Por Paulo Stekel
Consciência Pura
No livro “Cérebro
e Meditação” (Editora Alaúde, 2018), o monge budista e doutor em
Genética Celular Matthieu Ricard debate com o neurobiologista Wolf
Singer sobre temas como a meditação e o cérebro, os processos
inconscientes e as emoções, como acessamos conhecimento, o ego, o
livre-arbítrio e a natureza da consciência.
No capítulo sobre a
meditação e o cérebro, ambos debatem sobre a consciência e as
construções mentais. É um trecho muito interessante sobre o tema,
que tenta conciliar a visão budista com a neurocientífica.
“MATTHIEU: A
ideia de uma consciência cuja natureza fundamental seria
absolutamente pura não passa de uma simples concepção ingênua da
natureza humana. Ela se baseia no raciocínio e na experiência
introspectiva. Se considerarmos os pensamentos, as emoções e as
sensações, assim como todos os outros eventos mentais,
constataremos que todos eles têm um denominador comum: a capacidade
de conhecer. De acordo com o budismo, essa capacidade fundamental da
consciência é chamada de natureza fundamental da mente. Essa
natureza é ‘luminosa’, no sentido de que ela permite conhecer o
mundo exterior por intermédio das nossas percepções e de que ela
ilumina nosso mundo interior por meio de nossas sensações,
pensamentos, lembranças, previsões e consciência do momento
presente. Ela é luminosa em comparação a um objeto inanimado, que
é opaco, isto é, privado de qualquer capacidade cognitiva.
Vamos usar a
imagem da luz. Se, com a ajuda de uma tocha, você iluminar
sucessivamente um belo rosto sorridente, um rosto colérico, uma
montanha de joias e um monte de lixo, nem por isso a luz se torna
bela, colérica, preciosa ou suja. Outro exemplo é o do espelho. A
especificidade de um espelho é refletir todo tipo de imagem. No
entanto, nenhuma dessas imagens pertence ao espelho, não o penetra
nem permanece nele. Se assim fosse, todas elas ficariam superpostas e
o espelho se tornaria inútil. Do mesmo modo, a característica
fundamental da mente é permitir que todas as construções mentais
(o amor e a raiva, a alegria e o ciúme, o prazer e a dor) se
manifestem sem que ela se altere. Os eventos mentais não fazem parte
intrinsecamente do aspecto mais fundamental da consciência. Eles se
manifestam simplesmente no espaço da consciência desperta, ao longo
dos diversos momentos de consciência; é essa consciência desperta
fundamental que permite sua manifestação. Podemos, portanto,
denominar essa consciência de consciência pura, ou de
componente fundamental da mente.”
Teoria do
Epifenômeno X Teoria do Continuum
A capacidade de
conhecer é Tathagatagharba, a natureza de Buda, a natureza
fundamental da mente, pura, e seu componente fundamental. É a
definição de consciência não-neural ou além do neural de todo o
budismo mahayana e do vajrayana moderno. É complicado de entender
quando não se está acostumado, de modo que Wolf Singer acha que
Ricard está sendo dualista:
“WOLF: O que
você acaba de dizer implica duas coisas. A primeira é que você
parece atribuir um valor à estabilidade, ou à objetividade, que
funcionaria como um critério de legitimação. A segunda é que você
separa a consciência fundamental de seus conteúdos. Você supõe
que existiria no cérebro uma entidade básica que funcionaria como
um espelho ideal, uma entidade que, em si mesma, não introduziria
nenhuma distorção e não seria influenciada pelos conteúdos que
ela reflete. Será que você não está defendendo uma posição
dualista, uma dicotomia entre, de um lado, uma mente imaculada que
seria o observador e, do outro, os conteúdos que aparecem nessa
mente e que apresentariam inúmeras interferências e distorções?
As concepções contemporâneas da organização do cérebro negam
categoricamente qualquer diferença entre as funções sensoriais e
executivas, entendendo que a consciência é uma característica
emergente das funções do cérebro. Portanto, para mim é difícil
imaginar a diferença que existiria entre um espelho imaculado e os
conteúdos que ele refletiria. Não consigo pensar numa consciência,
uma entidade básica, que fosse vazia: se ela está vazia,
simplesmente não existe; e, portanto, é impossível defini-la.”
