quarta-feira, 3 de julho de 2019

Consciência, Epifenômeno e Continuum Mental

Por Paulo Stekel


Consciência Pura

No livro “Cérebro e Meditação” (Editora Alaúde, 2018), o monge budista e doutor em Genética Celular Matthieu Ricard debate com o neurobiologista Wolf Singer sobre temas como a meditação e o cérebro, os processos inconscientes e as emoções, como acessamos conhecimento, o ego, o livre-arbítrio e a natureza da consciência.

No capítulo sobre a meditação e o cérebro, ambos debatem sobre a consciência e as construções mentais. É um trecho muito interessante sobre o tema, que tenta conciliar a visão budista com a neurocientífica.

MATTHIEU: A ideia de uma consciência cuja natureza fundamental seria absolutamente pura não passa de uma simples concepção ingênua da natureza humana. Ela se baseia no raciocínio e na experiência introspectiva. Se considerarmos os pensamentos, as emoções e as sensações, assim como todos os outros eventos mentais, constataremos que todos eles têm um denominador comum: a capacidade de conhecer. De acordo com o budismo, essa capacidade fundamental da consciência é chamada de natureza fundamental da mente. Essa natureza é ‘luminosa’, no sentido de que ela permite conhecer o mundo exterior por intermédio das nossas percepções e de que ela ilumina nosso mundo interior por meio de nossas sensações, pensamentos, lembranças, previsões e consciência do momento presente. Ela é luminosa em comparação a um objeto inanimado, que é opaco, isto é, privado de qualquer capacidade cognitiva.

Vamos usar a imagem da luz. Se, com a ajuda de uma tocha, você iluminar sucessivamente um belo rosto sorridente, um rosto colérico, uma montanha de joias e um monte de lixo, nem por isso a luz se torna bela, colérica, preciosa ou suja. Outro exemplo é o do espelho. A especificidade de um espelho é refletir todo tipo de imagem. No entanto, nenhuma dessas imagens pertence ao espelho, não o penetra nem permanece nele. Se assim fosse, todas elas ficariam superpostas e o espelho se tornaria inútil. Do mesmo modo, a característica fundamental da mente é permitir que todas as construções mentais (o amor e a raiva, a alegria e o ciúme, o prazer e a dor) se manifestem sem que ela se altere. Os eventos mentais não fazem parte intrinsecamente do aspecto mais fundamental da consciência. Eles se manifestam simplesmente no espaço da consciência desperta, ao longo dos diversos momentos de consciência; é essa consciência desperta fundamental que permite sua manifestação. Podemos, portanto, denominar essa consciência de consciência pura, ou de componente fundamental da mente.”

Teoria do Epifenômeno X Teoria do Continuum

A capacidade de conhecer é Tathagatagharba, a natureza de Buda, a natureza fundamental da mente, pura, e seu componente fundamental. É a definição de consciência não-neural ou além do neural de todo o budismo mahayana e do vajrayana moderno. É complicado de entender quando não se está acostumado, de modo que Wolf Singer acha que Ricard está sendo dualista:

WOLF: O que você acaba de dizer implica duas coisas. A primeira é que você parece atribuir um valor à estabilidade, ou à objetividade, que funcionaria como um critério de legitimação. A segunda é que você separa a consciência fundamental de seus conteúdos. Você supõe que existiria no cérebro uma entidade básica que funcionaria como um espelho ideal, uma entidade que, em si mesma, não introduziria nenhuma distorção e não seria influenciada pelos conteúdos que ela reflete. Será que você não está defendendo uma posição dualista, uma dicotomia entre, de um lado, uma mente imaculada que seria o observador e, do outro, os conteúdos que aparecem nessa mente e que apresentariam inúmeras interferências e distorções? As concepções contemporâneas da organização do cérebro negam categoricamente qualquer diferença entre as funções sensoriais e executivas, entendendo que a consciência é uma característica emergente das funções do cérebro. Portanto, para mim é difícil imaginar a diferença que existiria entre um espelho imaculado e os conteúdos que ele refletiria. Não consigo pensar numa consciência, uma entidade básica, que fosse vazia: se ela está vazia, simplesmente não existe; e, portanto, é impossível defini-la.”

