terça-feira, 2 de junho de 2020

Budismo e Antifascismo: uma proposição

Por Paulo Stekel & Joaquim Monteiro


Estabelecer-se no estágio sem retrocesso na existência presente
ouvindo e refletindo sobre o Dharma.


O fascismo bate à porta do Darma

Volta e meia, as ideias fascistas – as mesmas que inspiraram o nazismo – retornam com novas roupagens, mas com o mesmo conteúdo: elitismo (que inspirou a eugenia), ódio ao contraditório, propaganda falsa (hoje, fake news), perpetuamento do poder (o Império de Mil Anos!), uso da força coercitiva cruel em níveis absurdos, ultranacionalismo (com boas doses de hipocrisia, como vemos atualmente no uso de bandeiras de Israel e EUA no lugar da bandeira do Brasil), arregimentação de uma massa de manobra fanática e irracional (por isso, a ciência e os intelectuais são os primeiros a serem atacados) e a crença em uma hierarquia social natural e no domínio das elites (donde o crescente racismo e o ataques a pobres, índios e menos favorecidos).

Independente do que diga a ignorância weintraubesca da massa de manobra atual no Brasil, o fascismo sempre se opõe tanto ao liberalismo, quanto ao marxismo, ao socialismo e ao anarquismo, posicionando-se, portanto, na extrema-direita do espectro político tradicional. E, por isso, é tão perigoso: todos são seus inimigos, reais e imaginários!

Para alguns, o que vivenciamos hoje no Brasil é uma espécie de “fascismo sutil” dentro de uma “ditadura sutil”. A ditadura até pode (ainda) ser sutil, mas o fascismo tupiniquim, tão ridículo quanto o Integralismo de Plínio Salgado, não é nada sutil. Seu descaso com a vida humana é o que há de mais perigoso nele.

E, como nós, budistas, encaramos este distópico momento? Afinal, o fascismo já bate à porta do Darma e é preciso que cada um se posicione.

O mito do budista neutro

Meu amigo de tantos anos e também um irmão no Dharma da mais alta estirpe, o Prof. Joaquim Monteiro, que divide a autoria deste texto comigo, tem respostas claras a questão:

Mesmo em um momento como o nosso, marcado, por um lado, pela séria ameaça à vida e à saúde representada pela pandemia da Covid-19 e, por outro, pelos avanços na direção do fascismo promovidos por um governo criminoso e genocida, ainda existem alguns budistas que não só se recusam a assumir uma postura decididamente antifascismo, como chegam até mesmo a criticar as ações e as posturas antifascismo que começam a se fazer presentes no seio das Sanghas budistas.

Assim sendo, como devemos pensar este problema?

Caso esta questão seja pensada a partir de um ponto de vista mais abstrato, é possível dizer claramente que o ódio fascista decorre diretamente da ignorância que se constitui como o fator central que impulsiona a continuidade do Sansara, e que sem superar este ódio não é possível em momento algum a ruptura com este mesmo Sansara. Ao mesmo tempo, é possível situar o racismo como uma expressão da “arrogância do átman” conforme elucidada pela escola Yogacãra, e que me leva a pensar a relação com nossas e nossos semelhantes apenas em termos de superioridade ou de inferioridade, arrogância esta que precisa ser radicalmente superada no processo de transmutação da consciência. No entanto, não pretendo adotar esta perspectiva no contexto da presente intervenção.

Parece perfeitamente claro que o mito da neutralidade budista diante da ética e da política começou a ruir em nosso país durante o vergonhoso golpe encetado contra a democracia brasileira em 2016, momento este em que diversas lideranças budistas brasileiras assumiram a defesa deste golpe da forma mais abjeta, covarde e irresponsável. Não tenho até o presente momento notícia de alguma autocrítica por parte dessas lideranças, mas o ponto mais importante aqui é que foi precisamente neste período histórico que começou a ruir e a se esfacelar o mito da “neutralidade budista”. Não existe dificuldade alguma em apontar para o caráter falacioso desta postura a partir de uma análise rigorosamente calcada no pensamento budista, mas acredito que seja indispensável colocar por terra de uma vez por todas as falácias que justificam esta postura.

Existem algumas questões que me veem à mente com muita intensidade no momento em que situo meu percurso de vida em meio a uma compreensão da história em termos da realidade dos três tempos conforme elucidada pela escola Sarvãstivãda. A primeira delas foi que o sentimento de impermanência que consumiu minha juventude e que me conduziu ao Budismo foi vivenciado em meio ao terror instituído pela ditadura empresarial-militar que se instalou em 1964. Ou seja, para mim, a impermanência possui um vínculo concreto com o tempo histórico, o sofrimento inerente à finitude da condição humana é inseparável do sofrimento derivado de situações históricas opressivas. A segunda é que todo meu aprendizado do Budismo nos dezoito anos de minha atuação no Japão teve por seu tema central a responsabilidade das ordens budistas japonesas e do pensamento budista japonês na legitimação ideológica das guerras genocidas promovidas pelo militarismo japonês, militarismo este aliado da política nazifascista. Não se constitui em exagero algum afirmar que todo pensamento budista do pós-guerra japonês teve seu ponto de partida em uma autocrítica severa e contundente a respeito desta responsabilidade de guerra. Assim sendo, não é exagero dizer que a ruptura com o mito da neutralidade budista se constitui como a condição mesma do esclarecimento do ensinamento de Buda no atual contexto histórico brasileiro.

