. Essa mentalidade ainda sobrevive, de modo velado ou explícito, em muitos círculos de esquerda radical, que associam qualquer expressão espiritual à alienação ou à manipulação ideológica, desconsiderando o potencial libertador de muitas dessas práticas.
Espiritualidade e Resistência: Uma Relação Histórica Ignorada
O que esses setores esquecem – ou deliberadamente ignoram – é que a espiritualidade não é propriedade da direita nem da religião institucional. Movimentos de resistência em todo o mundo se basearam em cosmovisões espirituais para fortalecer suas lutas. No Brasil, comunidades quilombolas, povos indígenas e movimentos populares como as Comunidades Eclesiais de Base usaram a fé e o sagrado como ferramentas de resistência ao colonialismo, à escravidão e à ditadura. A Teologia da Libertação é um exemplo notável de como a espiritualidade pode ser aliada da justiça social, e não sua inimiga.
Além disso, práticas espirituais não-religiosas – como a meditação, o xamanismo contemporâneo, a Umbanda, o espiritismo progressista, as tradições orientais e os movimentos esotéricos – têm ajudado indivíduos a curar traumas, lidar com o sofrimento psíquico e encontrar sentido em um mundo frequentemente desumanizador. Rejeitar todas essas manifestações como "irracionais" ou "regressivas" é não apenas uma forma de intolerância, mas também uma negação da pluralidade de caminhos que as pessoas têm para se conectar com algo maior do que si mesmas.
Um Aliado Estratégico na Luta Contra o Extremismo
A demonização da espiritualidade pela esquerda radical enfraquece uma frente ampla e pluralista de resistência ao extremismo religioso. Ao desprezar as formas não dogmáticas e libertárias de espiritualidade, essa esquerda se isola e perde a oportunidade de dialogar com amplas camadas da população que, embora desejem mudanças sociais profundas, também têm uma vivência espiritual significativa. Isso é especialmente verdadeiro em países como o Brasil, onde o sagrado faz parte do cotidiano de milhões de pessoas, e onde os movimentos progressistas que dialogam com a espiritualidade têm tido maior impacto popular.
É fundamental compreender que a luta contra a instrumentalização da religião pelo autoritarismo não exige o apagamento da espiritualidade, mas sim a sua redescoberta como espaço de liberdade, pluralismo e criatividade simbólica. O combate ao fanatismo religioso não se faz com fanatismo antiespiritual, mas com discernimento, diálogo e respeito à complexidade humana.
Nem o Golpe da Fé, Nem o Golpe da Razão
É hora de abandonar as visões radicais que jogam a criança, a bacia e a água do banho fora. A espiritualidade é uma dimensão legítima da mente humana e pode ser uma aliada poderosa na construção de um mundo mais justo, sensível e verdadeiramente democrático. Negá-la em nome de um racionalismo estreito só fortalece os inimigos que fingem representar o sagrado enquanto destroem os princípios éticos mais fundamentais.
A esquerda que deseja ser transformadora precisa ir além da crítica ao abuso religioso e abrir espaço para novas formas de espiritualidade – críticas, livres, poéticas e profundamente humanas. É aí que reside a chance de uma verdadeira revolução cultural: aquela que une razão e sensibilidade, justiça e transcendência, o político e o sagrado.
Parte 2
O Sagrado em Mãos Erradas: Como a Extrema Direita Distorce a Religião
e Dá Munição ao Radicalismo Antiespiritual da Esquerda
Se há um fator que compromete profundamente a relação entre espiritualidade e transformação social, é a forma como o conservadorismo religioso – especialmente em suas versões mais extremistas – sequestra o sagrado para justificar projetos de poder autoritário, elitista e muitas vezes violento. No Brasil e em outros contextos globais, a ascensão da extrema direita tem caminhado de mãos dadas com uma apropriação distorcida da religião, criando uma teologia do medo, da exclusão e da dominação, que se afasta radicalmente de qualquer essência espiritual autêntica.
Esse uso político da fé, calcado em interpretações literais e dogmáticas, é um dos maiores responsáveis pela crescente rejeição à espiritualidade por parte de setores da esquerda mais radical. Quando o sagrado é transformado em arma de guerra ideológica, é compreensível que os oprimidos, os excluídos e os críticos do sistema comecem a desconfiar de qualquer discurso espiritual – mesmo os que poderiam libertar em vez de aprisionar. No fundo, o fundamentalismo religioso de direita é um dos grandes responsáveis pela degradação do debate espiritual no campo político.
