Por Morten
Tolboll (tradução feita por Paulo Stekel do artigo
original
https://mortentolboll.blogspot.com/2018/12/mindfulness-and-loss-of-philosophy.html)
Atualmente,
a meditação geralmente é associada ao mindfulness [atenção
plena], no qual a filosofia, a espiritualidade e a religiosidade tem
sido reduzidas a uma psicologia e uma psicoterapia (pense só em como
o termo “eticamente neutro” do moderno mindfulness é
percebido como algo positivo). Em outras palavras: o mindfulness
se converteu no que chamo de uma mitologia da autenticidade.
A
psicologia clínica e a psiquiatria, desde a década de 1970,
desenvolveram uma série de aplicações terapêuticas baseadas no
mindfulness para ajudar às pessoas que experimentam uma
variedade de condições psicológicas. A prática do mindfulness
é empregada para reduzir os sintomas da depressão, para reduzir o
estresse, a ansiedade e a adicção a drogas.
Tem
sido adotados programas baseados no de Kabat-Zinn [o proponente do
moderno mindfulness], e modelos similares, em escolas,
prisões, hospitais, centros de veteranos e outros lugares, e estão
sendo aplicados programas de mindfulness para se obter
resultados adicionais, como o envelhecimento saudável, o controle de
peso, o rendimento esportivo, a ajuda às crianças com necessidades
especiais e como intervenção durante o período pré-natal.
A
revolução do mindfulness parece oferecer uma panaceia
universal para resolver quase todas as áreas de preocupação
cotidiana. Os livros recentes sobre o tema incluem: criança
consciente, alimentação consciente, educação consciente, política
consciente, terapia consciente, liderança consciente, uma nação
consciente, recuperação consciente, o poder da aprendizagem
consciente, o cérebro consciente, o caminho consciente através da
depressão, o caminho consciente para a autocompaixão. O que os
cientistas chamam de aplicações “éticamente neutras” são, com
frequência, técnicas subjetivas, sofisticadas e, em absoluto,
neutras.
Vários
estudiosos criticam a maneira como se está definindo ou
representando o mindfulness nas publicações recentes de
psicologia ocidental. Estas formas modernas de compreender o
mindfulness se afastam significativamente do que se encontra
nos primeiros textos budistas e nos comentários autorizados das
tradições Theravada e Mahayana.
A
popularização do mindfulness como “mercadoria”
(commodity) está sendo criticada, e alguns críticos a chamam
de “McMindfulness”. Segundo Jeremy Safran, a popularidade do
mindfulness é o resultado de uma estratégia de marketing:
“McMindfulness
é a comercialização de um sonho construído, um estilo de vida
idealizado, uma mudança de identidade”.
Segundo
Purser e Loy, o mindfulness não está sendo utilizado como
meio para despertar a compreensão das “raízes doentias do apego,
da raiva e da ignorância”, mas está se transformando em uma
“técnica banal, terapêutica e de autoajuda” que tem o efeito
contrário: o reforço destas atitudes doentias. Ainda que o
mindfulness esteja sendo comercializando como um meio para
reduzir o estresse, no contexto budista forma parte de um programa
ético ao qual se integra com o propósito de fomentar la “ação
correta, a harmonia social e a compaixão”. A privatização do
mindfulness não leva em conta as causas sociais e
organizacionais do estresse e do mal-estar, mas, pelo contrário,
promove a adaptação a tais circunstâncias.
Segundo
Bhikkhu Bodhi, “sem uma crítica social aguda, as
práticas budistas poderiam ser usadas facilmente
para justificar e estabilizar o status
quo, convertendo-se em um reforço do capitalismo
consumista”. A popularidade da nova marca mindfulness
está mercantilizando a meditação através de livros de autoajuda,
aulas de meditação guiada e retiros de mindfulness.
