Por Paulo Stekel
Por
muitos anos estive envolvido com formas de espiritualidade religiosa.
Na verdade, estudei e pratiquei, quase antropologicamente, muitas
formas de religião, filosofia e espiritualidade. Nesta jornada,
percebi as diferenças e implicâncias entre dogma e mística, crença
e contemplação, fanatismo e pensamento livre, verdades prontas e a
busca da Verdade como um processo constante no qual o mais importante
é o caminhar e não o destino final.
Dogma
e Misticismo
O dogma
é um dos princípios das religiões organizadas, aquelas que se
tornaram mundiais (ex. Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Hinduísmo,
Budismo, etc.). Algumas, como as religiões orientais, o têm como
algo mais leve e menos problemático, pois inseriram em seus
processos a meditação e a racionalização sobre o caminho
espiritual. Outras, especialmente as religiões ocidentais teístas,
usam o dogma como cavalo de batalha e para suas caças às bruxas, os
infiéis, os mundanos e os “perdidos”. Estas últimas demonizam
os deuses e espíritos das outras fés, numa evidente presunção de
possuir uma verdade absoluta. O dogma é irmão gêmeo da ortodoxia e
do sacerdócio, ocupado com as formas e as normas do processo
religioso, o qual sustenta – inclusive, financeiramente – o
edifício da fé.
O
misticismo é mais espontâneo que o dogma, pois não depende de
sacerdotes, mas unicamente da experiência interna. O Profetismo se
insere no misticismo, assim como o xamanismo, o tantrismo iogue dos
“siddhas” e mesmo o mediunismo moderno. Enquanto o dogma
induz medo e até depende do medo para se alastrar, a experiência
mística pode depender de muitos fatores que, mesmo parecendo
negativos, acabam levando a expansões de consciência e estados
ampliados: meditação, respiração consciente, substâncias
psicoativas e alucinógenas, estados de dor crônica, choques
emocionais, estados de alegria e entusiasmo intenso,
auto-flagelações, privações, jejuns, etc. O
místico-profeta-xamã-iogue-médium tem uma prática espiritual de
protagonismo, diferente do sacerdote, que apenas procura manter um
status quo que ele encontra já determinado. O místico é, em
si, um “produtor” ou “sintonizador” de novo material
espiritual, enquanto o sacerdote não o pode ser, pois apenas segue
um vademecum.
Crença
e Contemplação
A
crença tem a ver com uma proposta de “verdade” ao qual se adere,
geralmente, de modo irrestrito. Ela não precisa ter, e via de regra
não tem, qualquer relação com a verdade científica ou mesmo
evidente para a lógica mais simples. A crença é diferente do dogma
no sentido de ser mais individual, de foro íntimo, do que o dogma,
que é padronizado e ensinado da mesma forma a todos. Mas, a crença
é individual, não igual em todos os indivíduos. Enquanto o dogma
está no discurso e mesmo na escritura, a crença está na mente. Não
pode ser “escaneada” e nem cancelada externamente por um fiscal
eclesiástico. Isso, inclusive, explica a diferença entre a religião
padrão e a religião popular, que é a praticada a partir das
crenças, não do dogma instituído.
Em
algumas religiões e formas de espiritualidade, a contemplação é
até mais importante que a crença. É o caso do Budismo, que dá
pouca importância à crença no processo de atingimento do Nirvana,
a libertação dos ciclos infindáveis de sofrimento. Mais importante
é a contemplação do sofrimento, do caráter ilusório do “eu”
e da importância da ética para o resultado final.
Fanatismo
e Pensamento livre
O
fanatismo tem a ver com uma forma dura, rígida, irredutível, de
pensamento. Especialmente no caso do pensamento religioso isso
reforça o dogma e transforma crenças particulares em verdades
válidas, algo comum nas justificativas de grupos terroristas de
inspiração religiosa. A recusa em pensar diferente, em analisar e
contemplar as verdades que se prega, a demonização do outro e até
a perseguição por conta das diferenças são características
comuns ao fanatismo, seja religioso, espiritual, político ou social.
O
pensamento livre é uma característica da filosofia e, em certo
aspecto, da ciência moderna, mas encontrou até aqui pouca guarida
entre as tradições religiosas. Mesmo no caso de fenômenos
espirituais atuais (alguns, semi ou pseudoespirituais), como a
espiritualidade new age, o neoxamanismo, a neocabala e o
positivismo de auto-ajuda mesclado à psicologia, há pouco espaço
para o pensamento livre, já que um conjunto de ideias pregadas como
novas verdades não dialoga com outros conjuntos de ideias igualmente
pregadas como novas verdades. No final, voltam ao antigo embate comum
entre diferentes religiões. Talvez a Teoria Integral, proposta por
Ken Wilber, seja uma das poucas modalidades super atuais de visão
transcendente que dialoga com praticamente todas as formas de
expressão humanas. Sem um pensamento realmente livre, não é
possível libertar o ser humano dos liames do dogma e da crença que
tanto mal fizeram a gerações sem conta desde que o homem surgiu na
Terra.
As
Verdades prontas e A Verdade
Por
fim, há uma discrepância enorme entre as diversas verdades prontas
disponíveis e o ideal de uma Verdade absoluta que ninguém parece
encontrar e, se encontra, não a consegue retransmitir tal qual a
encontrou. Aliás, esta é a explicação das práticas não
dualistas orientais acerca da percepção da Realidade e de sua
Verdade inerente: seu atingimento é de ordem interior e, por isso, a
linguagem externa comum não a pode expressar adequadamente. Qualquer
descrição dela é uma traição, não a coisa tal qual é.
Contudo,
não é possível chegarmos mais perto de uma Verdade mais ampla –
ainda que não a uma definitiva – sem abdicarmos das verdades
prontas que nos são vendidas todos os dias pelas mais diversas
mídias, desde panfletos entregues no domingo pela manhã até
e-mails missionários. As verdades prontas possuem uma característica
lógica inegável: por serem várias, e muito diferentes, não podem
ser A Verdade Absoluta. Escolher entre uma delas é um jogo arriscado
e sem resultado eficaz. Todas as religiões são verdades prontas,
todas as tradições espirituais fechadas (seitas, cultos, etc.) são
verdades prontas, todas as doutrinas definitivas são, na verdade,
provisórias, sem o perceber. Deveriam ser todas canceladas pela
mente humana, que só então estaria livre para buscar o
transcendente de uma forma mais legítima, como o faz o místico há
milênios.
Uma
nova espiritualidade
Considerando
todo o exposto, que tipo de espiritualidade contemplaria tudo o que
se escreveu? Uma espiritualidade sem dogmas, mas aberta ao místico,
transcendental e interior; uma espiritualidade contemplativa e não
meramente “crente”; uma espiritualidade de livres pensadores e
não de fanáticos; uma espiritualidade de buscadores da Verdade e
não criadores de verdades prontas. Uma tal espiritualidade deveria
inserir o que não foi inserido nas formas antigas: a ciência
moderna, as descobertas importantes do Séc. XX e do atual, as novas
noções da Psicologia, das Neurociências, da Filosofia, da Física
e da Cosmologia. Por fim, deveria inserir a atenção aos problemas
sociais (direitos humanos, direitos das minorias, igualdade social,
etc.) que não interessava ao antigo formato da religião, pois esta
sempre dependeu do status social para sobreviver e se expandir.
Então, sem isso, e sem um espírito crítico, as formas espirituais
modernas se transformarão, em breve, na ortodoxia do futuro, uma
ortodoxia tão pérfida e tóxica quanto aquelas das quais os
seguidores das novas crenças pretendem fugir.
Em
geral, as pessoas não sabem definir em palavras claras os dogmas de
sua religião. Não sabem dar detalhes precisos de suas crenças. Não
conseguem justificar racionalmente suas ideias mais fanáticas. E,
não conseguem aplicar suas verdades prontas à solução dos grandes
problemas da existência. Assim, sua espiritualidade é ineficaz e
uma perda de tempo. Uma nova espiritualidade não pode ser algo desta
natureza. Deve ser libertadora, consciente, sincera e humilde. Se sua
frase de efeito principal fosse “enfim, reconhecemos que não
sabemos tudo”, poderia uni-la à antiga “conhece-te a ti mesmo”
e reconhecer que ainda há muito trabalho pela frente antes de uma
pretensão de domínio sobre todos os mistérios. Está tudo em
aberto! Basta seguirmos trilhando o caminho.
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