quinta-feira, 4 de julho de 2019

McMindfulness: a perda do sentido filosófico no Mindfulness

Por Morten Tolboll (tradução feita por Paulo Stekel do artigo original https://mortentolboll.blogspot.com/2018/12/mindfulness-and-loss-of-philosophy.html)


Atualmente, a meditação geralmente é associada ao mindfulness [atenção plena], no qual a filosofia, a espiritualidade e a religiosidade tem sido reduzidas a uma psicologia e uma psicoterapia (pense só em como o termo “eticamente neutro” do moderno mindfulness é percebido como algo positivo). Em outras palavras: o mindfulness se converteu no que chamo de uma mitologia da autenticidade.

A psicologia clínica e a psiquiatria, desde a década de 1970, desenvolveram uma série de aplicações terapêuticas baseadas no mindfulness para ajudar às pessoas que experimentam uma variedade de condições psicológicas. A prática do mindfulness é empregada para reduzir os sintomas da depressão, para reduzir o estresse, a ansiedade e a adicção a drogas.

Tem sido adotados programas baseados no de Kabat-Zinn [o proponente do moderno mindfulness], e modelos similares, em escolas, prisões, hospitais, centros de veteranos e outros lugares, e estão sendo aplicados programas de mindfulness para se obter resultados adicionais, como o envelhecimento saudável, o controle de peso, o rendimento esportivo, a ajuda às crianças com necessidades especiais e como intervenção durante o período pré-natal.

A revolução do mindfulness parece oferecer uma panaceia universal para resolver quase todas as áreas de preocupação cotidiana. Os livros recentes sobre o tema incluem: criança consciente, alimentação consciente, educação consciente, política consciente, terapia consciente, liderança consciente, uma nação consciente, recuperação consciente, o poder da aprendizagem consciente, o cérebro consciente, o caminho consciente através da depressão, o caminho consciente para a autocompaixão. O que os cientistas chamam de aplicações “éticamente neutras” são, com frequência, técnicas subjetivas, sofisticadas e, em absoluto, neutras.

Vários estudiosos criticam a maneira como se está definindo ou representando o mindfulness nas publicações recentes de psicologia ocidental. Estas formas modernas de compreender o mindfulness se afastam significativamente do que se encontra nos primeiros textos budistas e nos comentários autorizados das tradições Theravada e Mahayana.

A popularização do mindfulness como “mercadoria” (commodity) está sendo criticada, e alguns críticos a chamam de “McMindfulness”. Segundo Jeremy Safran, a popularidade do mindfulness é o resultado de uma estratégia de marketing:

McMindfulness é a comercialização de um sonho construído, um estilo de vida idealizado, uma mudança de identidade”.

Segundo Purser e Loy, o mindfulness não está sendo utilizado como meio para despertar a compreensão das “raízes doentias do apego, da raiva e da ignorância”, mas está se transformando em uma “técnica banal, terapêutica e de autoajuda” que tem o efeito contrário: o reforço destas atitudes doentias. Ainda que o mindfulness esteja sendo comercializando como um meio para reduzir o estresse, no contexto budista forma parte de um programa ético ao qual se integra com o propósito de fomentar la “ação correta, a harmonia social e a compaixão”. A privatização do mindfulness não leva em conta as causas sociais e organizacionais do estresse e do mal-estar, mas, pelo contrário, promove a adaptação a tais circunstâncias.

Segundo Bhikkhu Bodhi, “sem uma crítica social aguda, as práticas budistas poderiam ser usadas facilmente para justificar e estabilizar o status quo, convertendo-se em um reforço do capitalismo consumista”. A popularidade da nova marca mindfulness está mercantilizando a meditação através de livros de autoajuda, aulas de meditação guiada e retiros de mindfulness.