Os
mestres budistas criticam que este movimento se apresente como
equivalente à prática budista, quando na realidade supõe uma
desnaturalização do budismo com consequências indesejáveis, como
não fundamentar-se na moral reflexiva tradicional e, portanto,
afastar-se da ética budista tradicional. As críticas denunciam
tanto esta amoralização como a remoralização
segundo uma ética clínica. O conflito se apresenta mais com relação
às credenciais e qualificações do mestre, que com relação à
prática real do estudante. As práticas influenciadas por um budismo
reformado estão se tornando padronizadas e baseadas em manuais,
separando-se claramente do budismo que é percebido como uma religião
confinada aos monastérios, e se expressa nos centros de meditação
modernos como um mindfulness baseado em uma nova ética
psicológica.
No
contexto tradicional, a filosofia é uma parte central do
mindfulness. Há, especialmente, dois aspectos que o indicam:
a indagação e o discernimento.
1)
A indagação (pali: vichara)
Os
grandes mestres praticaram a indagação filosófica, isto é, não
uma mera investigação intelectual como na filosofia acadêmica, e
tampouco no sentido de repetir um mantra, não. Sua indagação
filosófica constitui um caminho meditativo-existencial, como o
praticado no silêncio sem palavras dentro de uma poderosa indagação
existencial. Como disse Platão: “a filosofia começa com a
indagação. Provavelmente conheças o assombro que se sente quando
miras as estrelas ou quando enfrentas o sofrimento do mundo. Este
assombro te enche com um silêncio no qual todos os pensamentos,
explicações e interpretações desaparecem num instante. É neste
silêncio em que alguém se faz as grandes perguntas filosóficas,
abertas para dentro e para fora, escutando e observando, sem
palavras, sem avaliações”.
Contudo,
a maioria das pessoas perde este silêncio à medida que crescem e se
satisfazem com explicações e interpretações. E, essa é a
diferença entre os grandes mestres e as pessoas comuns. Os grandes
mestres tinham um forte desejo de algo não exprimível, de algo que
não se pode satisfazer com explicações e interpretações, talvez
um anseio de despertar ou de realização. Com todo o corpo, com vida
e sangue, com a alma e o espírito, com o cérebro e o coração,
indagaram pela vida afora e indagaram a si mesmos. Indagaram tudo e o
fizeram de modo meditativo, como se tudo fosse algo completamente
novo. Devido a que este questionamento e indagação filosóficos
constitui uma técnica de meditação central, a consciência se abre
à Fonte. Em outras palavras, utilizaram questões filosóficas como
koans universais. Todas as demais práticas espirituais só
foram usadas para apoiar esta indagação.
2)
Discernimento (pali: viveka)
“A
princípio, o mindfulness se caracteriza pelo fato de que te
permite dar-te conta, como tu mesmo descobriu uma vez ou outra, de
que já faz muito tempo que vives abstraído em teu pensamento,
avaliando, comparando, esperando e te preocupando, e de que de vez em
quando isso distrai os teus pensamentos. Por isso, esta é uma parte
importante do treinamento. Ela trata de que tomes consciência deste
fato e de que tenhas uma mente sóbria de vez em quando, de que saias
deste fluxo de palavras e imagens que se produz automaticamente.”
Foi esta prática que Shankara chamou a Coroa do Discernimento. Dia a
dia e ano após ano, é necessário manter claro o nível de
discernimento. Isto se faz discernindo entre a observação neutra e
a distração, de novo e de novo.
Assim
é como se começa a pensar criticamente e a elaborar argumentos
racionais. Implica uma clarificação dos pensamentos. No pensamento
crítico ocupa uma posição central o discernimento entre sujeito e
objeto, sonho e realidade, engano ou ilusão e verdade ou realidade.
O
pensamento crítico e, portanto, o discernimento, são virtudes
centrais na espiritualidade tradicional. Os místicos dominicanos
chamam a estes passos discriminatio, a capacidade de
discernir entre o uso mundano ou religioso da energia. Os orientais a
chamam viveka, discernimento, a capacidade de usar a
vontade como uma parte da energia para dirigi-la a si mesmo, através
de práticas como a oração, os mantras ou a meditação, em vez de
através do sucesso profissional, da mundanidade ou do
desenvolvimento pessoal.