Em função do acima, não só aplaudo e saúdo as corajosas posturas antifascismo conforme presentes nas manifestações dos últimos dias, como gostaria de convocar as e os budistas brasileiras(os) a assumirem de forma contundente a responsabilidade pelo ensinamento de Buda em meio à mais trágica e mais radical crise já enfrentada pela sociedade brasileira!!!

Uma revolução de lucidez

Como diz o amigo Joaquim Monteiro, e reitero, o mito da neutralidade budista, distorção muito comum no budismo brasileiro, deve ser rompido. Mas, quantos mestres, líderes e praticantes budistas estão dispostos a isso, considerando a contra investida certa?

Até o momento, além de Joaquim Monteiro (Budismo Shin), o Lama Jigme Lhawang, da Linhagem Drukpa do Budismo dos Himalaias, foi um dos únicos que se pronunciou com veemência em sua página no Facebook (confiram em https://www.facebook.com/pg/dragon.lama.jigme.lhawang). Eis alguns trechos do que ele publicou por lá, nos últimos dias:

Chegou a hora de mostrar a potência dos 70% que não coadunam com visões pequenas que não alcançam a diversidade humana e planetária.

(…) Um só país não está acima de tudo! Um só Deus não está acima de todos! Fazemos parte de algo muito maior, a riqueza da diversidade de culturas, pensamentos e espiritualidades.

(…) Aquele que não inclui em seu coração e consciência toda esta riqueza, não pode ser colocado a cargo da função de protegê-la e conduzi-la ao florescimento.

Já vimos o suficiente, já permitimos o inaceitável.

(…) Não há economia se não há vida. É a vida que traz algum sentido para a economia. A preservação da vida em primeiro lugar, incluindo não só a vida humana, mas a vida animal e a vida do meio, do ambiente, onde vivemos - a vida de nosso planeta! A economia se reinventará, se reorganizará e se configurará com seu verdadeiro propósito - servir a vida! E não o contrário!

(…) População armada, para quê? A necessidade de uma arma é o resultado de uma mentalidade estreita, uma perspectiva de curto alcance, ignorante, porque ignora as causas primárias criadoras desta necessidade e se justifica nos sintomas de um sistema elitista que é um dos elementos construtor de tais cenários. O que testemunhamos em nossa sociedade é criado pela sociedade e não algo natural. É construído através de uma cadeia de atitudes, percepções de mundo - uma cultura ineficaz que se instalou na psique de alguns grupos humanos.

Fatos nos mostram que, ao contrário da premissa de que uma arma protege, ela cria situações de mais risco, violência e descontrole. As armas despertam um excesso de confiança, super poder, e superioridade destacando e potencializando desequilíbrios emocionais como a hostilidade, o autocentramento, a imposição, repressão e a brutalidade.

Que nosso povo possa se armar sim, das verdadeiras armas contra a ignorância, ganância e hostilidade - o armamento que é a verdadeira e grandiosa potência humana - a consciência, benevolência e a compaixão!

Não há culpados. Não há inimigos. Há ignorância. Ignorância, enquanto ignorar aquilo que já sabemos e desconhecimento enquanto o não reconhecimento das estruturas internas que regem nosso comportamento, raciocínio e intenções.

Sigamos em prol de uma revolução de lucidez e uma cultura de excelência no domínio interno, que é a fonte central nas manifestações de nossa sociedade. Por uma educação do coração e da consciência!”

Palavras necessárias mais do que nunca! Óbvio que a estas palavras seguiram-se comentários acirrados de “budistas bolsonaristas” (uma contradição lógica!), criticando a postura do Lama como sendo “política” e “polarizada”.

O nível de pós-verdade a que chegamos é inenarrável. O budismo prima pela busca da Verdade, a Verdade sobre a nossa natureza, a natureza da mente, a natureza de Buda. Não pode, de modo algum, compactuar com ideias anti-verdade, noções esquizoides que pretendem que a verdade dos fatos foi cancelada e depende meramente de opinião pessoal. Mesmo quando os fatos estão confirmados, os adeptos da pós-verdade não retiram os antolhos e só aceitam o que os beneficia de algum modo. Aliando a isso um comportamento agressivo contra quem resiste em defender a verdade, o pensamento fascista vai se estabelecendo cada vez, e requer uma contramedida à altura. A veemência do discurso em prol da verdade é, até aqui, o que mais efetivo pode ser sugerido a budistas e simpatizantes a partir de agora.

Sim, budistas não devem ser violentos, mas também não devem ser ingênuos. Sabemos muito bem os preceitos que devemos seguir e não precisamos que pessoas sem nenhuma espiritualidade, ainda que cristãos, mas hipócritas, nos digam como devemos praticar aquilo sob o qual tomamos refúgio – as Três Joias de Buda, Darma e Sanga. Deveriam eles, sim, lembrar seus próprios compromissos com a vida, com o amor ao próximo e com a Verdade que liberta. Caso contrário, são cegos tentando ensinar a quem enxerga.

O que vemos nascer neste momento é mais que um Budismo Engajado, é um Budismo Revolucionário Engajado, um darma conectado às dores e necessidades dos seres deste planeta, não apenas os humanos, mas todos. E, como disse Lama Lhawang muito bem, deve ser uma “revolução de lucidez”, algo só possível através do rompimento com o mito do budista neutro, como disse Joaquim Monteiro.

Nenhuma revolução sem lucidez produz benefícios, assim como nenhuma neutralidade resolve a questão. Então, aqui declaramos:

Somos budistas antifascistas!




Sobre os autores

Paulo Stekel é praticante budista vajrayana desde 1994 e instrutor de meditação livre não religiosa.


Joaquim Monteiro é professor do Dharma Shin-budista.

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