Os mestres budistas criticam que este movimento se apresente como equivalente à prática budista, quando na realidade supõe uma desnaturalização do budismo com consequências indesejáveis, como não fundamentar-se na moral reflexiva tradicional e, portanto, afastar-se da ética budista tradicional. As críticas denunciam tanto esta amoralização como a remoralização segundo uma ética clínica. O conflito se apresenta mais com relação às credenciais e qualificações do mestre, que com relação à prática real do estudante. As práticas influenciadas por um budismo reformado estão se tornando padronizadas e baseadas em manuais, separando-se claramente do budismo que é percebido como uma religião confinada aos monastérios, e se expressa nos centros de meditação modernos como um mindfulness baseado em uma nova ética psicológica.

No contexto tradicional, a filosofia é uma parte central do mindfulness. Há, especialmente, dois aspectos que o indicam: a indagação e o discernimento.

1) A indagação (pali: vichara)

Os grandes mestres praticaram a indagação filosófica, isto é, não uma mera investigação intelectual como na filosofia acadêmica, e tampouco no sentido de repetir um mantra, não. Sua indagação filosófica constitui um caminho meditativo-existencial, como o praticado no silêncio sem palavras dentro de uma poderosa indagação existencial. Como disse Platão: “a filosofia começa com a indagação. Provavelmente conheças o assombro que se sente quando miras as estrelas ou quando enfrentas o sofrimento do mundo. Este assombro te enche com um silêncio no qual todos os pensamentos, explicações e interpretações desaparecem num instante. É neste silêncio em que alguém se faz as grandes perguntas filosóficas, abertas para dentro e para fora, escutando e observando, sem palavras, sem avaliações”.

Contudo, a maioria das pessoas perde este silêncio à medida que crescem e se satisfazem com explicações e interpretações. E, essa é a diferença entre os grandes mestres e as pessoas comuns. Os grandes mestres tinham um forte desejo de algo não exprimível, de algo que não se pode satisfazer com explicações e interpretações, talvez um anseio de despertar ou de realização. Com todo o corpo, com vida e sangue, com a alma e o espírito, com o cérebro e o coração, indagaram pela vida afora e indagaram a si mesmos. Indagaram tudo e o fizeram de modo meditativo, como se tudo fosse algo completamente novo. Devido a que este questionamento e indagação filosóficos constitui uma técnica de meditação central, a consciência se abre à Fonte. Em outras palavras, utilizaram questões filosóficas como koans universais. Todas as demais práticas espirituais só foram usadas para apoiar esta indagação.

2) Discernimento (pali: viveka)

“A princípio, o mindfulness se caracteriza pelo fato de que te permite dar-te conta, como tu mesmo descobriu uma vez ou outra, de que já faz muito tempo que vives abstraído em teu pensamento, avaliando, comparando, esperando e te preocupando, e de que de vez em quando isso distrai os teus pensamentos. Por isso, esta é uma parte importante do treinamento. Ela trata de que tomes consciência deste fato e de que tenhas uma mente sóbria de vez em quando, de que saias deste fluxo de palavras e imagens que se produz automaticamente.” Foi esta prática que Shankara chamou a Coroa do Discernimento. Dia a dia e ano após ano, é necessário manter claro o nível de discernimento. Isto se faz discernindo entre a observação neutra e a distração, de novo e de novo.

Assim é como se começa a pensar criticamente e a elaborar argumentos racionais. Implica uma clarificação dos pensamentos. No pensamento crítico ocupa uma posição central o discernimento entre sujeito e objeto, sonho e realidade, engano ou ilusão e verdade ou realidade.

O pensamento crítico e, portanto, o discernimento, são virtudes centrais na espiritualidade tradicional. Os místicos dominicanos chamam a estes passos discriminatio, a capacidade de discernir entre o uso mundano ou religioso da energia. Os orientais a chamam viveka, discernimento, a capacidade de usar a vontade como uma parte da energia para dirigi-la a si mesmo, através de práticas como a oração, os mantras ou a meditação, em vez de através do sucesso profissional, da mundanidade ou do desenvolvimento pessoal.

