segunda-feira, 8 de junho de 2020

Espiritualidade e Crítica Social

Por Paulo Stekel


1 - Introdução

Crítica é a arte de julgar. Em filosofia, tem o significado de análise. Kant usa o termo como designação da reflexão da validade e dos limites do ser ou de um conjunto de elaborações filosóficas. Hoje em dia, crítica se refere a uma análise sistemática sobre as condições e as consequências de um conceito, teoria ou disciplina. Desta forma, ter um ponto de vista crítico significa se opor a um ponto de vista dogmático, em qualquer terreno.

Se a crítica contempla um raciocínio, é crítica lógica. Se contempla um conceito, teoria ou experimento, é crítica intelectual. Se contempla uma conduta, é crítica moral. No contexto do presente texto, ficaremos entre a crítica lógica e a crítica moral, que achamos pertinente para o propósito do mesmo: a reflexão sobre o papel da espiritualidade (dentro da qual se inserem as religiões, instituídas ou menores) no tocante a um posicionamento ou não quanto às mazelas e ideologias da sociedade moderna.

A grande pergunta a ser respondida é, por um lado, se as diversas “espiritualidades” (antigas e modernas, incluindo as religiões e suas variantes, linhagens, tradições e escolas) devem se posicionar ou não contra raciocínios e ideologias controversas, maculadas por ações violentas e que aumentam o abismo social entre os homens (nazismo, fascismo, globalização, autoritarismo, racismo, homofobia, etc.) e, por outro lado, se elas devem não apenas apoiar, mas promover elas mesmas ações práticas no sentido de confrontar tais raciocínios e ideologias, dentro dos limites de suas doutrinas e práticas essenciais.

Já tínhamos a intenção de escrever este texto, mas um debate ocorrido no grupo virtual “Secular Buddhism” dias atrás tornou a necessidade imperativa. O debate, num contexto budista, e na esteira da recente reação ao assassinato de George Floyd nos EUA e pelo mundo afora, ocorreu entre um amigo, Luiz Fernando Rodrigues, e um membro do grupo identificado como “Alistair”. Reproduzimos trechos do debate abaixo (tradução do próprio Luiz):

Alistair: (...) Para encontrar as soluções, muitas vezes precisamos procurar esse meio termo, porque simplesmente dizer às pessoas que elas estão erradas e criticar seus pontos de vista enquanto reforça o seu, independentemente de qual lado você defende, não funcionou em toda a história da raça humana. Quanto mais rotulamos as pessoas, mais discriminamos, mesmo que as intenções sejam boas. Se víssemos todo mundo como um ser humano que é parte integrante do cosmos, criaríamos menos divisão. Uma coisa que percebo com muita frequência no momento é que a moeda que tem discriminação negativa e privilégio de branco de um lado é a mesma moeda com discriminação positiva e culpa de branco do outro. Certamente, é melhor não discriminar, de forma alguma. Quanto mais nos vemos como todas as partes individuais do mesmo cosmo, mais harmoniosamente todos podemos coexistir.

Luiz: A humanidade é uma mentira descarada. Quando você pode ser morto porque um oficial do estado está entediado, você não está sendo tratado com humanidade. Somente pessoas privilegiadas podem falar sobre mentiras vagas como “humanidade”.

Alistair: Se você acredita nisso, não há budismo. E não me venha dar sermão sobre privilégios, sem saber nada sobre minha vida ou lutas.

Luiz: A humanidade ainda está por vir. O que temos hoje é o imperialismo supremacista.

Alistair: Somente se você permitir. A humanidade como parte integrante e igual do cosmos existe desde que nossa espécie surgiu. Isso é realidade, é nirvana e entender isso é nirvana. Opressores só podem oprimir aqueles que os temem e os odeiam. Remova esses sentimentos e você remove o poder deles sobre você.

Luiz: Isso é bobagem. Floyd não poderia ter sobrevivido se não tivesse medo. As pessoas que são escravas assalariadas em unidades remotas de produção não podem ter suas barrigas cheias e sua saúde restaurada, ignorando 13 h de trabalho diário por alguns dólares. As populações indígenas não podem restaurar seu modo de vida ignorando as cercas guardadas por homens armados. As mulheres não podem ser poupadas de abuso e estupro ignorando seus agressores, geralmente seus próprios familiares e parceiros. Os trabalhadores não podem se libertar ignorando a falta de moradia e a exploração. Os negros não podem viver uma vida livre ignorando o encarceramento em massa e o assassinato rotineiro do Estado. As pessoas LGBT+ não podem nem ser elas mesmas (!) ao ignorar as ameaças de morte, gaslighting e linchamento institucional. As pessoas que querem apenas ter uma vida feliz não podem fazê-lo, ignorando todas as portas fechadas da dívida estudantil, nenhuma garantia de assistência médica, ambientes insalubres e apagamento ideológico de seus direitos e interesses legítimos em todas as mídias. Você não pode ignorar a realidade, Alistair. Esse seria o lado sombrio das tradições religiosas da história: aceite tudo, não questione nada.