Wolf declara crer na teoria do epifenômeno, segundo a qual o que chamamos de consciência nada mais é que o produto, o resultado das atividades neurais no cérebro. Os neurocientistas, de maneira geral, não acreditam que possa haver um aspecto da mente que não esteja ligado ao complexo da atividade neuronal. Portanto, para eles, a mente não preexiste ao corpo (não acreditam em carma, nem em reencarnação ou renascimento) nem subsiste a ele (não acreditam em alguma continuidade após a morte).

A teoria do epifenômeno considera a consciência como algo que emerge da atividade física das redes neurais no cérebro. Contudo, esta teoria criou o que é chamado no meio neurocientífico de “o difícil problema da consciência”. Que problema é esse? É a necessidade de responder a questões como: Se a consciência faz parte da mente, como pode estar ciente da própria mente? Como a consciência ressurge todos os dias quando acordamos (cada dia temos uma consciência diferente)? Se a consciência é inexistente durante o sono profundo, como a pessoa está ciente de que era ela quem dormia e não outra entidade?

Estas questões podem ser respondidas pela teoria da mente budista e não-dualista em geral: a consciência está ciente da mente porque não é nem emerge DA mente (neural), mas se manifesta ATRAVÉS da mente neural construída na interação corpo (cérebro, redes neurais, etc) e mente/consciência pura – a consciência de um ser pensante é um aspecto do conjunto; a consciência que ressurge após o sono é a mesma, que tinha estado em outro nível de percepção; no sono, a consciência não é inexistente, mas se manifesta em outro nível, grau ou modo de ser. Ricard dá a sua própria resposta:

MATTHIEU: Não se trata de dualidade. Não existem dois fluxos de consciência. Trata-se mais de aspectos diferentes da consciência: um aspecto fundamental, uma consciência desperta, que está sempre presente, e aspectos secundários, a saber, as elaborações mentais, que mudam sem parar. O aspecto fundamental é a qualidade principal da consciência, essa capacidade de conhecer que está sempre presente, seja qual for o conteúdo da mente. Deveríamos falar, de preferência, em termos de continuidade. A consciência, em todos os níveis, é um fluxo dinâmico constituído de instantes de consciência que incluem, ou não, conteúdos. A qualquer momento, para além da tela dos pensamentos, podemos identificar uma capacidade pura de conhecimento que está na base de todos os pensamentos.”

Essa ideia da consciência como continuum ou fluxo mental é a explicação padrão do budismo vajrayana. É muito interessante, porque não recorre a uma noção da consciência como um “espírito” ou uma “alma”, mas como um fluxo além do tempo e mesmo do espaço. Ou seja, contra a teoria do epifenômeno apresentamos a teoria do continuum.

No livro “Transforme sua vida” (Ed. Tharpa), o lama tibetano Geshe Kelsang Gyatso diz que a mente é “um continuum sem forma, que tem como função perceber e entender os objetos” e que, por isso, “ela não pode ser obstruída por objetos físicos”.

O que renasce?

Em “Glimpse of Reality” (ver https://studybuddhism.com/pt/budismo-tibetano/caminho-para-a-iluminacao/carma-e-renascimento/o-que-e-reencarnacao), Alexander Berzin, PhD. e famoso escritor sobre Budismo Tibetano, diz: “A palavra inglesa para mente (e também a portuguesa) não tem o mesmo significado que o termo supostamente traduzido do Sânscrito e Tibetano. Nesses idiomas, “mente” refere-se à atividade mental ou eventos mentais e não àquilo que está fazendo essa atividade. A atividade ou evento em questão é o surgimento cognitivo de determinados fenômenos — pensamentos, visões, sons, emoções, sentimentos e assim por diante — e um envolvimento cognitivo com eles — vendo-os, ouvindo-os, compreendendo-os e até mesmo não os compreendendo.”

Em seguida, comparando a mente com o desenrolar de um filme na tela, quadro a quadro, Berzin complementa: “(…) assim como os filmes não são todos o mesmo filme, apesar de todos serem filmes, da mesma forma, todos os continuums mentais ou “mentes” não são uma mente apenas. Existem inúmeros continuums individuais de consciência de fenômenos e cada um pode ser rotulado como “eu” a partir de sua própria perspectiva.”

Então, para quem acredita em renascimento, o que renasce? Berzin esclarece a visão budista do que retorna em um novo nascimento:

Segundo o budismo, a analogia do renascimento não é a de uma alma, uma pequena estátua concreta ou pessoa, viajando em uma esteira rolante de uma vida para a outra. (...) A analogia é a de um filme. Existe uma continuidade em um filme; os quadros formam um continuum.

(…) Cada um de nós tem seu continuum individual. A sequência do meu filme não se tornará o seu filme, mas nossas vidas prosseguem como filmes no sentido de que não são concretas e fixas. A vida segue de um quadro para outro. Ela segue uma sequência, de acordo com nosso karma, e assim forma uma continuidade.

Cada continuum é alguém e pode ser chamado de “eu”; não é que cada continuum não seja ninguém. Assim como o título de um filme - que se refere a todo o filme e também a cada quadro dele, mas não pode ser encontrado como algo concreto em cada quadro - da mesma forma “eu” refere-se a um continuum mental individual e a cada momento dele, mas também não pode ser encontrado como algo concreto em nenhum desses momentos. Todavia, existe um “eu”, convencionalmente falando, um “self”. O budismo não é um sistema niilista.”

O fato do budismo afirmar que um continuum mental deve sempre ter uma base física, um apoio, pode parecer corroborar a visão da neurociência, mas não. Ainda que, no nível mais denso, um corpo físico seja necessário como suporte para um continuum de consciência, ele não cria a consciência. A consciência preexistia. Nosso corpo físico muda de momento a momento e constitui um continuum individual, o continuum físico desta vida. Mas o continuum físico em uma vida passada ou futura seria um continuum diferente, no final, pois o corpo de uma vida não se transforma num corpo de outra vida.

Berzin (em https://studybuddhism.com/en/advanced-studies/lam-rim/impermanence-death/how-mental-continuums-perpetuate-themselves): “Nós estabelecemos que um continuum mental individual só pode surgir de algo em sua própria categoria de fenômeno. Embora um continuum mental requeira um continuum físico de um corpo como suporte, o continuum físico de um corpo é apenas uma condição para um continuum mental - embora seja uma condição necessária. Não é a causa imediatamente anterior que se transforma em um continuum mental. Também estabelecemos que um continuum mental individual não pode vir do continuum mental individual de outra pessoa. Deve vir de si e continuar de si mesmo. (…) não pode haver um começo absoluto ou um fim absoluto para um continuum mental. Assim como a ciência afirma que matéria e energia não podem ser criadas nem destruídas, apenas transformadas, o budismo afirma que a atividade mental individual também não pode ser criada nem destruída, apenas transformada. (…) o funcionamento de um corpo particular pode apoiar um continuum mental por um certo período de tempo. Quando um corpo em particular para de funcionar e não pode mais apoiar um continuum mental em particular, o budismo explica que esse continuum mental continua com uma base física diferente - primeiro um corpo sutil e depois outro corpo denso.”

Fica claro o que é um continuum mental e como pode ter consciência pura, diferente do “eu” psicológico ao qual estamos acostumados. Esse eu psicológico existe de modo relativo e apenas pelo espaço de uma vida, pois depende de um corpo para que se complete. Na verdade, para a formação do eu psicológico concorrem tanto as atividades corporais, incluindo as conexões neurais desde a geração, quanto as tendências cármicas que são armazenadas na consciência pura, e que se manifestam quando as condições ideais surgem.

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