Segundo
Rao e Paranjpe, viveka pode ser explicada mais
detalhadamente como:
“Sentido de
discernimento; sabedoria; discernimento entre o real e o irreal,
entre o eu e o não-eu, entre o permanente e o impermanente;
indagação discriminativa; correto discernimento intuitivo;
discernimento sempre presente entre o transitório e o permanente”.
Em
seu artigo Neo-Advaita orPseudo-Advaita and Real Advaita-Nonduality (Não-dualidade
Neo-Advaita ou
Pseudo-Advaita e
Real Advaita),
Timothy Conway se opõe à
tendência
moderna em centrar-se apenas
no mindfulness, e
escreve sobre a necessidade
do
pensamento crítico e do
discernimento em
uma
prática espiritual:
“Alguns mestres
espirituais e seus discípulos estão fechados num ponto de vista que
os obriga a ver o que acontece somente como ‘bom’ ou somente como
‘perfeito’ ou, inclusive, como ‘nada acontece realmente’, e
abandonaram toda a capacidade de avaliar os fenômenos e de
distinguir o que podemos chamar de os 3 níveis da realidade não
dual:
Nível
3: o nível convencional de “apropriado e
inapropriado”, “útil e danoso”, “correto e incorreto”,
“justiça e injustiça”, “acima e abaixo”, “feminino e
masculino”, etc .
Nível
2: a “verdade celestial” segundo a qual tudo o que ocorre a
todas as almas imortais é “perfeito”, a “manifestação
requintada da Vontade Divina”, o “jogo perfeito de Consciência”
que leva estas almas à Realização de Deus.
Nível
1: a Realidade Absoluta, na qual se compreende que
tudo o que ocorre é um sonho, de modo que nada acontece realmente,
não existem mundos distintos, não existem seres distintos, não há
multiplicidade, somente Deus, somente Consciência Divina.
É um grande
paradoxo que a Realidade não dual tenha estes diferentes níveis de
verdade, mas isto é algo que se vê confirmado por textos e
ensinamentos de orientação não dualista de sábios de diferentes
culturas sobre a natureza da Realidade no nível convencional, no
nível da verdade celestial e no nível da verdade absoluta (que,
estritamente falando, não é um “nível”, mas a Realidade única,
absolutamente verdadeira, enquanto que os níveis 2 e 3 são
“relativamente verdadeiros”, dependentes da Realidade Absoluta ou
Parabrahman).
O ponto relevante
aqui é que as pessoas que não honram simultaneamente estes três
“níveis” de Realidade, especialmente o nível convencional
(nível 3 no modelo acima), pensam erroneamente que usar o
discernimento ou o pensamento crítico, ou seja, criticar qualquer
forma de pensamento ou comportamento, significa “ser negativo” ou
“iludido” ou “usar a cabeça, não o coração”. (Na
realidade, um verdadeiro sábio é livre para utilizar tanto a cabeça
como o coração como instrumentos de consciência, sensibilidade e
capacidade de resposta).
Contudo, o
pensamento crítico é a arte antiga, expressa no nível convencional
da realidade cotidiana, de avaliar as crenças e o comportamento
consequente, em benefício do bem individual e do bem comum, aquele
que nos serve plenamente, não nos debilita nem nos desequilibra. O
pensamento crítico pode 1) identificar qualquer pensamento
defeituoso, auto-engano, pontos cegos, distorção, desinformação,
propaganda e preconceitos no nível cognitivo de nossos pontos de
vista, e 2) identificar atitudes e condutas externas que não sirvam
ao nosso bem-estar individual e coletivo, isto é, as atitudes e os
comportamentos que não nos liberam nem nos empoderam de verdade e/ou
não concordam com uma ética e um sistema de valores que promovam a
liberação autêntica, a justiça e a igualdade.
Um artigo
informativo da Wikipédia sobre o tema diz que o pensamento crítico
valoriza “a clareza, a credibilidade, a precisão, a profundidade,
a amplitude, a lógica, a importância e a equidade”. Não é de
estranhar que os especialistas no campo da psicologia e da educação
creiam que nossa sociedade e nossas escolas necessitam de muito mais
ênfase, não menos ênfase, nas habilidades do pensamento crítico,
de modo que possamos funcionar melhor a partir de fatos e premissas
sólidas, não de delírios, mentiras, meias verdades e preconceitos.
