Por Paulo Stekel & Joaquim Monteiro
Estabelecer-se
no estágio sem retrocesso na existência presente
ouvindo
e refletindo sobre o Dharma.
O fascismo bate à
porta do Darma
Volta e meia, as
ideias fascistas – as mesmas que inspiraram o nazismo – retornam
com novas roupagens, mas com o mesmo conteúdo: elitismo (que
inspirou a eugenia), ódio ao contraditório, propaganda falsa (hoje,
fake news), perpetuamento do poder (o Império de Mil Anos!),
uso da força coercitiva cruel em níveis absurdos, ultranacionalismo
(com boas doses de hipocrisia, como vemos atualmente no uso de
bandeiras de Israel e EUA no lugar da bandeira do Brasil),
arregimentação de uma massa de manobra fanática e irracional (por
isso, a ciência e os intelectuais são os primeiros a serem
atacados) e a crença em uma hierarquia social natural e no domínio
das elites (donde o crescente racismo e o ataques a pobres, índios e
menos favorecidos).
Independente do que
diga a ignorância weintraubesca da massa de manobra atual no Brasil,
o fascismo sempre se opõe tanto ao liberalismo, quanto ao marxismo,
ao socialismo e ao anarquismo, posicionando-se, portanto, na
extrema-direita do espectro político tradicional. E, por isso, é
tão perigoso: todos são seus inimigos, reais e imaginários!
Para alguns, o que
vivenciamos hoje no Brasil é uma espécie de “fascismo sutil”
dentro de uma “ditadura sutil”. A ditadura até pode (ainda) ser
sutil, mas o fascismo tupiniquim, tão ridículo quanto o
Integralismo de Plínio Salgado, não é nada sutil. Seu descaso com
a vida humana é o que há de mais perigoso nele.
E, como nós,
budistas, encaramos este distópico momento? Afinal, o fascismo já
bate à porta do Darma e é preciso que cada um se posicione.
O mito do budista
neutro
Meu amigo de
tantos anos e também um irmão no Dharma da mais alta estirpe, o
Prof. Joaquim Monteiro, que divide a autoria deste texto comigo, tem
respostas claras a questão:
Mesmo em um momento
como o nosso, marcado, por um lado, pela séria ameaça à vida e à
saúde representada pela pandemia da Covid-19 e, por outro, pelos
avanços na direção do fascismo promovidos por um governo criminoso
e genocida, ainda existem alguns budistas que não só se recusam a
assumir uma postura decididamente antifascismo, como chegam até
mesmo a criticar as ações e as posturas antifascismo que começam a
se fazer presentes no seio das Sanghas budistas.
Assim sendo, como
devemos pensar este problema?
Caso esta questão
seja pensada a partir de um ponto de vista mais abstrato, é possível
dizer claramente que o ódio fascista decorre diretamente da
ignorância que se constitui como o fator central que impulsiona a
continuidade do Sansara, e que sem superar este ódio não é
possível em momento algum a ruptura com este mesmo Sansara.
Ao mesmo tempo, é possível situar o racismo como uma expressão da
“arrogância do átman” conforme elucidada pela escola Yogacãra,
e que me leva a pensar a relação com nossas e nossos semelhantes
apenas em termos de superioridade ou de inferioridade, arrogância
esta que precisa ser radicalmente superada no processo de
transmutação da consciência. No entanto, não pretendo adotar esta
perspectiva no contexto da presente intervenção.
Parece perfeitamente
claro que o mito da neutralidade budista diante da ética e da
política começou a ruir em nosso país durante o vergonhoso golpe
encetado contra a democracia brasileira em 2016, momento este em que
diversas lideranças budistas brasileiras assumiram a defesa deste
golpe da forma mais abjeta, covarde e irresponsável. Não tenho até
o presente momento notícia de alguma autocrítica por parte dessas
lideranças, mas o ponto mais importante aqui é que foi precisamente
neste período histórico que começou a ruir e a se esfacelar o mito
da “neutralidade budista”. Não existe dificuldade alguma em
apontar para o caráter falacioso desta postura a partir de uma
análise rigorosamente calcada no pensamento budista, mas acredito
que seja indispensável colocar por terra de uma vez por todas as
falácias que justificam esta postura.
Existem algumas
questões que me veem à mente com muita intensidade no momento em
que situo meu percurso de vida em meio a uma compreensão da história
em termos da realidade dos três tempos conforme elucidada pela
escola Sarvãstivãda. A primeira delas foi que o sentimento de
impermanência que consumiu minha juventude e que me conduziu ao
Budismo foi vivenciado em meio ao terror instituído pela ditadura
empresarial-militar que se instalou em 1964. Ou seja, para mim, a
impermanência possui um vínculo concreto com o tempo histórico, o
sofrimento inerente à finitude da condição humana é inseparável
do sofrimento derivado de situações históricas opressivas. A
segunda é que todo meu aprendizado do Budismo nos dezoito anos de
minha atuação no Japão teve por seu tema central a
responsabilidade das ordens budistas japonesas e do pensamento
budista japonês na legitimação ideológica das guerras genocidas
promovidas pelo militarismo japonês, militarismo este aliado da
política nazifascista. Não se constitui em exagero algum afirmar que
todo pensamento budista do pós-guerra japonês teve seu ponto de
partida em uma autocrítica severa e contundente a respeito desta
responsabilidade de guerra. Assim sendo, não é exagero dizer que a
ruptura com o mito da neutralidade budista se constitui como a
condição mesma do esclarecimento do ensinamento de Buda no atual
contexto histórico brasileiro.
Em função do
acima, não só aplaudo e saúdo as corajosas posturas antifascismo
conforme presentes nas manifestações dos últimos dias, como
gostaria de convocar as e os budistas brasileiras(os) a assumirem de
forma contundente a responsabilidade pelo ensinamento de Buda em meio
à mais trágica e mais radical crise já enfrentada pela sociedade
brasileira!!!
Uma revolução
de lucidez
Como diz o amigo
Joaquim Monteiro, e reitero, o mito da neutralidade budista,
distorção muito comum no budismo brasileiro, deve ser rompido. Mas,
quantos mestres, líderes e praticantes budistas estão dispostos a
isso, considerando a contra investida certa?
Até o momento, além
de Joaquim Monteiro (Budismo Shin), o Lama Jigme Lhawang, da Linhagem
Drukpa do Budismo dos Himalaias, foi um dos únicos que se pronunciou
com veemência em sua página no Facebook (confiram em
https://www.facebook.com/pg/dragon.lama.jigme.lhawang).
Eis alguns trechos do que ele publicou por lá, nos últimos dias:
“Chegou a hora
de mostrar a potência dos 70% que não coadunam com visões pequenas
que não alcançam a diversidade humana e planetária.
(…) Um só país
não está acima de tudo! Um só Deus não está acima de todos!
Fazemos parte de algo muito maior, a riqueza da diversidade de
culturas, pensamentos e espiritualidades.
(…) Aquele que
não inclui em seu coração e consciência toda esta riqueza, não
pode ser colocado a cargo da função de protegê-la e conduzi-la ao
florescimento.
Já vimos o
suficiente, já permitimos o inaceitável.
(…) Não há
economia se não há vida. É a vida que traz algum sentido para a
economia. A preservação da vida em primeiro lugar, incluindo não
só a vida humana, mas a vida animal e a vida do meio, do ambiente,
onde vivemos - a vida de nosso planeta! A economia se reinventará,
se reorganizará e se configurará com seu verdadeiro propósito -
servir a vida! E não o contrário!
(…) População
armada, para quê? A necessidade de uma arma é o resultado de uma
mentalidade estreita, uma perspectiva de curto alcance, ignorante,
porque ignora as causas primárias criadoras desta necessidade e se
justifica nos sintomas de um sistema elitista que é um dos elementos
construtor de tais cenários. O que testemunhamos em nossa sociedade
é criado pela sociedade e não algo natural. É construído através
de uma cadeia de atitudes, percepções de mundo - uma cultura
ineficaz que se instalou na psique de alguns grupos humanos.
Fatos nos mostram
que, ao contrário da premissa de que uma arma protege, ela cria
situações de mais risco, violência e descontrole. As armas
despertam um excesso de confiança, super poder, e superioridade
destacando e potencializando desequilíbrios emocionais como a
hostilidade, o autocentramento, a imposição, repressão e a
brutalidade.
Que nosso povo
possa se armar sim, das verdadeiras armas contra a ignorância,
ganância e hostilidade - o armamento que é a verdadeira e grandiosa
potência humana - a consciência, benevolência e a compaixão!
Não há
culpados. Não há inimigos. Há ignorância. Ignorância, enquanto
ignorar aquilo que já sabemos e desconhecimento enquanto o não
reconhecimento das estruturas internas que regem nosso comportamento,
raciocínio e intenções.
Sigamos em prol
de uma revolução de lucidez e uma cultura de excelência no domínio
interno, que é a fonte central nas manifestações de nossa
sociedade. Por uma educação do coração e da consciência!”
Palavras necessárias
mais do que nunca! Óbvio que a estas palavras seguiram-se
comentários acirrados de “budistas bolsonaristas” (uma
contradição lógica!), criticando a postura do Lama como sendo
“política” e “polarizada”.
O nível de
pós-verdade a que chegamos é inenarrável. O budismo prima pela
busca da Verdade, a Verdade sobre a nossa natureza, a natureza da
mente, a natureza de Buda. Não pode, de modo algum, compactuar com
ideias anti-verdade, noções esquizoides que pretendem que a verdade
dos fatos foi cancelada e depende meramente de opinião pessoal.
Mesmo quando os fatos estão confirmados, os adeptos da pós-verdade
não retiram os antolhos e só aceitam o que os beneficia de algum
modo. Aliando a isso um comportamento agressivo contra quem resiste
em defender a verdade, o pensamento fascista vai se estabelecendo
cada vez, e requer uma contramedida à altura. A veemência do
discurso em prol da verdade é, até aqui, o que mais efetivo pode
ser sugerido a budistas e simpatizantes a partir de agora.
Sim, budistas não
devem ser violentos, mas também não devem ser ingênuos. Sabemos
muito bem os preceitos que devemos seguir e não precisamos que
pessoas sem nenhuma espiritualidade, ainda que cristãos, mas
hipócritas, nos digam como devemos praticar aquilo sob o qual
tomamos refúgio – as Três Joias de Buda, Darma e Sanga. Deveriam
eles, sim, lembrar seus próprios compromissos com a vida, com o amor
ao próximo e com a Verdade que liberta. Caso contrário, são cegos
tentando ensinar a quem enxerga.
O que vemos nascer
neste momento é mais que um Budismo Engajado, é um Budismo
Revolucionário Engajado, um darma conectado às dores e necessidades
dos seres deste planeta, não apenas os humanos, mas todos. E, como
disse Lama Lhawang muito bem, deve ser uma “revolução de
lucidez”, algo só possível através do rompimento com o mito do
budista neutro, como disse Joaquim Monteiro.
Nenhuma revolução
sem lucidez produz benefícios, assim como nenhuma neutralidade
resolve a questão. Então, aqui declaramos:
Somos budistas
antifascistas!
Sobre
os autores
Paulo Stekel é
praticante budista vajrayana desde 1994 e instrutor de meditação
livre não religiosa.
Joaquim Monteiro
é professor do Dharma Shin-budista.
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