Ou seja, a crítica social por parte da espiritualidade/religião e mesmo colocando a espiritualidade/religião na berlinda quando se omite, não é algo que se deva deixar de lado. Ou a espiritualidade faz a autocrítica e se insere na luta pelos direitos de todos ao bem-estar e felicidade, ou merece ela mesma todas as críticas que lhe sejam dirigidas. Não é possível ignorar, como muito bem disse Luiz Fernando, as mazelas sociais como racismo, trabalho maçante, ódio aos indígenas, misoginia, machismo, homofobia, etc., pois isso é apagar o legítimo anseio humano por vida, pertencimento e felicidade. Então, a espiritualidade, seja budista, cristã, judaica, islâmica, taoista ou uma das tendências modernas de qualquer tipo, não pode se furtar à crítica social (e, política, econômica, ambiental, etc), caso queira ser uma espiritualidade viva e viável.

2 - Crítica social

A crítica social analisa as estruturas da sociedade que são consideradas problemáticas, e busca propor soluções práticas através de medidas específicas, como uma reforma radical ou mesmo mudança de caráter revolucionário. E, “revolucionário” não deve ser considerado, necessariamente, sinônimo de “violento”, mas deve ser, via de regra, sinônimo de mudança de paradigma.

O fato é que ninguém, nem nenhuma ideologia, possui o monopólio da crítica social. Afinal, dentro do pós-modernismo e nesta era da “pós-verdade” que uns tentam implantar, não existe uma grande teoria unificadora. Mas, a necessidade de diálogo não se esvai. Se torna urgente.

No tocante à espiritualidade moderna, ela precisa considerar qual é sua crítica central. Pode ser aos ataques aos pobres e desfavorecidos, ao autoritarismo, às ditaduras ou aos sistemas políticos e econômicos que impedem o bem-estar de todos, o direito do ser à autoexpressão, à liberdade, à criatividade e a uma vida sem medo de seus iguais. Não importa. Toda a vida social deve estar sujeita à crítica de uma espiritualidade que se pretenda viva e conectada ao ser humano que deseja libertar, material e espiritualmente, das amarras externas e internas. Não é o caso de dar de ombros, incentivando a fuga para os templos, monastérios ou clausura resignada. Tal “complexo de cordeirinho” não produz benefício algum, só ajuda a perpetuar a opressão. Ainda que se possa discutir se a crítica social deve ser neutra, objetiva ou adotar um ponto de vista partidário numa questão, o que não se pode é defender uma omissão diante do óbvio ululante que priva seres humanos de seus direitos básicos em qualquer lugar do mundo.

Quando Jesus criticou a hipocrisia do mercantilismo dos fariseus, quando Buda criticou o sistema de castas e os privilégios dos sacerdotes brâmanes, quando Lutero criticou a monopolização de Deus pelo Papa ou quando o monge zen Thich Nhat Hanh criticou a guerra do Vietnã, houve uma crítica social pertinente por parte da religião/espiritualidade que não pode ser desconsiderada.

3 - Crítica da religião

Se a religião/espiritualidade precisa se manifestar de modo crítico quanto às mazelas sociais, não pode ela mesma ser imune à crítica, o que constitui a Crítica da religião, uma crítica do conceito, validade, práticas e consequências políticas e sociais da mesma. Afinal, em muitos momentos da história, a religião fomentou as desigualdades sociais, se aliou aos poderosos e até ajudou a perpetuar impérios e governos opressores, quando não se tornou ela mesma o governo e a opressão.

Um dos grandes paradoxos modernos das religiões é que, enquanto a grande maioria delas alega ter a posse exclusiva da Verdade, o que denigre as outras religiões e abre um impasse sobre a Verdade, por outro lado, se fala em relativismo religioso, a base do diálogo inter-religioso, segundo o qual, cada religião é uma forma mais ou menos equivalente de ver e de buscar a mesma coisa. Podemos contestar ambas as coisas dizendo que: nenhuma religião pode pretender ter a Verdade última e todas elas não são equivalentes, não falam a mesma coisa. Argumentos em contrário servem apenas para colocar panos quentes no conflito evidente: a propriedade da Verdade.

É fato que, enquanto religiões e espiritualidades ocidentais pretendem que a Verdade dependa exclusivamente de textos sagrados, dogmas e interpretações escolásticas, religiões e espiritualidades extremo-orientais consideram o fator individual na busca de uma Verdade apenas apontada em textos sagrados e suas interpretações mais eminentes. Em resumo e a grosso modo, a espiritualidade ocidental deseja crença e devoção; a espiritualidade oriental propõe busca e experimentação.

Se faz necessária uma nota sobre as “novas espiritualidades” ocidentais (neoxamanismo, universalismo, “nova era”, neocabala, teosofia, etc.). Elas incorporam muito da busca e experimentação do extremo-oriente, mas mantém a crença e a devoção ocidentais. Contudo, sua visão de Deus não se baseia no dogmatismo bíblico, mas numa visão menos teísta e mais deísta da Divindade. O deísmo, que se destacou nos séculos 17 e 18 durante o Iluminismo, é uma crença que não segue a doutrina da Trindade, da divindade de Jesus, dos milagres ou da infalibilidade bíblica, mas que acredita em uma causa divina. Com o tempo, influenciou fortemente grupos religiosos, como o Unitarianismo e o Universalismo, que desenvolveram-se a partir dele. As “novas espiritualidades” frequentemente apresentam uma visão deísta não-padrão, mas que, à primeira vista, parece a crença em Deus “que todo mundo tem” (?). A busca da Verdade nestas novas tendências se torna muito relativizada e, atualmente, chega a flertar por vezes com a “pós-verdade”, tão perniciosa para o desenvolvimento humano. Num anseio de quebrar os pratos com antigos dogmas, fanatismos, imposições e desconhecimentos científicos, as novas visões espirituais correm o risco de engendrar novos engessamentos doutrinários e mesmo uma negação da Ciência via teorias da conspiração.

