Por David Loy (Este artigo contém a
primeira parte do Capítulo 1
do livro Nonduality, intitulado “Quantas
Não-dualidades Existem?” que está sendo traduzido
por Paulo Stekel)
Introdução
Nenhum conceito é
mais importante no pensamento filosófico e religioso asiático do
que a não-dualidade (Sânscrito advaya e advaita,
Tibetano gñis-med, Chinês pu-erh, Japonês fu-ni),
e nenhum é mais ambíguo. O termo tem sido usado em muitas maneiras
diferentes, embora relacionadas, e no meu conhecimento, as distinções
entre estes significados nunca foram completamente esclarecidas.
Estes significados são distintos, embora frequentemente se
sobreponham em instâncias particulares.
Os seguintes tipos
de não-dualidade são discutidos aqui: a negação do pensamento
dualista, a não-pluralidade do mundo
[N.T. o segundo artigo que
postaremos] e a
não-diferença de sujeito e objeto [N.T. o terceiro artigo que
postaremos referente ao capítulo 1 do livro de Loy]. [N.T. Em
artigos subsequentes que postaremos aqui, cfe. Loy, “nossa
atenção se focará principalmente sobre o último destes três,
embora haverá ocasião para considerar duas outras
não-dualidades que estão também intimamente relacionadas:
primeira, aquela que tem sido chamada de a identidade dos
fenômenos e do Absoluto, ou a equação Mahayana de
samsara e nirvana, que pode também ser expressa como “a
não-dualidade da dualidade e não-dualidade”; segunda, a
possibilidade de uma unidade mística entre Deus e o homem”].
Sem dúvida que outras não-dualidades podem ser distinguidas, mas a
maior parte delas pode ser agrupada sob uma ou mais das categorias
acima. Como a construção negativa da palavra em todas as línguas
sugere, o significado de cada não-dualidade pode ser compreendido
somente a partir da referência à dualidade em particular que está
sendo negada. Veremos prontamente que cada uma destas negações tem
tanto uma função ontológica quanto soteriológica; o termo é
usado para criticar nossa experiência dualista comum (ou compreensão
da experiência) como sendo delusiva e insatisfatória, e o modo
não-dual correspondente é recomendado tanto como sendo verídico
quanto superior.
Crítica do
Pensamento Dualista
É
porque existe "é" que existe "não é"; é
porque existe "não existe" que existe "existe".
Sendo essa a situação, os sábios não abordam as coisas nesse
nível, mas refletem a luz da natureza. (Chuang Tzu)
Nossa primeira
não-dualidade é uma crítica do “pensamento dualista”, ou seja,
do pensamento que diferencia aquilo-sobre-o-que-é-pensado em duas
categorias opostas: ser e não-ser, sucesso e fracasso, vida e morte,
iluminação e delusão, e assim por diante. O problema com tal
pensamento é que, embora as distinções sejam feitas geralmente
para se escolher uma ou outra, não podemos tomar uma sem a outra,
uma vez que elas são interdependentes; ao afirmar uma metade da
dualidade, mantemos a outra também.
Sem
relação com "bom", não há "ruim", na
dependência da qual formamos a ideia de "bom". Portanto,
"bom" é ininteligível. Não existe "bom" não
relacionado a "ruim"; todavia, formamos nossa ideia de
"ruim" em dependência disso. Portanto, não há "mau".
(Nagarjuna)
Este ponto abstrato
se torna mais relevante quando, por exemplo, consideramos o problema
de como viver uma vida “pura”. A implicação do argumento de
Nagarjuna é que tentar viver uma vida pura envolve uma preocupação
com a impureza. Para se ter apenas pensamentos e ações puros, se
deve evitar os impuros, e isso significa determinar a qual das duas
categorias cada pensamento e ação pertence. Geralmente se alega que
esta tendência dicotomizada da mente nos impede de experienciar as
situações como elas realmente são em si mesmas, quando categorias
dualistas como puro e impuro, bom e mau, etc, são aplicadas. Estas
advertências são especialmente comuns no Budismo Mahayana:
Danaparamita
[literalmente, generosidade perfeita ou transcendental] significa
renúncia… ao dualismo dos opostos. Significa total renúncia de
ideias como a natureza dual do bom e do mau, ser e não-ser, amor e
aversão, vazio e não-vazio, concentração e distração, puro e
impuro. Ao desistir de todas elas, atingimos um estado no qual todos
os opostos são vistos como vazios.
Pensar
em termos de ser e não-ser é chamado pensamento incorreto, enquanto
não-pensar naqueles termos é chamado pensamento correto. De modo
similar, pensar em termos de bem e mal é incorreto; não pensar
assim é pensamento correto. O mesmo se aplica a todas as outras
categorias de opostos – tristeza e alegria, começo e fim… todos
são chamados de pensamento incorreto, enquanto abster-se de pensar
nestas categorias é chamado de pensamento correto. (Hui Hai)
A segunda passagem
contém uma afirmação que nega a si mesma, como Hui Hai deve ter
percebido: o pensamento dualista é criticado como pensamento
incorreto, mas a distinção entre pensamento correto e incorreto é
ela mesma dualista. Assim, de fato, é a própria distinção entre
pensamento dualista e não-dualista, ou entre dualidade e
não-dualidade em geral. Levada a esse extremo, "a perfeição
da sabedoria (prajñaparamita) não deve ser vista nem da
dualidade nem da não-dualidade". Portanto, tal ensinamento
tende naturalmente à autonegação e ao paradoxo, devido à sua
aparente violação da lógica, especialmente da lei da identidade:
P:
O Vimalakirti Nirdesha Sutra diz: “Quem quer que queira alcançar a
Terra Pura, primeiro precisa purificar sua mente.” Qual é o
significado desta purificação da mente?
