segunda-feira, 2 de setembro de 2019

A Negação do Pensamento Dualista

Por David Loy (Este artigo contém a primeira parte do Capítulo 1 do livro Nonduality, intitulado “Quantas Não-dualidades Existem?” que está sendo traduzido por Paulo Stekel)


Introdução

Nenhum conceito é mais importante no pensamento filosófico e religioso asiático do que a não-dualidade (Sânscrito advaya e advaita, Tibetano gñis-med, Chinês pu-erh, Japonês fu-ni), e nenhum é mais ambíguo. O termo tem sido usado em muitas maneiras diferentes, embora relacionadas, e no meu conhecimento, as distinções entre estes significados nunca foram completamente esclarecidas. Estes significados são distintos, embora frequentemente se sobreponham em instâncias particulares.

Os seguintes tipos de não-dualidade são discutidos aqui: a negação do pensamento dualista, a não-pluralidade do mundo [N.T. o segundo artigo que postaremos] e a não-diferença de sujeito e objeto [N.T. o terceiro artigo que postaremos referente ao capítulo 1 do livro de Loy]. [N.T. Em artigos subsequentes que postaremos aqui, cfe. Loy, “nossa atenção se focará principalmente sobre o último destes três, embora haverá ocasião para considerar duas outras não-dualidades que estão também intimamente relacionadas: primeira, aquela que tem sido chamada de a identidade dos fenômenos e do Absoluto, ou a equação Mahayana de samsara e nirvana, que pode também ser expressa como “a não-dualidade da dualidade e não-dualidade”; segunda, a possibilidade de uma unidade mística entre Deus e o homem]. Sem dúvida que outras não-dualidades podem ser distinguidas, mas a maior parte delas pode ser agrupada sob uma ou mais das categorias acima. Como a construção negativa da palavra em todas as línguas sugere, o significado de cada não-dualidade pode ser compreendido somente a partir da referência à dualidade em particular que está sendo negada. Veremos prontamente que cada uma destas negações tem tanto uma função ontológica quanto soteriológica; o termo é usado para criticar nossa experiência dualista comum (ou compreensão da experiência) como sendo delusiva e insatisfatória, e o modo não-dual correspondente é recomendado tanto como sendo verídico quanto superior.

Crítica do Pensamento Dualista

É porque existe "é" que existe "não é"; é porque existe "não existe" que existe "existe". Sendo essa a situação, os sábios não abordam as coisas nesse nível, mas refletem a luz da natureza. (Chuang Tzu)

Nossa primeira não-dualidade é uma crítica do “pensamento dualista”, ou seja, do pensamento que diferencia aquilo-sobre-o-que-é-pensado em duas categorias opostas: ser e não-ser, sucesso e fracasso, vida e morte, iluminação e delusão, e assim por diante. O problema com tal pensamento é que, embora as distinções sejam feitas geralmente para se escolher uma ou outra, não podemos tomar uma sem a outra, uma vez que elas são interdependentes; ao afirmar uma metade da dualidade, mantemos a outra também.

Sem relação com "bom", não há "ruim", na dependência da qual formamos a ideia de "bom". Portanto, "bom" é ininteligível. Não existe "bom" não relacionado a "ruim"; todavia, formamos nossa ideia de "ruim" em dependência disso. Portanto, não há "mau". (Nagarjuna)

Este ponto abstrato se torna mais relevante quando, por exemplo, consideramos o problema de como viver uma vida “pura”. A implicação do argumento de Nagarjuna é que tentar viver uma vida pura envolve uma preocupação com a impureza. Para se ter apenas pensamentos e ações puros, se deve evitar os impuros, e isso significa determinar a qual das duas categorias cada pensamento e ação pertence. Geralmente se alega que esta tendência dicotomizada da mente nos impede de experienciar as situações como elas realmente são em si mesmas, quando categorias dualistas como puro e impuro, bom e mau, etc, são aplicadas. Estas advertências são especialmente comuns no Budismo Mahayana:

Danaparamita [literalmente, generosidade perfeita ou transcendental] significa renúncia… ao dualismo dos opostos. Significa total renúncia de ideias como a natureza dual do bom e do mau, ser e não-ser, amor e aversão, vazio e não-vazio, concentração e distração, puro e impuro. Ao desistir de todas elas, atingimos um estado no qual todos os opostos são vistos como vazios.

Pensar em termos de ser e não-ser é chamado pensamento incorreto, enquanto não-pensar naqueles termos é chamado pensamento correto. De modo similar, pensar em termos de bem e mal é incorreto; não pensar assim é pensamento correto. O mesmo se aplica a todas as outras categorias de opostos – tristeza e alegria, começo e fim… todos são chamados de pensamento incorreto, enquanto abster-se de pensar nestas categorias é chamado de pensamento correto. (Hui Hai)

A segunda passagem contém uma afirmação que nega a si mesma, como Hui Hai deve ter percebido: o pensamento dualista é criticado como pensamento incorreto, mas a distinção entre pensamento correto e incorreto é ela mesma dualista. Assim, de fato, é a própria distinção entre pensamento dualista e não-dualista, ou entre dualidade e não-dualidade em geral. Levada a esse extremo, "a perfeição da sabedoria (prajñaparamita) não deve ser vista nem da dualidade nem da não-dualidade". Portanto, tal ensinamento tende naturalmente à autonegação e ao paradoxo, devido à sua aparente violação da lógica, especialmente da lei da identidade:

P: O Vimalakirti Nirdesha Sutra diz: “Quem quer que queira alcançar a Terra Pura, primeiro precisa purificar sua mente.” Qual é o significado desta purificação da mente?
R: Significa purificá-la ao nível da pureza final.
P: Mas, o que isso quer dizer?
R: É um estado além de pureza e impureza… A pureza pertence a uma mente que não habita em nada. Conseguir isso sem sequer pensar em pureza é chamado ausência de pureza; e conseguir isso sem dar a entender que um pensamento deve estar livre da ausência de pureza, também. (Hui Hai)

Em outras palavras, “pureza não é pureza; é por isso que é pureza”. Este paradoxo – A não é A, assim sendo é A – é encontrado em sua forma mais clara na literatura Prajñaparamita. O Sutra de Diamante, no caso, contém muitos exemplos:

Subhuti, as assim chamadas boas virtudes, diz o Tathagata, não são boas, mas são chamadas de boas virtudes.

Subhuti, quando [o Tathagata] expõe o Dharma, não há na verdade nenhum Dharma a ensinar: mas isso é chamado ensinar o Dharma.

Este paradoxo encontra sua “mais pura” expressão filosófica no Madhyamika. Nagarjuna insistiu que o próprio Buda não tinha visões filosóficas, e sua abordagem típica estava apenas preocupada em demonstrar que todas as posições filosóficas são contraditórias e insustentáveis. No processo, ele teve a oportunidade de empregar o termo Shunyata (vazio), mas ai de quem agarra esta cobra pelo lado errado e toma shunyata como uma afirmação positiva sobre a natureza da realidade: “Os conquistadores espirituais proclamaram shunyata como o esgotamento de todas as teorias e pontos de vista; aqueles para quem shunyata é uma teoria, eles declaram ser incuráveis.” Na medida em que a afirmação de qualquer posição filosófica nega a visão oposta, pode-se dizer que a Madhyamika desenvolveu a crítica do pensamento dualista para suas conclusões filosóficas mais extremas. O Ch'an (Zen) deu um passo adiante e eliminou até a antifilosofia de Nagarjuna:

O dharma fundamental do dharma é que não há dharmas, ainda que este dharma do não-dharma seja em si um dharma; e agora que o não-dharma foi transmitido, como pode o dharma do dharma ser um dharma? (Huang Po)

O resultado disso foi que nenhum ensino - nem mesmo anti-ensino - restou para ser ensinado. Em vez disso, os mestres Ch'an usavam várias técnicas não convencionais e ilógicas para despertar um aluno, o que, nesse contexto, significa fazer com que o aluno abandone quaisquer dualidades às quais ele ou ela ainda se apega.

Mas não é a natureza geral de todo raciocínio mover-se entre afirmação e negação, entre "é" e "não é"? A crítica do pensamento dualista, assim, frequentemente se expande para incluir todo pensamento conceitual ou conceitualização.

Você nunca pode chegar à iluminação através de inferência, cognição ou conceitualização. Pare de se apegar a todas as formas de pensamento! Enfatizo isso, porque é o ponto central de toda a prática Zen ...

... Você deve derreter suas ilusões ... As opiniões que mantém e seu conhecimento mundano são suas ilusões. Também estão incluídos conceitos filosóficos e morais, por mais elevados que sejam, bem como crenças e dogmas religiosos, sem mencionar pensamentos comuns e inocentes. Em resumo, todas as ideias concebíveis são adotadas dentro do termo "ilusões" e, como tal, são um obstáculo à realização de sua natureza essencial. (Yasutani)

Essa versão expandida da crítica parece abranger todo o pensamento, eliminando a distinção de Hui Hai entre pensamento incorreto e pensamento correto. Agora, o problema das categorias dualísticas é que elas fazem parte de uma grade conceitual que normalmente, mas inconscientemente, sobrepomos à nossa experiência imediata e que nos ilude distorcendo essa experiência. A advertência de Yasutani é tão absoluta que parece condenar todos os processos de pensamento possíveis, mas uma “inflação” tão radical apenas reforça a objeção óbvia a esse tipo de crítica: se é (mais estreitamente) o pensamento dualista ou (mais geralmente) o pensamento conceitual que é problemático e, deve ser rejeitado, qual é a alternativa? Que tipo de pensamento permanece? Se toda a linguagem parece se dualizar, ao distinguir sujeito de predicado/atributo, como pode haver algo como pensamento não-dual ou não-conceitual? Podemos nos dar bem sem categorias dualísticas? E mesmo se pudermos, é desejável? A natureza de qualquer alternativa - ou não é nenhum pensamento? - precisa ser explicada e sua viabilidade defendida. Mas o problema não pode ser resolvido nesta fase de nossa investigação.

Sobre o autor

David Robert Loy é professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia, Existencialismo e Budismo" [Lack and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy, Existentialism, and Buddhism] e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada" [Nonduality: A Study in Comparative Philosophy], além de vários artigos. (www.davidloy.org)

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