Segundo Rao e Paranjpe, viveka pode ser explicada mais detalhadamente como:

Sentido de discernimento; sabedoria; discernimento entre o real e o irreal, entre o eu e o não-eu, entre o permanente e o impermanente; indagação discriminativa; correto discernimento intuitivo; discernimento sempre presente entre o transitório e o permanente”.


Em seu artigo Neo-Advaita orPseudo-Advaita and Real Advaita-Nonduality (Não-dualidade Neo-Advaita ou Pseudo-Advaita e Real Advaita), Timothy Conway se opõe à tendência moderna em centrar-se apenas no mindfulness, e escreve sobre a necessidade do pensamento crítico e do discernimento em uma prática espiritual:

Alguns mestres espirituais e seus discípulos estão fechados num ponto de vista que os obriga a ver o que acontece somente como ‘bom’ ou somente como ‘perfeito’ ou, inclusive, como ‘nada acontece realmente’, e abandonaram toda a capacidade de avaliar os fenômenos e de distinguir o que podemos chamar de os 3 níveis da realidade não dual:

Nível 3: o nível convencional de “apropriado e inapropriado”, “útil e danoso”, “correto e incorreto”, “justiça e injustiça”, “acima e abaixo”, “feminino e masculino”, etc .

Nível 2: a “verdade celestial” segundo a qual tudo o que ocorre a todas as almas imortais é “perfeito”, a “manifestação requintada da Vontade Divina”, o “jogo perfeito de Consciência” que leva estas almas à Realização de Deus.

Nível 1: a Realidade Absoluta, na qual se compreende que tudo o que ocorre é um sonho, de modo que nada acontece realmente, não existem mundos distintos, não existem seres distintos, não há multiplicidade, somente Deus, somente Consciência Divina.

É um grande paradoxo que a Realidade não dual tenha estes diferentes níveis de verdade, mas isto é algo que se vê confirmado por textos e ensinamentos de orientação não dualista de sábios de diferentes culturas sobre a natureza da Realidade no nível convencional, no nível da verdade celestial e no nível da verdade absoluta (que, estritamente falando, não é um “nível”, mas a Realidade única, absolutamente verdadeira, enquanto que os níveis 2 e 3 são “relativamente verdadeiros”, dependentes da Realidade Absoluta ou Parabrahman).

O ponto relevante aqui é que as pessoas que não honram simultaneamente estes três “níveis” de Realidade, especialmente o nível convencional (nível 3 no modelo acima), pensam erroneamente que usar o discernimento ou o pensamento crítico, ou seja, criticar qualquer forma de pensamento ou comportamento, significa “ser negativo” ou “iludido” ou “usar a cabeça, não o coração”. (Na realidade, um verdadeiro sábio é livre para utilizar tanto a cabeça como o coração como instrumentos de consciência, sensibilidade e capacidade de resposta).

Contudo, o pensamento crítico é a arte antiga, expressa no nível convencional da realidade cotidiana, de avaliar as crenças e o comportamento consequente, em benefício do bem individual e do bem comum, aquele que nos serve plenamente, não nos debilita nem nos desequilibra. O pensamento crítico pode 1) identificar qualquer pensamento defeituoso, auto-engano, pontos cegos, distorção, desinformação, propaganda e preconceitos no nível cognitivo de nossos pontos de vista, e 2) identificar atitudes e condutas externas que não sirvam ao nosso bem-estar individual e coletivo, isto é, as atitudes e os comportamentos que não nos liberam nem nos empoderam de verdade e/ou não concordam com uma ética e um sistema de valores que promovam a liberação autêntica, a justiça e a igualdade.

Um artigo informativo da Wikipédia sobre o tema diz que o pensamento crítico valoriza “a clareza, a credibilidade, a precisão, a profundidade, a amplitude, a lógica, a importância e a equidade”. Não é de estranhar que os especialistas no campo da psicologia e da educação creiam que nossa sociedade e nossas escolas necessitam de muito mais ênfase, não menos ênfase, nas habilidades do pensamento crítico, de modo que possamos funcionar melhor a partir de fatos e premissas sólidas, não de delírios, mentiras, meias verdades e preconceitos. Por exemplo, no âmbito da política, da saúde, das corporações e dos meios de comunicação, e certamente no campo da religião e da espiritualidade, é necessário um pensamento muito mais crítico, não menos, para diferenciar o fato da ficção, a verdade da mentira, o apropriado do inapropriado, o bem do mal.

A antiga Índia desenvolveu uma sã tradição de pensamento crítico e debate, debatendo sobre os méritos e desvantagens de certas posições filosóficas e/ou metafísicas e estilos comportamentais de vida. Os sábios dos Upanishads, Buda, Nagarjuna, Sahnkara e outros famosos luminares espirituais mostram com força esta salutar tendência de crítica construtiva e debate. O mesmo ocorre com a antiga sabedoria grega de nossa tradição ocidental. O artigo da Wikipédia sobre “pensamento crítico” explica, como qualquer dicionário grego esclarece, que o verbo krino significa ‘escolher’, ‘decidir’ ou ‘julgar’, e ‘separar’ ou ‘separar o joio do trigo’, ou ‘o que tem valor do que não tem’. Portanto, uma pessoa krino, ou crítica, é alguém que pode discernir, julgar ou arbitrar de maneira útil.

Se diz que Jesus disse: “Não julgueis para não serdes julgado”, mas os Evangelhos indicam que o mesmo Jesus frequentemente julgou e discerniu o bom do que não era bom. Sua mensagem de “não julgues” foi dirigida aos hipócritas, não foi pensada como uma instrução geral para que ninguém jamais se involucrasse em um pensamento crítico sério. E, recordemos que Jesus enfrentou os mercadores e assassinos de animais no Templo de Jerusalém, e os expulsou do lugar.

Portanto, podemos dizer que aqueles que são críticos, têm a capacidade de discernir a verdade do engano e o apropriado do inapropriado.

Um ponto geral a recordar sobre o pensamento crítico e a crítica dos pontos de vista e comportamentos defeituosos, é que sempre devemos nos esforçar para manter a empatia e a humildade e um espírito de “crítica construtiva”. Devemos evitar a crítica destrutiva e toda classe de arrogância, hipocrisia e malícia quando desejamos criticar a falsidade e afirmar uma verdade maior..”

Filosofia significa amor à sabedoria. Com a indagação e o discernimento voltamos ao assombro existencial. À medida que a prática da meditação avança, os pensamentos pessoais começam a se abrir para as imagens originais. Os pensamentos se caracterizarão por perguntas mais comuns e universais: Como pode o ser humano preservar a paz mental e o equilíbrio em todas as relações da vida? Como aprendemos a apreciar os bens verdadeiros e deixamos ir os objetivos transitórios e vãos? O destino do ser humano forma parte de um plano maior?

A filosofia é um aspecto muito central em todas as práticas espirituais tradicionais. Entre as tradições originais de sabedoria estão o gnosticismo e o misticismo dentro do cristianismo primitivo e medieval, o sufismo no islã, o hassidismo e a cabala no judaísmo, o advaita vedanta no hinduísmo, o zen e o Dzogchen no budismo. Na China encontramos o taoismo. Mas, mais velhos são o xamanismo e o paganismo, práticas religiosas a que chamo com um só nome: a religião e a arte antigas.

Sobre o autor


Morten Tolboll é formado em Filosofia e Psicologia. Pratica Yoga e Meditação desde 1985 e durante este período desenvolveu o conceito de “Meditação com uma Arte de Vida” (Meditation as an Art of Life), sobre o qual escreveu uma série de livros. Atualmente, vive como monge em Rold Forest, Dinamarca. Seus escritos foram colocados gratuitamente à disposição pela Internet. Eles enfatizam a importância da filosofia na prática espiritual. Morten pode ser definido como um anarquista espiritual. Seu website: https://mortentolboll.weebly.com/

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