R:
Significa purificá-la ao nível da pureza final.
P:
Mas, o que isso quer dizer?
R:
É um estado além de pureza e impureza… A pureza pertence a uma
mente que não habita em nada. Conseguir isso sem sequer pensar em
pureza é chamado ausência de pureza; e conseguir isso sem dar a
entender que um pensamento deve estar livre da ausência de pureza,
também. (Hui Hai)
Em outras palavras,
“pureza não é pureza; é por isso que é pureza”. Este paradoxo
– A não é A, assim sendo é A – é encontrado em sua forma mais
clara na literatura Prajñaparamita. O Sutra de Diamante, no caso,
contém muitos exemplos:
Subhuti,
as assim chamadas boas virtudes, diz o Tathagata, não são boas, mas
são chamadas de boas virtudes.
Subhuti,
quando [o Tathagata] expõe o Dharma, não há na verdade nenhum
Dharma a ensinar: mas isso é chamado ensinar o Dharma.
Este paradoxo
encontra sua “mais pura” expressão filosófica no Madhyamika.
Nagarjuna insistiu que o próprio Buda não tinha visões
filosóficas, e sua abordagem típica estava apenas preocupada em
demonstrar que todas as posições filosóficas são contraditórias
e insustentáveis. No processo, ele teve a oportunidade de empregar o
termo Shunyata (vazio), mas ai de quem agarra esta cobra pelo
lado errado e toma shunyata como uma afirmação positiva sobre a
natureza da realidade: “Os conquistadores espirituais proclamaram
shunyata como o esgotamento de todas as teorias e pontos de vista;
aqueles para quem shunyata é uma teoria, eles declaram ser
incuráveis.” Na medida em que a afirmação de qualquer posição
filosófica nega a visão oposta, pode-se dizer que a Madhyamika
desenvolveu a crítica do pensamento dualista para suas conclusões
filosóficas mais extremas. O Ch'an (Zen) deu um passo adiante e
eliminou até a antifilosofia de Nagarjuna:
O
dharma fundamental do dharma é que não há dharmas, ainda que este
dharma do não-dharma seja em si um dharma; e agora que o não-dharma
foi transmitido, como pode o dharma do dharma ser um dharma? (Huang
Po)
O resultado disso
foi que nenhum ensino - nem mesmo anti-ensino - restou para ser
ensinado. Em vez disso, os mestres Ch'an usavam várias técnicas não
convencionais e ilógicas para despertar um aluno, o que, nesse
contexto, significa fazer com que o aluno abandone quaisquer
dualidades às quais ele ou ela ainda se apega.
Mas não é a
natureza geral de todo raciocínio mover-se entre afirmação e
negação, entre "é" e "não é"? A crítica do
pensamento dualista, assim, frequentemente se expande para incluir
todo pensamento conceitual ou conceitualização.
Você
nunca pode chegar à iluminação através de inferência, cognição
ou conceitualização. Pare de se apegar a todas as formas de
pensamento! Enfatizo isso, porque é o ponto central de toda a
prática Zen ...
...
Você deve derreter suas ilusões ... As opiniões que mantém e seu
conhecimento mundano são suas ilusões. Também estão incluídos
conceitos filosóficos e morais, por mais elevados que sejam, bem
como crenças e dogmas religiosos, sem mencionar pensamentos comuns e
inocentes. Em resumo, todas as ideias concebíveis são adotadas
dentro do termo "ilusões" e, como tal, são um obstáculo
à realização de sua natureza essencial. (Yasutani)
Essa versão
expandida da crítica parece abranger todo o pensamento, eliminando a
distinção de Hui Hai entre pensamento incorreto e pensamento
correto. Agora, o problema das categorias dualísticas é que elas
fazem parte de uma grade conceitual que normalmente, mas
inconscientemente, sobrepomos à nossa experiência imediata e que
nos ilude distorcendo essa experiência. A advertência de Yasutani é
tão absoluta que parece condenar todos os processos de pensamento
possíveis, mas uma “inflação” tão radical apenas reforça a
objeção óbvia a esse tipo de crítica: se é (mais estreitamente)
o pensamento dualista ou (mais geralmente) o pensamento conceitual
que é problemático e, deve ser rejeitado, qual é a alternativa?
Que tipo de pensamento permanece? Se toda a linguagem parece se
dualizar, ao distinguir sujeito de predicado/atributo, como pode
haver algo como pensamento não-dual ou não-conceitual? Podemos nos
dar bem sem categorias dualísticas? E mesmo se pudermos, é
desejável? A natureza de qualquer alternativa - ou não é nenhum
pensamento? - precisa ser explicada e sua viabilidade defendida. Mas
o problema não pode ser resolvido nesta fase de nossa investigação.
Sobre
o autor
David Robert Loy
é professor da
Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de Bunkyo, Japão.
Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um professor Zen
qualificado. Ele é o autor de "Falta e Transcendência: O
Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia, Existencialismo e
Budismo" [Lack
and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy,
Existentialism, and Buddhism]
e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada"
[Nonduality: A
Study in Comparative Philosophy],
além de vários artigos. (www.davidloy.org)
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