Por exemplo, no âmbito da política, da saúde, das corporações e
dos meios de comunicação, e certamente no campo da religião e da
espiritualidade, é necessário um pensamento muito mais crítico,
não menos, para diferenciar o fato da ficção, a verdade da
mentira, o apropriado do inapropriado, o bem do mal.
A
antiga Índia desenvolveu uma sã tradição de
pensamento crítico e debate, debatendo sobre
os méritos e desvantagens de certas
posições filosóficas e/ou
metafísicas e estilos comportamentais de
vida. Os sábios dos Upanishads, Buda,
Nagarjuna, Sahnkara e
outros famosos luminares
espirituais mostram com força esta
salutar tendência de crítica construtiva e
debate. O mesmo ocorre com a antiga sabedoria grega de nossa
tradição ocidental. O artigo da Wikipédia
sobre “pensamento crítico” explica, como qualquer
dicionário grego
esclarece, que o verbo krino
significa ‘escolher’, ‘decidir’ ou
‘julgar’, e ‘separar’ ou
‘separar o joio do trigo’, ou ‘o
que tem valor do que não tem’.
Portanto, uma pessoa krino,
ou crítica, é alguém que pode
discernir, julgar ou arbitrar de maneira
útil.
Se diz que Jesus
disse: “Não julgueis para não serdes julgado”, mas os
Evangelhos indicam que o mesmo Jesus frequentemente julgou e
discerniu o bom do que não era bom. Sua mensagem de “não julgues”
foi dirigida aos hipócritas, não foi pensada como uma instrução
geral para que ninguém jamais se involucrasse em um pensamento
crítico sério. E, recordemos que Jesus enfrentou os mercadores e
assassinos de animais no Templo de Jerusalém, e os expulsou do
lugar.
Portanto, podemos
dizer que aqueles que são críticos, têm a capacidade de discernir
a verdade do engano e o apropriado do inapropriado.
Um ponto geral a
recordar sobre o pensamento crítico e a crítica dos pontos de vista
e comportamentos defeituosos, é que sempre devemos nos esforçar
para manter a empatia e a humildade e um espírito de “crítica
construtiva”. Devemos evitar a crítica destrutiva e toda classe de
arrogância, hipocrisia e malícia quando desejamos criticar a
falsidade e afirmar uma verdade maior..”
Filosofia
significa amor à sabedoria. Com a indagação e o discernimento
voltamos ao assombro existencial. À medida que a prática da
meditação avança, os pensamentos pessoais começam a se abrir para
as imagens originais. Os pensamentos se caracterizarão por perguntas
mais comuns e universais: Como pode o ser humano preservar a paz
mental e o equilíbrio em todas as relações da vida? Como
aprendemos a apreciar os bens verdadeiros e deixamos ir os objetivos
transitórios e vãos? O destino do ser humano forma parte de um
plano maior?
A
filosofia é um aspecto muito central em todas as práticas
espirituais tradicionais. Entre as tradições originais de sabedoria
estão o gnosticismo e o misticismo dentro do cristianismo primitivo
e medieval, o sufismo no islã, o hassidismo e a cabala no judaísmo,
o advaita vedanta no hinduísmo, o zen e o Dzogchen no budismo. Na
China encontramos o taoismo. Mas, mais velhos são o xamanismo e o
paganismo, práticas religiosas a que chamo com um só nome: a
religião e a arte antigas.
Sobre
o autor
Morten
Tolboll é formado em Filosofia e Psicologia. Pratica Yoga e
Meditação desde 1985 e durante este período desenvolveu o conceito
de “Meditação com uma Arte de Vida” (Meditation as an Art of
Life), sobre o qual escreveu uma série de livros. Atualmente, vive
como monge em Rold Forest, Dinamarca. Seus escritos foram colocados
gratuitamente à disposição pela Internet. Eles enfatizam a
importância da filosofia na prática espiritual. Morten pode ser
definido como um anarquista espiritual. Seu
website: https://mortentolboll.weebly.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário