quarta-feira, 18 de setembro de 2019

A Perspectiva de uma Nova Espiritualidade

Por Paulo Stekel


Por muitos anos estive envolvido com formas de espiritualidade religiosa. Na verdade, estudei e pratiquei, quase antropologicamente, muitas formas de religião, filosofia e espiritualidade. Nesta jornada, percebi as diferenças e implicâncias entre dogma e mística, crença e contemplação, fanatismo e pensamento livre, verdades prontas e a busca da Verdade como um processo constante no qual o mais importante é o caminhar e não o destino final.

Dogma e Misticismo

O dogma é um dos princípios das religiões organizadas, aquelas que se tornaram mundiais (ex. Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, Hinduísmo, Budismo, etc.). Algumas, como as religiões orientais, o têm como algo mais leve e menos problemático, pois inseriram em seus processos a meditação e a racionalização sobre o caminho espiritual. Outras, especialmente as religiões ocidentais teístas, usam o dogma como cavalo de batalha e para suas caças às bruxas, os infiéis, os mundanos e os “perdidos”. Estas últimas demonizam os deuses e espíritos das outras fés, numa evidente presunção de possuir uma verdade absoluta. O dogma é irmão gêmeo da ortodoxia e do sacerdócio, ocupado com as formas e as normas do processo religioso, o qual sustenta – inclusive, financeiramente – o edifício da fé.

O misticismo é mais espontâneo que o dogma, pois não depende de sacerdotes, mas unicamente da experiência interna. O Profetismo se insere no misticismo, assim como o xamanismo, o tantrismo iogue dos “siddhas” e mesmo o mediunismo moderno. Enquanto o dogma induz medo e até depende do medo para se alastrar, a experiência mística pode depender de muitos fatores que, mesmo parecendo negativos, acabam levando a expansões de consciência e estados ampliados: meditação, respiração consciente, substâncias psicoativas e alucinógenas, estados de dor crônica, choques emocionais, estados de alegria e entusiasmo intenso, auto-flagelações, privações, jejuns, etc. O místico-profeta-xamã-iogue-médium tem uma prática espiritual de protagonismo, diferente do sacerdote, que apenas procura manter um status quo que ele encontra já determinado. O místico é, em si, um “produtor” ou “sintonizador” de novo material espiritual, enquanto o sacerdote não o pode ser, pois apenas segue um vademecum.

Crença e Contemplação

A crença tem a ver com uma proposta de “verdade” ao qual se adere, geralmente, de modo irrestrito. Ela não precisa ter, e via de regra não tem, qualquer relação com a verdade científica ou mesmo evidente para a lógica mais simples. A crença é diferente do dogma no sentido de ser mais individual, de foro íntimo, do que o dogma, que é padronizado e ensinado da mesma forma a todos. Mas, a crença é individual, não igual em todos os indivíduos. Enquanto o dogma está no discurso e mesmo na escritura, a crença está na mente. Não pode ser “escaneada” e nem cancelada externamente por um fiscal eclesiástico. Isso, inclusive, explica a diferença entre a religião padrão e a religião popular, que é a praticada a partir das crenças, não do dogma instituído.

Em algumas religiões e formas de espiritualidade, a contemplação é até mais importante que a crença. É o caso do Budismo, que dá pouca importância à crença no processo de atingimento do Nirvana, a libertação dos ciclos infindáveis de sofrimento. Mais importante é a contemplação do sofrimento, do caráter ilusório do “eu” e da importância da ética para o resultado final.

Fanatismo e Pensamento livre

O fanatismo tem a ver com uma forma dura, rígida, irredutível, de pensamento. Especialmente no caso do pensamento religioso isso reforça o dogma e transforma crenças particulares em verdades válidas, algo comum nas justificativas de grupos terroristas de inspiração religiosa. A recusa em pensar diferente, em analisar e contemplar as verdades que se prega, a demonização do outro e até a perseguição por conta das diferenças são características comuns ao fanatismo, seja religioso, espiritual, político ou social.

O pensamento livre é uma característica da filosofia e, em certo aspecto, da ciência moderna, mas encontrou até aqui pouca guarida entre as tradições religiosas. Mesmo no caso de fenômenos espirituais atuais (alguns, semi ou pseudoespirituais), como a espiritualidade new age, o neoxamanismo, a neocabala e o positivismo de auto-ajuda mesclado à psicologia, há pouco espaço para o pensamento livre, já que um conjunto de ideias pregadas como novas verdades não dialoga com outros conjuntos de ideias igualmente pregadas como novas verdades. No final, voltam ao antigo embate comum entre diferentes religiões. Talvez a Teoria Integral, proposta por Ken Wilber, seja uma das poucas modalidades super atuais de visão transcendente que dialoga com praticamente todas as formas de expressão humanas. Sem um pensamento realmente livre, não é possível libertar o ser humano dos liames do dogma e da crença que tanto mal fizeram a gerações sem conta desde que o homem surgiu na Terra.

As Verdades prontas e A Verdade

Por fim, há uma discrepância enorme entre as diversas verdades prontas disponíveis e o ideal de uma Verdade absoluta que ninguém parece encontrar e, se encontra, não a consegue retransmitir tal qual a encontrou. Aliás, esta é a explicação das práticas não dualistas orientais acerca da percepção da Realidade e de sua Verdade inerente: seu atingimento é de ordem interior e, por isso, a linguagem externa comum não a pode expressar adequadamente. Qualquer descrição dela é uma traição, não a coisa tal qual é.

Contudo, não é possível chegarmos mais perto de uma Verdade mais ampla – ainda que não a uma definitiva – sem abdicarmos das verdades prontas que nos são vendidas todos os dias pelas mais diversas mídias, desde panfletos entregues no domingo pela manhã até e-mails missionários. As verdades prontas possuem uma característica lógica inegável: por serem várias, e muito diferentes, não podem ser A Verdade Absoluta. Escolher entre uma delas é um jogo arriscado e sem resultado eficaz. Todas as religiões são verdades prontas, todas as tradições espirituais fechadas (seitas, cultos, etc.) são verdades prontas, todas as doutrinas definitivas são, na verdade, provisórias, sem o perceber. Deveriam ser todas canceladas pela mente humana, que só então estaria livre para buscar o transcendente de uma forma mais legítima, como o faz o místico há milênios.

Uma nova espiritualidade

Considerando todo o exposto, que tipo de espiritualidade contemplaria tudo o que se escreveu? Uma espiritualidade sem dogmas, mas aberta ao místico, transcendental e interior; uma espiritualidade contemplativa e não meramente “crente”; uma espiritualidade de livres pensadores e não de fanáticos; uma espiritualidade de buscadores da Verdade e não criadores de verdades prontas. Uma tal espiritualidade deveria inserir o que não foi inserido nas formas antigas: a ciência moderna, as descobertas importantes do Séc. XX e do atual, as novas noções da Psicologia, das Neurociências, da Filosofia, da Física e da Cosmologia. Por fim, deveria inserir a atenção aos problemas sociais (direitos humanos, direitos das minorias, igualdade social, etc.) que não interessava ao antigo formato da religião, pois esta sempre dependeu do status social para sobreviver e se expandir. Então, sem isso, e sem um espírito crítico, as formas espirituais modernas se transformarão, em breve, na ortodoxia do futuro, uma ortodoxia tão pérfida e tóxica quanto aquelas das quais os seguidores das novas crenças pretendem fugir.

Em geral, as pessoas não sabem definir em palavras claras os dogmas de sua religião. Não sabem dar detalhes precisos de suas crenças. Não conseguem justificar racionalmente suas ideias mais fanáticas. E, não conseguem aplicar suas verdades prontas à solução dos grandes problemas da existência. Assim, sua espiritualidade é ineficaz e uma perda de tempo. Uma nova espiritualidade não pode ser algo desta natureza. Deve ser libertadora, consciente, sincera e humilde. Se sua frase de efeito principal fosse “enfim, reconhecemos que não sabemos tudo”, poderia uni-la à antiga “conhece-te a ti mesmo” e reconhecer que ainda há muito trabalho pela frente antes de uma pretensão de domínio sobre todos os mistérios. Está tudo em aberto! Basta seguirmos trilhando o caminho.


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