Wolf declara crer na
teoria do epifenômeno, segundo a qual o que chamamos
de consciência nada mais é que o produto, o resultado das
atividades neurais no cérebro. Os neurocientistas, de maneira geral,
não acreditam que possa haver um aspecto da mente que não esteja
ligado ao complexo da atividade neuronal. Portanto, para eles, a
mente não preexiste ao corpo (não acreditam em carma, nem em
reencarnação ou renascimento) nem subsiste a ele (não acreditam em
alguma continuidade após a morte).
A teoria do
epifenômeno considera a consciência como algo que emerge da
atividade física das redes neurais no cérebro. Contudo, esta teoria
criou o que é chamado no meio neurocientífico de “o difícil
problema da consciência”. Que problema é esse? É a necessidade
de responder a questões como: Se a consciência faz parte da mente,
como pode estar ciente da própria mente? Como a consciência
ressurge todos os dias quando acordamos (cada dia temos uma
consciência diferente)? Se a consciência é inexistente durante o
sono profundo, como a pessoa está ciente de que era ela quem dormia
e não outra entidade?
Estas questões
podem ser respondidas pela teoria da mente budista e não-dualista em
geral: a consciência está ciente da mente porque não é nem emerge
DA mente (neural), mas se manifesta ATRAVÉS da mente neural
construída na interação corpo (cérebro, redes neurais, etc) e
mente/consciência pura – a consciência de um ser pensante é um
aspecto do conjunto; a consciência que ressurge após o sono é a
mesma, que tinha estado em outro nível de percepção; no sono, a
consciência não é inexistente, mas se manifesta em outro nível,
grau ou modo de ser. Ricard dá a sua própria resposta:
“MATTHIEU: Não
se trata de dualidade. Não existem dois fluxos de consciência.
Trata-se mais de aspectos diferentes da consciência: um aspecto
fundamental, uma consciência desperta, que está sempre presente, e
aspectos secundários, a saber, as elaborações mentais, que mudam
sem parar. O aspecto fundamental é a qualidade principal da
consciência, essa capacidade de conhecer que está sempre presente,
seja qual for o conteúdo da mente. Deveríamos falar, de
preferência, em termos de continuidade. A consciência, em todos os
níveis, é um fluxo dinâmico constituído de instantes de
consciência que incluem, ou não, conteúdos. A qualquer momento,
para além da tela dos pensamentos, podemos identificar uma
capacidade pura de conhecimento que está na base de todos os
pensamentos.”
Essa ideia da
consciência como continuum ou fluxo mental é a explicação
padrão do budismo vajrayana. É muito interessante, porque não
recorre a uma noção da consciência como um “espírito” ou uma
“alma”, mas como um fluxo além do tempo e mesmo do espaço. Ou
seja, contra a teoria do epifenômeno apresentamos a teoria do
continuum.
No livro “Transforme
sua vida” (Ed. Tharpa), o lama tibetano Geshe Kelsang Gyatso diz
que a mente é “um continuum sem forma, que tem como função
perceber e entender os objetos” e que, por isso, “ela não
pode ser obstruída por objetos físicos”.
O que renasce?
Em “Glimpse of
Reality” (ver
https://studybuddhism.com/pt/budismo-tibetano/caminho-para-a-iluminacao/carma-e-renascimento/o-que-e-reencarnacao),
Alexander Berzin, PhD. e famoso escritor sobre Budismo Tibetano, diz: “A palavra inglesa para mente
(e também a portuguesa) não tem o mesmo significado que o termo
supostamente traduzido do Sânscrito e Tibetano. Nesses idiomas,
“mente” refere-se à atividade mental ou
eventos mentais e não àquilo que está fazendo
essa atividade. A atividade ou evento em questão é o surgimento
cognitivo de determinados fenômenos — pensamentos, visões, sons,
emoções, sentimentos e assim por diante — e um envolvimento
cognitivo com eles — vendo-os, ouvindo-os, compreendendo-os e até
mesmo não os compreendendo.”
Em seguida,
comparando a mente com o desenrolar de um filme na tela, quadro a
quadro, Berzin complementa: “(…) assim como os filmes não são
todos o mesmo filme, apesar de todos serem filmes, da mesma forma,
todos os continuums mentais ou “mentes” não são uma mente
apenas. Existem inúmeros continuums individuais de consciência de
fenômenos e cada um pode ser rotulado como “eu” a partir de sua
própria perspectiva.”
Então, para quem
acredita em renascimento, o que renasce? Berzin esclarece a visão
budista do que retorna em um novo nascimento:
“Segundo o
budismo, a analogia do renascimento não é a de uma alma, uma
pequena estátua concreta ou pessoa, viajando em uma esteira rolante
de uma vida para a outra. (...) A analogia é a de um filme. Existe
uma continuidade em um filme; os quadros formam um continuum.
(…) Cada um de
nós tem seu continuum individual. A sequência do meu filme não se
tornará o seu filme, mas nossas vidas prosseguem como filmes no
sentido de que não são concretas e fixas. A vida segue de um quadro
para outro. Ela segue uma sequência, de acordo com nosso karma, e
assim forma uma continuidade.
Cada continuum é
alguém e pode ser chamado de “eu”; não é que cada continuum
não seja ninguém. Assim como o título de um filme - que se refere
a todo o filme e também a cada quadro dele, mas não pode ser
encontrado como algo concreto em cada quadro - da mesma forma “eu”
refere-se a um continuum mental individual e a cada momento dele, mas
também não pode ser encontrado como algo concreto em nenhum desses
momentos. Todavia, existe um “eu”, convencionalmente falando, um
“self”. O budismo não é um sistema niilista.”
O fato do budismo
afirmar que um continuum mental deve sempre ter uma base física, um
apoio, pode parecer corroborar a visão da neurociência, mas não.
Ainda que, no nível mais denso, um corpo físico seja necessário
como suporte para um continuum de consciência, ele não cria a
consciência. A consciência preexistia. Nosso corpo físico muda de
momento a momento e constitui um continuum individual, o continuum
físico desta vida. Mas o continuum físico em uma vida passada ou
futura seria um continuum diferente, no final, pois o corpo de uma
vida não se transforma num corpo de outra vida.
Berzin (em
https://studybuddhism.com/en/advanced-studies/lam-rim/impermanence-death/how-mental-continuums-perpetuate-themselves):
“Nós estabelecemos que um continuum mental individual só pode
surgir de algo em sua própria categoria de fenômeno. Embora um
continuum mental requeira um continuum físico de um corpo como
suporte, o continuum físico de um corpo é apenas uma condição
para um continuum mental - embora seja uma condição necessária.
Não é a causa imediatamente anterior que se transforma em um
continuum mental. Também estabelecemos que um continuum mental
individual não pode vir do continuum mental individual de outra
pessoa. Deve vir de si e continuar de si mesmo. (…) não pode haver
um começo absoluto ou um fim absoluto para um continuum mental.
Assim como a ciência afirma que matéria e energia não podem ser
criadas nem destruídas, apenas transformadas, o budismo afirma que a
atividade mental individual também não pode ser criada nem
destruída, apenas transformada. (…) o funcionamento de um corpo
particular pode apoiar um continuum mental por um certo período de
tempo. Quando um corpo em particular para de funcionar e não pode
mais apoiar um continuum mental em particular, o budismo explica que
esse continuum mental continua com uma base física diferente -
primeiro um corpo sutil e depois outro corpo denso.”
Fica claro o que é
um continuum mental e como pode ter consciência pura, diferente do
“eu” psicológico ao qual estamos acostumados. Esse eu
psicológico existe de modo relativo e apenas pelo espaço de uma
vida, pois depende de um corpo para que se complete. Na verdade, para
a formação do eu psicológico concorrem tanto as atividades
corporais, incluindo as conexões neurais desde a geração, quanto
as tendências cármicas que são armazenadas na consciência pura, e
que se manifestam quando as condições ideais surgem.
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