Religião Como Ferramenta de Poder: A Teologia da Autoridade
A extrema direita, em seus projetos de poder, utiliza a religião não como expressão do mistério, da ética ou da comunhão com o transcendente, mas como ferramenta de controle social e justificação de injustiças. Isso se dá por meio de um discurso moralista e hipócrita, que prega valores "tradicionais" enquanto normaliza a corrupção, o racismo, o machismo e a violência contra minorias. É a "fé" que abençoa armas, santifica líderes populistas e acoberta práticas inaceitáveis em nome de um suposto "plano divino".
No Brasil, vimos como essa lógica transformou igrejas em palanques eleitorais, líderes religiosos em correligionários políticos e a Bíblia em instrumento de manipulação emocional. Esse uso deturpado da religião não só banaliza o sagrado, mas também o corrompe. E o resultado é perverso: em vez de conectar as pessoas a algo maior, a espiritualidade se torna veículo de fanatismo, intolerância e segregação.
O Espetáculo do Sagrado – Performance e Manipulação
A extrema direita não se contenta em instrumentalizar a religião; ela transforma o sagrado em espetáculo. Cultos são usados como palcos para discursos políticos, unções simbólicas são feitas em armas, objetos religiosos são misturados a símbolos do nacionalismo agressivo, e líderes se apresentam como "ungidos" acima de qualquer crítica. Essa teatralização do divino esvazia a espiritualidade de qualquer profundidade mística, reduzindo-a a performance de poder e obediência.
Esse tipo de religião performática tem impacto direto na forma como a espiritualidade é percebida pelas gerações mais jovens, pelos intelectuais e pelos ativistas sociais. Quando tudo que se vê da espiritualidade nos meios de comunicação é o fanatismo político-religioso, é natural que surja a rejeição ao próprio conceito de sagrado. A imagem da espiritualidade como ferramenta de opressão se cristaliza – e isso fornece a justificativa perfeita para a crítica totalizante da esquerda radical.
A Esquerda Radical Reage, Mas Não Compreende
Setores da esquerda marxista mais radical, ao reagirem contra esses abusos religiosos, acabam jogando fora a espiritualidade como um todo – em parte porque nunca se permitiram compreendê-la de forma fenomenológica, existencial ou simbólica. Enxergam a religião como mera ideologia – "ópio" ou "ferramenta de alienação" – sem perceber que a busca espiritual, em sua essência, é um impulso humano legítimo e profundo, que pode tanto alienar quanto libertar, dependendo do modo como é vivida e interpretada.
Essa incompreensão mútua gera um ciclo vicioso: quanto mais a direita fundamentalista abusa da religião, mais a esquerda radical a rejeita; quanto mais a espiritualidade é associada à opressão, menos espaço se dá para experiências espirituais libertadoras. E assim, perdem-se as pontes possíveis entre o sagrado e a justiça social.
Espiritualidade Autêntica Que Rompe Com o Poder e o Fanatismo
É preciso romper com essa lógica binária e reconhecer que existe uma espiritualidade que não serve ao poder, mas à transformação. Que não exclui, mas acolhe. Que não aliena, mas desperta. Essa espiritualidade está presente em tradições místicas como o Sufismo islâmico, o Cristianismo dos marginalizados, o Budismo engajado, as religiões indígenas e afro-brasileiras, o espiritismo progressista e tantas outras formas de religiosidade popular que têm sido ignoradas tanto pela direita reacionária quanto pela esquerda materialista.
A defesa dessa espiritualidade não é conivente com o fundamentalismo. Pelo contrário: ela é a sua antítese. A espiritualidade autêntica questiona o poder, dissolve os egoísmos, promove a compaixão e denuncia os falsos profetas. Ela é revolucionária, não porque busca tomar o poder do outro, mas porque subverte as estruturas internas e externas de dominação. E por isso, tanto a direita quanto a esquerda radicais a temem: porque ela não se deixa capturar.
O Sagrado Precisa Ser Resgatado
A tarefa urgente do nosso tempo é resgatar a espiritualidade das garras da extrema direita e devolvê-la ao seu lugar legítimo: o do mistério, da ética, da busca de sentido e da comunhão entre os seres. Enquanto o sagrado for usado como escudo para o ódio e como máscara para a opressão, ele continuará dando razão à crítica daqueles que o rejeitam por completo.
Mas se houver coragem para distinguir o uso perverso da religião de sua essência espiritual profunda, poderemos construir novas formas de convivência entre espiritualidade e política – formas que não oprimem, mas libertam. O combate ao extremismo religioso passa, necessariamente, por um resgate da espiritualidade como experiência humana legítima, que não pertence nem à direita nem à esquerda, mas à humanidade como um todo.
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