Nesse sentido, uma “nova espiritualidade” que entenda a importância da Ciência e da Crítica Social, abandonando ideias arcaicas e olhando para o panorama geral e plural do mundo, é o que chamamos, por vezes, de “Ciência Espiritual”, um conceito que está ainda em desenvolvimento (desenvolvido direta ou indiretamente e, não necessariamente de modo concordante, por autores como Steve Taylor, Mario Beauregard, Ervin Laszlo, Fritjof Capra, Ken Wilber, Amit Goswami, Steve McIntosh, Anthony Peake, etc.). Uma tal visão abre espaço para o lado introspectivo e contemplativo das espiritualidades orientais mais que para os dogmas das ocidentais, mas não se fecha ao transcendental e ao imanente na busca pela Verdade.

4 – O caso do Budismo


Sidarta Gautama, o Buda, nasceu em Lumbini (hoje, patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) por volta do ano 566 a. C. e cresceu em Kapilavastu, atuais localidades nepalesas. Seu pai queria que ele se tornasse rei como ele, mas o jovem tinha seus próprios planos. Criado com todo o conforto do palácio e longe das mazelas de seu povo, que eram “maquiadas” por seu pai quando Sidarta saia pelo reino, o jovem se compadeceu do sofrimento humano, o que o levou a uma busca espiritual para chegar a uma solução para a dor que permeia a vida. Recurar-se a continuar fazendo parte das discrepâncias sociais de sua época foi, sem sombra de dúvida, uma atitude muito política, de política social.

Quando tinha cerca de 40 anos de idade, Sidarta conseguiu atingir a iluminação espiritual, o Despertar Último. Assim que atraiu um grupo de seguidores, instituiu uma ordem monástica. Esta ordem aceitava pessoas de todas as castas, pessoas sem casta e mulheres – atualmente, as mulheres estão prejudicadas nesse sentido, pois sua ordenação é inexistente em muitas tradições e são tratadas de modo inferior aos homens, o que deve ser rechaçado com veemência. Na época do Buda ninguém era excluído. Mais uma atitude política, considerando-se o sentido amplo do termo, além de algo muito moderno para os parâmetros da época. Assim como no caso de Jesus, nem pobres, nem bandidos, nem prostitutas eram excluídos.

A época do surgimento do Buda foi um período de turbulência social e religiosa, onde havia grande descontentamento com os sacrifícios e rituais do bramanismo védico. Vários novos ensinamentos e grupos ascéticos, religiosos e filosóficos romperam com bramanismo e rejeitaram a autoridade dos Vedas. O Buda se insere neste contexto que, além de religioso, é profundamente político.

Contudo, podemos dizer que o Buda nunca tolerou a participação política para além de funções passivas de assessoramento. Ele mesmo assessorava reis e altos funcionários do governo, orientando-os sobre como melhor conduzir suas funções em prol da maioria. Uma mescla de pensamento democrático e espiritual, dadas as condições da época. Mas, o Buda nunca aprovaria ações violentas vindas de budistas, como ocorreram em vários momentos da história do Sri Lanka e no Japão da Segunda Guerra, onde instituições budistas justificaram o militarismo japonês em publicações oficiais e colaboraram com o exército no campo de batalha – posteriormente, várias instituições budistas se desculparam por tal apoio.

O Budismo, sem qualquer ritualismo ou simbolismo cultural (de origem indiano), se aproxima muito da moderna Ética e do Humanismo científico, mas vai além, por propor um processo individual de desenvolvimento mental que leva até o Despertar definitivo da ignorância sobre a Natureza da Mente e da Realidade. Nada disso depende de ritualismo religioso, e é como nós mesmos vemos o Darma budista como algo viável no Século 21.

Essa visão, inclusive, se contrapõe à opinião distorcida sobre o Budismo apresentada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, para quem “o budismo se apresentaria como portador de uma atitude conservadora e reacionária (…) [sendo] no capitalismo pós-industrial (...) algo palatável, um instrumento de adaptação a esse espírito do tempo”. Esta citação é feita em um artigo acadêmico que critica a visão de Zizek (apresentada em: ZIZEK, Slavoj. On belief. Inglaterra: Routledge, 2001), intitulado “Budismo no Ocidente: algumas reflexões a partir das críticas de Slavoj Zizek ou como pensar alguns aspectos da espiritualidade no mundo contemporâneo” (Ver em https://periodicos.unb.br/index.php/rbfr/article/view/17358/15868, in: REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO - BRASÍLIA/V.3N.1/P.134-150/AGO.2016), do Doutor em Filosofia Medieval, Antônio C. Madalena Genz (UFRGS, Campus Jaguarão – RS), e que foi uma das fontes de inspiração para este texto que agora escrevemos, pois Genz reconhece o potencial revolucionário do Budismo de Buda, o original.

Na verdade, para Genz, em seu artigo, a crítica ao Budismo feita por Zizek “é focada em uma espécie de ‘budismo ocidental’, que emerge e se constitui como algo dentro de uma constelação de dispositivos Nova Era que funcionariam, no fundo, como corroboradores da hegemonia do capitalismo mundial, para ‘manter a paz’ e o equilíbrio de forma individualista, reforçando a dominação sobre sujeitos passivos”.

