Por David Loy (Este artigo contém a
segunda parte do Capítulo 1
do livro Nonduality, intitulado “Quantas
Não-dualidades Existem?” que está sendo traduzido
por Paulo Stekel)
O
que está aqui, o mesmo está lá; e o que está lá, o mesmo está
aqui. Vai de morte em morte, quem vê alguma diferença aqui.
Somente
pela mente Brahman deve ser realizado; então, não se vê nela
nenhuma multiplicidade. Se
vai de morte em morte, quem
vê nela alguma multiplicidade.
(Katha Upanishad)
É devido à
sobreposição do pensamento dualista que experimentamos o próprio
mundo dualisticamente em nosso segundo sentido: como uma coleção de
objetos discretos [N.T. distintos, descontínuos] (um deles
sendo eu) interagindo causalmente no espaço e no tempo. A negação
do pensamento dualista leva à negação dessa maneira de
experimentar o mundo. Isso nos leva ao segundo senso de
não-dualidade: que o mundo em si é não-plural, porque todas as
coisas "no" mundo não são realmente distintas umas das
outras, mas juntas constituem um todo integral. A relação entre
esses dois sentidos da não-dualidade é mostrada por Huang Po no
início de seu registro de Chun Chou:
Todos
os Budas e todos os seres sencientes não são nada além da Mente
Una,
além da qual nada existe. Essa mente, que não tem começo, é
não-nascida e não-destrutível.
Não é verde nem amarela
e não tem forma nem aparência. Não pertence às categorias de
coisas que existem ou não existem, nem pode ser pensada
em termos de novo ou antigo. Não é longa
nem curta,
grande nem pequena,
pois transcende todos os limites, medidas, nomes, traços e
comparações. É isso que você vê diante de si - começe
a refletir sobre isso e imediatamente caia
no erro.
Isso afirma mais do
que qualquer coisa que tudo é composto de alguma substância
indefinível. A unidade de tudo "no" mundo diz que cada
coisa é uma manifestação de um todo "espiritual" porque
a Mente Una incorpora toda a consciência e todas as mentes. Esse
todo - indivisível, sem nascimento e sem morte - foi designado por
uma variedade de termos; assim como a Mente Una, há o Tao, Brahman,
o Dharmakaya e assim por diante.
Há
um começo que contém tudo.
Antes
do céu e da terra, ele existe:
Calmo!
Sem forma!
Fica
sozinho e não muda.
Ele
penetra em todos os lugares sem obstáculos.
Por
isso, pode ser chamado de a mãe do mundo.
Eu
não sei o nome dele; mas eu o
chamo
de Tao. (Tao
Tê Ching)
Agora,
tudo isso [universo] era então indiferenciado. Tornou-se
diferenciado por nome e forma; era conhecido por tal e tal nome, e
tal e tal forma. Assim, até hoje, esse [universo] é diferenciado
por nome e forma; [assim é dito:] Ele tem esse nome e tal forma.
(Brihadaranyaka Upanishad)
Mudanças
na linha de pensamento de alguém produzem mudanças correspondentes
na sua concepção do mundo externo ...
Assim
que uma coisa é vista, ela aparece.
Ver
as
coisas
como uma multiplicidade, e assim se apegar à separação, é errar.
(Padmasanbhava)
O mecanismo de
diferenciação identificado nesta passagem do Brihadaranyaka
Upanishad - namarupa (nome e forma), que é uma descrição
Vedântica comum de maya - também é mencionado no primeiro
capítulo do Tao Tê Ching, onde desempenha a mesma função
na diferenciação do Tao. Compare também a seguinte citação de
Chuang Tzu:
O
conhecimento dos antigos era perfeito. Quão perfeito? A princípio,
eles não sabiam que havia coisas. Este é o conhecimento mais
perfeito; nada pode ser adicionado. Em seguida, eles sabiam que havia
coisas, mas ainda não faziam distinções entre elas.
Em seguida, fizeram distinções entre elas,
mas ainda não as
julgaram. Quando os julgamentos foram aprovados, o Tao foi destruído.
Assim, temos
passagens de quatro tradições diferentes - os Upanishads, o budismo
tibetano, o taoismo e o Zen - que afirmam explicitamente a mesma
relação entre esses dois primeiros sentidos da não-dualidade: que
o pensamento conceitual dualista é o que nos leva a experimentar um
mundo pluralista.
Se compararmos as
duas passagens seguintes com a citação de Huang Po no início deste
artigo, teremos nosso primeiro encontro com uma controvérsia que se
desenvolve em um dos principais tópicos deste assunto:
Esse
eu é aquilo que foi descrito como não isso, não isso. É
imperceptível, pois não é percebido; imperecível,
pois nunca decai; desapegado, pois nunca está apegado; sem
restrições, pois Ele nunca sente dor e nunca sofre ferimentos.
(Brihadaranyaka Upanishad)
Olhe
para ele; não há nada para ver.
É
chamado de sem forma.
Preste
atenção; não há nada para ouvir.
É
chamado de silencioso.
Agarrá-lo;
não há nada para se agarrar.
É
chamado de imaterial.
...
Invisível,
não pode ser chamado por nenhum nome.
Volta
novamente ao nada.
Assim,
chamamos isso de forma do sem forma
A
imagem do sem imagem. (Tao Tê Ching)
Essas seleções
afirmam que o Atman/Tao não é perceptível. Huang Po concorda que a
Mente Una é sem forma, incolor e sem aparência, mas também diz "é
isso que você vê diante de você". Shankara é citado com
o mesmo efeito: "o universo é uma série ininterrupta de
percepções de Brahman". Isso nos leva à inevitável
questão sobre a relação entre o Atman/Tao/Mente Una não-plural e
as múltiplas particularidades sensíveis deste mundo. Os fenômenos
são meramente mayas (ilusões) delusivas que
obscurecem essa Mente sem atributos, ou são manifestações dela? A
rigor, talvez não se possa dizer que a visão anterior mantenha a
não-pluralidade como a unidade dos fenômenos, mas postula um
terreno monístico que os "subjaz". Isso parece criar outra
não-dualidade - entre fenômenos e Mente, entre dualidade e
não-dualidade - que se torna problemática, como veremos. Em
contraste, a última visão não implica necessariamente em monismo,
dependendo de como o monismo é definido. Uma versão mais fraca do
pluralismo, de que há muitas coisas, pode ser compatível com uma
versão mais fraca de monismo, de que há apenas um tipo de coisa
(por exemplo, a Mente), é importante para a compreensão da
metafísica mahayana.
Os Upanishads e o
Tao Tê Ching também contêm passagens que implicam outra
posição intermediária entre o monismo e o pluralismo: que o
Atman/Tao funciona como uma primeira causa que criou o mundo
fenomenal e o permeia como uma espécie de essência espiritual. A
primeira passagem citada acima do Upanishad Brihadaranyaka continua:
Esse
Eu penetrou nesses corpos até as pontas das unhas, como uma navalha
[escondida] em seu estojo, ou como fogo, que sustenta o mundo,
[oculto] em sua fonte.
Existe a mesma
afirmação no Katha Upanishad:
Como
o mesmo fogo não-dual, depois de entrar no mundo, torna-se diferente
de acordo com o que queima, assim também o mesmo Atman não-dual,
habitando
em todos os seres, torna-se diferente de acordo com o que habita.
E existe também sem
habitar.
Tal visão pode ser
criticada como incompleta - como tendendo a, mas deixando de lado a
completa não-dualidade no segundo sentido; apesar das diferenças em
sua perspectiva, nem Huang Po nem Shankara aceitariam tal distinção
entre permeador e permeado. Talvez a diferença se deva à natureza
não rigorosa desses primeiros trabalhos, pois tanto o Tao Tê
Ching quanto os Upanishads são coleções de ideias místicas, e
não obras filosóficas sistemáticas.
É digno de nota
que, embora existam muitas referências ao Tao nos textos taoístas e
a Atman/Brahman no Vedanta, há menos referências no budismo. Não
existe nenhum termo em acordo; uma variedade de expressões é usada:
dharmadhatu, dharmakaya, tathata,
vijñaptimatrata e assim por diante. Estes são todos termos
Mahayana; não existe um bom equivalente no budismo páli
porque o budismo primitivo é mais pluralista em sua preocupação
com as inter-relações dos dharmas. Geralmente, o budismo,
com exceção do Yogachara, hesita em afirmar um todo não-dual neste
segundo sentido, preferindo enfatizar que tudo é vazio (shunya),
enquanto oferece advertências contra o pensamento dualista. Essa
proporção inversa é bastante lógica: o pensamento dualista, no
sentido amplo, inclui qualquer rotulação conceitual; portanto, não
se deve citar nem mesmo o todo não-dual. Afinal, qualquer Tao que
possa ser “Taoizado” não é o Tao real.
Sobre
o autor
David Robert
Loy é
professor da Faculdade de Estudos Internacionais da Universidade de
Bunkyo, Japão. Ele estuda Zen há mais de vinte e cinco anos e é um
professor Zen qualificado. Ele é o autor de "Falta e
Transcendência: O Problema da Morte e da Vida em Psicoterapia,
Existencialismo e Budismo" [Lack
and Transcendence: The Problem of Death and Life in Psychotherapy,
Existentialism, and Buddhism]
e "Não-dualidade: Um Estudo em Filosofia Comparada"
[Nonduality: A
Study in Comparative Philosophy],
além de vários artigos. (www.davidloy.org)
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