Na nossa opinião, este tipo de “budismo ocidental” é um entendimento distorcido e incompleto do que seja o Budismo de fato, mesclado com visões ocidentais e maniqueísmo cristão. Vemos isso facilmente em qualquer discussão de grupos budistas abertos em redes sociais, onde os debatedores, especialmente os simpatizantes e os praticantes iniciais, demonstram tal entendimento e perpetuam o mito do “budista neutro”. Genz entende que isso aponta para um modo o budismo e outras formas de espiritualidade, como o taoismo, estão sendo “reapropriados e ressignificados no Ocidente”.

Na verdade, conforme Genz, a crítica de Zizek não é ao Budismo original do Buda, mas a:

“(…) um tipo de budismo palatável, domesticado e absorvido pela sociedade consumista. Ao invés da autonomia e plena responsabilidade enfatizadas por Buda para cada indivíduo, temos um sujeito passivo que reforça sua prisão com o capital simbólico de uma paz interior e serenidade que não levam à libertação, mas de forma insidiosa e sutil tornam a prisão mais oculta. Um grau novo do
individualismo contemporâneo em que o sujeito é estimulado a pensar que está transformando a si próprio, sem perceber as condições de sofrimento do mundo ao redor. Ao invés de insights reais sobre a natureza interdependente da realidade (conceito fundamental do budismo), uma falsa percepção de felicidade e do estatuto da realidade.”

Para Zizek, a própria meditação tem sido usada neste “budismo domesticado” como forma de se assimilar o status quo e favorecer o conservadorismo passivo. De fato, vemos isso em muitos grupos de meditação budista, especialmente nos que se consideram menos “políticos” (e, também, menos conectados a ações humanitárias). Porém, não significa que a meditação tenha essa função, uma vez que seu principal potencial se dirige “para a conscientização e para a transformação de si mesmo” (Genz).

Genz: Para Zizek, a meditação nesse modelo de budismo ocidental é a forma mais eficiente à nossa disposição para ‘participar plenamente da dinâmica capitalista, retendo ao mesmo tempo a aparência de sanidade mental.’ (2001, p. 13). E, explicitamente, Zizek afirma que o budismo ou taoísmo, nos permite participar, de modo pleno, da paz frenética do jogo capitalista, mantendo a percepção de que não se está realmente nele, de que se está bastante ciente do quão irrelevante é esse espetáculo. O que realmente importa é a paz do self interior, para o qual podemos sempre nos retirar. (ZIZEK, 2001, p. 15)

Tendo a concordar com as observações de Zizek. Muitos dos modos e práticas de espiritualidade no Ocidente, não necessariamente budistas ou taoístas, englobando uma gama ampla de formas, parecem-me cair dentro dessa descrição. Mas, ao mesmo tempo, nada está mais longe do potencial budista tal como preconizado por Buda e testemunhado por praticantes budistas ocidentais. Mais do que isso, o budismo é uma das formas mais contundentes de crítica a essa mesma sociedade consumista, niilista e destrutiva que Zizek combate.

Para contrastar a visão de Zizek, podemos evocar a presença de um monge tão atuante quanto Sulak Sivaraksa, esse notável monge tailandês, companheiro de Thich Nhat Hahn, naquilo que se denomina de budismo engajado, por fazer uma crítica explícita ao mundo em que vivemos. No livro
A sabedoria da sustentabilidade, Sivaraksa descreve o consumismo como uma ‘religião demoníaca’, um dos principais condutores da crise do clima.

(…) São duas falas que, justapostas, trazem esse inusitado: Sivaraksa faz uma crítica demolidora do sistema a partir do cerne da visão budista. E Zizek, que sabemos ser um crítico radical desse mesmo sistema, critica o budismo por ser uma espécie de instrumento desse sistema. Mais do que falar em abstrato de uma religião, qualquer uma delas, a questão, no que importa, recai sempre no nível da prática e na qualidade de engajamento real com a religião.”

Para Genz, a meditação budista, contrariamente à acusação de Zizek, serve para domar nossa “mente de macaco” que, inclusive, deseja a passividade diante das mazelas da sociedade:

É fácil a distração, é fácil ficar na frente da televisão ou em outra forma de passividade, até aquelas sofisticadas que escondem a passividade sob uma roupagem de falsa atividade, como os jogos e videogames, que podem ser vistos como uma forma perversa de passividade, já que, sob a aparência de atividade, hipnotizam e embotam os sentidos a ponto de esses progressivamente perderem o interesse no mundo real concreto, esse mundo com o qual e para o qual nossos corpos foram feitos para sentir, perceber e realizar-se nele e através dele.

O budismo descreve o estado normal e habitual de nossa mente como ‘o macaco louco’, que como tal está sempre a pular de galho em galho. Nossa mente é assim por natureza, dispersiva. Meditar é ir em sentido contrário: estabilizar a mente, concentrar e, então, meditar. O consumismo, como Sivaraksa salientou, é exatamente esse estimulante perpétuo da mente distraída, o combustível do macaco louco. Meditar é ir contra esse dinamismo. Meditar é tornar-se ativo e concentrado mentalmente. O contrário, portanto, dessa maneira pós-moderna de inserir a espiritualidade na agenda pessoal como um item cada vez mais valorizado no mercado do capital cultural de gente
moderna e descolada, que está no topo daquilo que o capitalismo oferece como bens e é expresso na publicidade de cartões de crédito, bancos, automóveis e tudo mais que serve de fetiche para o capital na sua vertigem avassaladora rumo... ao nada. Um mecanismo que faz girar não a roda do Darma, mas a roda de violência, destruição, ganância, ódio, como apontou sabiamente Sulak Sivaraksa. A destruição das condições de vida em nosso planeta é emblema disso.”

Para Ricardo Strauch Aveline (filho do Lama Padma Samten), eu sua Tese de Doutorado em Ciências Sociais, intitulada “As Transformações Históricas do Budismo e suas Implicações Ético-Sociais (Ver em http://biblioteca.asav.org.br/vinculos/tede/RicardoAvelineCienciasSociais.pdf), complementando a ideia de Genz sobre o Budismo Engajado:

O engajamento social budista está baseado em uma teoria social budista e na ideia da construção de uma cultura de paz. A cultura de paz está enraizada na noção de que a partir do estabelecimento de ações pessoais favoráveis em relação aos outros seres, surge a felicidade no plano pessoal. Em contrapartida, o exercício de ações hostis em relação aos outros seres, impede a construção de uma civilização pacífica. Segundo a noção budista de cultura de paz, nenhum ato corrupto e agressivo constrói relações positivas e, portanto, não gera felicidade e segurança. Consequentemente, não produzirá uma cultura sustentável, não importando a quantidade de poder que possua a sua disposição (SAMTEN, 2004).

Os textos [budistas] relatam que, por onde Buda andou, ocorreram inúmeras transformações pessoais e muitas pessoas foram alcançando a iluminação. Do ponto de vista social, destaca-se a orientação de mendicância oferecida pelo Buda aos seus discípulos. Pouca alimentação, apenas para sobrevivência, não ter posses ou bens, ignorar o regime de castas (LOY, 2003). Neste sentido, os ensinamentos do Buda rompiam parcialmente com a cultura em que nascera. Segundo Usarski (2009, p. 221): Não há dúvida de que o Buda se colocou criticamente em relação à tradição dos Vedas, à fixação de um saber revelado e à justificativa suprema do sistema de castas como expressão da ordem universal inerente do cosmo (sanatana dharma). Também não aceitou a ‘certeza’ dos brâmanes de possuir o monopólio dos ‘bens religiosos’. (...) Ainda assim, o budismo colocava grande importância nas boas maneiras e também na educação, na família, provindo boa parte dos seus participantes de círculos de status distintos. Weber (1967, p. 236), explica que o ‘pequeno burguês’ e as ‘pessoas iletradas’ não encontravam benefício na soteriologia budista e não encontravam satisfação na ideia de atingir nirvana por intermédio da renúncia como um ‘penitente entre as árvores’. Para eles, afastar-se da pobreza faria mais sentido do que renunciar o pouco que tinham. Além disso, ‘eles não tinham os meios para alcançar o objeto’, pois a meditação exigia tempo para alcançar a ‘gnose’ e eles não tinham tal ‘tempo de lazer’. Ainda assim, Trainor (2007, p. 38) relata que a sangha atraiu pessoas de todos os níveis da sociedade. Buda também deu conselho aos reis de sua época sobre a importância de sociedades justas do ponto de vista social, a não-violência, a divisão dos recursos naturais de forma equânime, a extinção da lógica de castas sociais, demonstrando ter um engajamento sociopolítico com os temas sociais de sua época, o que difere de um budismo centrado unicamente na busca espiritual (PARKUM; STULTZ, 2000, p. 348-9).

Ilustra a atuação de Buda no mundo, a sua intervenção no conflito ocorrido entre os Shakyas e os Koliyas sobre a divisão da água como recurso por cada um dos reinados. Já havia preparativos militares sendo exercidos por cada parte para entrar em guerra. Em conversa com os reis, Buda perguntou a um deles: ‘Quanto vale a água, grande rei?’. ‘Muito pouco, reverendo’, respondeu o rei. ‘Quanto valem os guerreiros, grande rei?’. ‘Estão acima de qualquer preço’, respondeu o rei. Então, Buda disse, ‘não faz sentido que por um pouco de água você destrua guerreiros que estão acima de qualquer preço’ (SIVARAKSA, 2005, p. 5). Relata-se que, ao ouvirem o ensinamento, os presentes ficaram em silêncio. Então, Buda disse a eles, ‘Grandes reis, por que vocês agem dessa maneira? Se eu não estivesse presente hoje, vocês teriam derramado um rio de sangue. Vocês agiriam da forma mais destrutiva’ (SIVARAKSA, 2005, p. 5). Dentre as passagens registradas nas escrituras, relata-se que Buda, ao dar ensinamentos nas pequenas cidades e vilarejos por onde passava, aconselhou a ‘compartilhar os recursos materiais com os familiares e amigos’, ‘não ficar endividado’, ‘levar uma vida sem culpa’ e, principalmente, que ‘a maior riqueza é o contentamento’ (santutthi paramam dhanam) (LOY, 2003, p. 57).”

Esses argumentos já seriam suficientes para justificar a espiritualidade budista como engajada desde a origem, deixando os praticantes atuais à vontade para rechaçarem as mazelas modernas que aumentam o sofrimento dos seres, perpetradas pelo status sócio-político-econômico globalizado de hoje em dia. Contudo, um “novo budismo” parece nascer no Ocidente e, este sim, um budismo totalmente engajado e interessado na promoção do bem-estar coletivo tanto quanto na busca do Despertar definitivo.

Nessa linha, Aveline diz que: Também contribui para a criação de um novo budismo, o fato de que os alunos mais avançados dos religiosos budistas orientais também se tornam líderes religiosos, porém são ocidentais e leigos, ou seja, carregam consigo uma formação paralela ou concorrente, por exemplo, de cristianismo, protestantismo, cultura ocidental, além da formação escolar e acadêmica típicas do Ocidente. Tais formações influenciam a forma como esses novos budistas virão a praticar o budismo, contribuindo para o surgimento de novas formas de budismo.

No caso de Thich Nhat Hanh (monge vietnamita) refugiado na França, por exemplo, este novo budismo se manifestou por intermédio de estímulo ao serviço social, doação de trabalho e responsabilidade social, utilização da ‘meditação em ação’, ou seja, métodos para ter atenção plena durante as atividades cotidianas (TRAINOR, 2007, p. 216).”

Isso contrasta com a ideia antiga e equivocada de que o budismo é uma “religião de status anti-político, em que a salvação é um ato pessoal do indivíduo” (Aveline). Para uns, o objetivo do Bodhisattva e do praticante budista em geral não é, necessariamente, ser “um reformador social, mas ser um catalisador para transformações sociais dentro da sociedade” (Aveline), mas para outros, como Walpola Rahula, “o budismo sempre esteve atuante do ponto de vista social” (Aveline).

Aveline: “(…)[Quando] O budismo surgiu na Índia como uma força espiritual contra as injustiças sociais, contra degradantes ritos supersticiosos, cerimônias e sacrifícios, ele denunciou a tirania do sistema de castas e defendeu a igualdade de todos os homens, emancipou a mulher e deu-lhe completa liberdade espiritual. (…) Dentre as manifestações do Buda sobre a vida social, Jones (1979, p. 85-8) destaca a seguinte passagem: ‘Aquele que tem entendimento e sabedoria não pensa em prejudicar a si mesmo ou ao outro, nem em prejudicar ambos ao mesmo tempo. Ele pensa no seu próprio bem-estar, no bem-estar dos outros, no bem-estar de ambos, e no bem-estar de todo o mundo. Dessa forma mostra uma compreensão e uma grande sabedoria.’ Segundo Sulak Sivaraksa (1992, p. 71), desde os tempos do Buda hão existido muitos budistas que estiveram diretamente envolvidos com a sociedade. Houve também mestres de meditação que, apesar de não estarem envolvidos com a sociedade, deram grandes contribuições para a comunidade. Ele salienta que os mestres beneficiam por intermédio do seu exemplo ‘como provas de que a santidade é possível neste mundo’.

(…) David Loy (2007), na mesma linha, descreve o engajamento budista por meio de três pilares. Primeiramente, salienta a importância da prática espiritual. Para ele, sem a prática espiritual não há chance de se remover os venenos institucionalizados (desejo, apego, raiva, inveja e orgulho). Segundo, o comprometimento com a não-violência e, terceiro, o despertar conjunto, ou seja, a compreensão da interdependência da vida das pessoas e a noção de que, ao atuar pela melhoria da qualidade de vida de uma determinada população, gerar-se-ão efeitos benéficos para a vida de todos.”

Com certeza, esses três pilares podem ser adaptados a outras religiões e a todas as formas de espiritualidade, como veremos adiante. Mas, David Loy, um autor zen-budista de nossa máxima predileção, também desenvolveu em 2007 a ideia de que as empresas e os grandes conglomerados econômicos modernos acabam, por seu modo de ser, promovendo os chamados “três venenos” no Budismo: gânancia (cobiça), avareza (má vontade) e delusão (ilusão).

Aveline: “[Loy] Afirma que o sistema econômico institucionaliza a ganância, o militarismo institucionaliza o desejo inadequado e a mídia institucionaliza a delusão. O problema, afirma Loy (2007) não é apenas que os três venenos operem coletivamente, mas que eles assumam uma vida própria por meio das instituições. Para ele, é fundamental perceber os efeitos desses três venenos para a sociedade. Segundo Loy (2007), os três venenos da mente descritos no dharma (…) estão hoje mais fortes do que nos tempos do Buda, pois estão enraizados nas instituições sociais, sendo promovidos e multiplicados por intermédio do marketing para garantir, por meio dessa fraqueza humana, o funcionamento de um sistema que está destruindo o meio ambiente. David Loy (2003) afirma que os ensinamentos budistas apresentam uma forma de superação dos três venenos e que se esta forma for aplicada nas instituições e mesmo nas culturas, isso poderá trazer efeitos muito benéficos para a vida social.

[Para Loy] as corporações promovem, por intermédio do marketing, o desejo coletivo pela aquisição de mais bens de consumo e a ideia de que a pessoa vale o que possui. (…) Esse mecanismo utilizado pelas instituições, segundo Berger e Luckman (1998, p. 43), dá-se por intermédio de uma constante interação dessa estrutura com o indivíduo de forma a influenciar subjetivamente os juízos de valor das pessoas. Assim, segundo Berger e Luckman (1983, p. 73-4), os mesmos processos sociais que determinam a constituição do organismo produzem o ‘eu’ em sua forma particular, culturalmente relativa. Não é preciso dizer, portanto, que o organismo e, ainda mais, o ‘eu’ não podem ser devidamente compreendidos fora do particular contexto social em que foram formados. Assim, em uma sociedade que cultive os três venenos, os indivíduos naturalmente estarão ávidos pela competição e busca pela aquisição, contrariamente ao preceito budista de compaixão, bondade e amorosidade.”

5 – Espiritualidade e seu papel social

Isso tudo vale, não apenas para o caso do Budismo, mas para toda a forma de religião e de “espiritualidade”, objetivo e cerne de nosso artigo. Mas, o que entendemos por “espiritualidade”, nesse caso? Genz ajuda-nos:

(…) espiritualidade é o desenvolvimento de uma consciência que nos torna progressivamente menos egoístas, mais altruístas e intensamente atentos a nós próprios e aos outros. Em outras palavras: espiritualidade é o oposto de egoísmo. Por isso a noção de compaixão, tão forte no budismo quanto no cristianismo ou qualquer tradição espiritual. Sentir com o outro, sentir o outro. O ponto aqui é que o caminho espiritual é árduo e desafiador, porque coloca em xeque todos os mecanismos, a maioria deles arraigados na forma de hábitos que temos para continuar fazendo a roda girar como um macaco louco.”

Nesse sentido, os sistemas político-econômicos modernos podem muito bem ser os subversores de tal espiritualidade, e vemos com frequência os defensores dos primeiros colocarem a espiritualidade num patamar inferior quando lhes convém.

Para Genz:O capitalismo e seu modus vivendi, o consumismo, embalam e apresentam uma forma de budismo como uma espiritualidade sintonizada com eles, a partir da perspectiva bizarra da modernidade de inserir a espiritualidade como uma categoria a mais nas opções de vida, como uma peça que se encaixa, a peça da espiritualidade, investindo seu possuidor de maior capital social e simbólico nesse mundo performático. Ao invés disso, a espiritualidade tangível é algo concreto, material, que se relaciona com a vida cotidiana. Desenvolver integridade na relação com o mundo é fruto da integração consigo mesmo, algo que exige muito e faz com que isso seja tudo menos algo inofensivo e pusilânime como as seções de meditação cool. Na verdade, a dificuldade aqui é abrir mão das imagens que temos de nós mesmos. Espiritualidade não pode jamais ser o refinamento de nossas personalidades, quanto mais um refinamento de nossas couraças psíquicas.”

Isso tudo faz muito sentido, além da definição já conhecida de espiritualidade como uma tendência humana pela busca de significado para a vida através de conceitos além do tangível, pela busca de um sentido de conexão com algo transcendente a si mesmo. Essa busca pode ou não estar ligada a uma vivência religiosa. No segundo caso, existe inclusive a possibilidade de uma espiritualidade do ateísmo, como propõe André Comte-Sponville, ao falar de uma “espiritualidade sem Deus”, um reconhecimento de sermos seres relativos, mas abertos para o absoluto, um reconhecimento da dimensão misteriosa e ilimitada da existência, sem uma necessária explicação religiosa; uma experiência que vai além do intelecto. O que chamamos de “nova espiritualidade” está menos conectada a religiões e mais próxima da ciência e da filosofia moderna, bem como da consciência social e coletivista.

O papel social da espiritualidade, seja conectada a religiões, ao ateísmo ou a “nova espiritualidade”, resta evidente: fomentar o crescimento do ser, seu bem-estar físico como consequência disso, e uma busca transcendente conforme as inclinações de cada um, preservando fenomenologicamente as nuances da mente humana. Subentende-se aí, um ativismo social ambiental, político, econômico e de direitos humanos, para que tal espiritualidade não se veja desatualizada e sujeita ao envelhecimento na cultura humana, por não prover, de fato, nenhum alento para o sofrimento, interno e externo, que são formas interdependentes, na verdade.

Isso responde à pergunta feita na Introdução do artigo: se as diversas “espiritualidades” devem se posicionar ou não contra raciocínios e ideologias controversas, e se devem não apenas apoiar, mas promover elas mesmas ações práticas no sentido de confrontar tais raciocínios e ideologias, dentro dos limites de suas doutrinas e práticas essenciais. A resposta é SIM em ambos os casos.

Um bom exemplo desse duplo SIM é a postura de Yongey Mingyur Rinpoche, um lama e respeitado professor das linhagens Karma Kagyü e Nyingma do budismo tibetano, que dias atrás divulgou um comunicado abordando os recentes protestos contra a discriminação racial nos EUA e outros lugares do mundo (Ver em https://www.buddhistdoor.net/news/yongey-mingyur-rinpoche-offers-guidance-on-racial-unrest-in-america), deflagrados pelo assassinato do afro-americano George Floyd, no dia 25 de Maio de 2020, por um policial.

Eis alguns trechos importantes do comunicado para o presente artigo:

Caros amigos, membros da comunidade e colegas meditadores,

Estamos vivendo um tempo de agitação e sofrimento sem precedentes. A pandemia global já perturbou todos os aspetos das nossas vidas. Como se isso não fosse desafiador o suficiente, vocês, nos Estados Unidos, agora estão testemunhando e talvez até mesmo experimentando diretamente a dor e a angústia de comunidades sendo dilaceradas pelo sofrimento de homens, mulheres e famílias negras que não foram realmente ouvidas, reconhecidas e atendidas.

A nossa resposta ao sofrimento é frequentemente meditar. Meditamos para ver os nossos próprios pontos cegos com mais clareza. (…) Mas orações e meditação não são suficientes, especialmente em tempos como este. A meditação deve ser acompanhada de ações sábias e compassivas.

(…) Quando o Buda formou a sua própria comunidade, ele desrespeitou as tradições milenares do sistema de castas e permitiu que pessoas de todas as esferas da vida entrassem na Sangha. Não foi perfeito. As mulheres não tinham o mesmo status que os homens. Mas foi uma revolução na época. Ele não orou simplesmente para que o sofrimento do sistema de castas terminasse. Ele usou o poder que tinha para mudar ativamente os sistemas da sua época que estavam causando sofrimento a tantas pessoas.

(…) Devemos reconhecer o papel que estamos a desempenhar no todo. Devemos usar o poder que temos para ajudar quando pudermos e apoiar os outros quando não pudermos. (…) O único caminho a seguir é fazer o nosso melhor. E, ainda que certamente venhamos a cometer erros, se nos deixarmos guiar pela sabedoria e compaixão, os nossos erros nos levarão para mais perto de um mundo que não valoriza mais uma vida do que outra.”

O texto fala por si mesmo. Não adianta só meditar. Ações sábias e compassivas, mas “ações”, são necessárias. E, isso vale para todas as religiões e espiritualidades. Não adianta apenas a prática ritualística ou espiritual. É necessário agir proativamente para diminuir o sofrimento de todas as formas compassivas.

Toda e qualquer forma nobre de espiritualidade DEVE se posicionar claramente contra o sofrimento, seja causado por indivíduos, ideologias, sistemas de governo ou conglomerados econômicos. E, isso, por amor à verdade, a verdade que liberta, de Jesus, a verdade que desperta, do Buda. Não pode haver incompatibilidade entre a prática espiritual e o rechaço a tais formas de manipulação que fazem o sofrimento dos seres só aumentar. Como consequência, toda e qualquer forma nobre de espiritualidade DEVE promover ações práticas de confrontamento a tais manipulações, seja pela ajuda humanitária, pela conscientização ambiental, pelo fomento a atividades cooperativas ou pela cultura de paz. Sem isso, a espiritualidade é morta, pois serve apenas, como definiu Zizek em sua crítica, para “corroborar a hegemonia” dos sistemas opressores em geral, entorpecer as pessoas com seus rituais e doutrinas, e sepultar qualquer contestação do status quo. Isso equivaleria à morte da civilização!

6 – Conclusão

Quando David Loy, citado por Genz, descreveu o engajamento budista por meio de três pilares, percebemos que eles podem ser adaptados a todas as espiritualidades, como um norte para a crítica social e o ativismo pró-verdade e pró-civilização.

O primeiro pilar, a prática espiritual, tem a ver tanto com a dimensão ética quanto com a dimensão transcendental, pois as religiões e espiritualidades em geral consideram “prática” tanto coisas como oração, meditação, contemplação, leituras de textos sagrados e rituais mágicos, quanto comportamentos que se inserem no âmbito da ética, sendo quase universais, como o amor ao próximo, o não matar, não mentir, não roubar, etc. Se a ética e a transcendentalidade não conversam entre si na prática individual e não conduzem a um comportamento mais altruísta e amante da verdade, temos uma prática hipócrita e contraproducente. Esta, aliás, tem sido a práxis comum entre os religiosos de todo o mundo.

O segundo pilar, a não-violência, mais que uma prática, deve ser um comprometimento ético e necessário para o pertencimento tanto da humanidade quanto do corpo espiritual pregado como crença pelos ensinamentos de cada espiritualidade. Não-violência, porém, não é o mesmo que não-crítica, como se a crítica social fosse inadequada ou uma forma de violência. Esse raciocínio é completamente distorcido, devendo ser repudiado, pois caminha na direção do fanatismo, do totalitarismo e do ódio ao contraditório, o que não liberta nenhum ser das amarras do sofrimento e das delusões mentais. Um ato violento em si, deve ser considerado aquele que: deseja o prejuízo do outro, é premeditado e/ou causa regozijo no agressor. Palavras veementes de crítica social que anseiam o fim de discriminação ou ataques a seres humanos, não se encaixam nesses critérios e não podem ser consideradas quebra do comprometimento com a não-violência. Mas, criar e distribuir fake news, por ser algo deliberado, é violento, sim, pois prejudica a verdade dos fatos e as pessoas envolvidas na questão. Apenas mentes superdeludidas percebem isso de modo diverso, pois, em geral, são seletivas e torcem os argumentos para o seu próprio lado.

O terceiro pilar, o despertar conjunto, integra as dimensões transcendental e ética definitivamente, pois considera que tudo está ligado, conectado, interconectado. Cada espiritualidade tem seus próprios termos para isso (união, conexão, imersão, absorção, dissolução, despertar, liberação, libertação, etc.), mas o resultado final é sempre que todos cheguem ao destino final em igualdade de condições (todos podem ser salvos, todos podem se iluminar) e expressando uma felicidade plena.

A solução para a polêmica pergunta deste artigo é, então: uma prática coerente, sem hipocrisias, humanitária, coletiva e autocrítica; uma ação eficiente e proativa não-violenta; um anseio por levar todos os seres ao mesmo benefício que se deseja para si, porém de modo livre, sem proselitismo fanático ou imposição de dogmas e de conversão a quem quer que seja.

Dentro destes parâmetros, achamos que uma espiritualidade do Século 21 e uma “nova espiritualidade”, mesmo no contexto religioso, são possíveis. Fora deles, só podemos prever desgaste e envelhecimento da religião como a conhecemos e um crepúsculo trevoso para a civilização moderna. Reflitamos, oremos, meditemos… e ajamos! 



Sobre o autor


Paulo Stekel é instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.
Contatos: pstekel@gmail.com


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