Por Paulo Stekel
1
- Introdução
Crítica é a arte
de julgar. Em filosofia, tem o significado de análise. Kant usa o
termo como designação da reflexão da validade e dos limites do ser
ou de um conjunto de elaborações filosóficas. Hoje em dia, crítica
se refere a uma análise sistemática sobre as condições e as
consequências de um conceito, teoria ou disciplina. Desta forma, ter
um ponto de vista crítico significa se opor a um ponto de vista
dogmático, em qualquer terreno.
Se a crítica
contempla um raciocínio, é crítica lógica. Se contempla um
conceito, teoria ou experimento, é crítica intelectual. Se
contempla uma conduta, é crítica moral. No contexto do presente
texto, ficaremos entre a crítica lógica e a crítica moral, que
achamos pertinente para o propósito do mesmo: a reflexão sobre o
papel da espiritualidade (dentro da qual se inserem as religiões,
instituídas ou menores) no tocante a um posicionamento ou não
quanto às mazelas e ideologias da sociedade moderna.
A grande pergunta a
ser respondida é, por um lado, se as diversas “espiritualidades”
(antigas e modernas, incluindo as religiões e suas variantes,
linhagens, tradições e escolas) devem se posicionar ou não contra
raciocínios e ideologias controversas, maculadas por ações
violentas e que aumentam o abismo social entre os homens (nazismo,
fascismo, globalização, autoritarismo, racismo, homofobia, etc.) e,
por outro lado, se elas devem não apenas apoiar, mas promover elas
mesmas ações práticas no sentido de confrontar tais raciocínios e
ideologias, dentro dos limites de suas doutrinas e práticas
essenciais.
Já tínhamos a
intenção de escrever este texto, mas um debate ocorrido no grupo
virtual “Secular Buddhism” dias atrás tornou a necessidade
imperativa. O debate, num contexto budista, e na esteira da recente
reação ao assassinato de George Floyd nos EUA e pelo mundo afora,
ocorreu entre um amigo, Luiz Fernando Rodrigues, e um membro do grupo
identificado como “Alistair”. Reproduzimos trechos do debate
abaixo (tradução do próprio Luiz):
“Alistair:
(...) Para encontrar as soluções, muitas vezes precisamos procurar
esse meio termo, porque simplesmente dizer às pessoas que elas estão
erradas e criticar seus pontos de vista enquanto reforça o seu,
independentemente de qual lado você defende, não funcionou em toda
a história da raça humana. Quanto mais rotulamos as pessoas, mais
discriminamos, mesmo que as intenções sejam boas. Se víssemos todo
mundo como um ser humano que é parte integrante do cosmos,
criaríamos menos divisão. Uma coisa que percebo com muita
frequência no momento é que a moeda que tem discriminação
negativa e privilégio de branco de um lado é a mesma moeda com
discriminação positiva e culpa de branco do outro. Certamente, é
melhor não discriminar, de forma alguma. Quanto mais nos vemos como
todas as partes individuais do mesmo cosmo, mais harmoniosamente
todos podemos coexistir.
Luiz:
A humanidade é uma mentira descarada. Quando você pode ser morto
porque um oficial do estado está entediado, você não está sendo
tratado com humanidade. Somente pessoas privilegiadas podem falar
sobre mentiras vagas como “humanidade”.
Alistair:
Se você acredita nisso, não há budismo. E não me venha dar sermão
sobre privilégios, sem saber nada sobre minha vida ou lutas.
Luiz:
A humanidade ainda está por vir. O que temos hoje é o imperialismo
supremacista.
Alistair:
Somente se você permitir. A humanidade como parte integrante e
igual do cosmos existe desde que nossa espécie surgiu. Isso é
realidade, é nirvana e entender isso é nirvana. Opressores só
podem oprimir aqueles que os temem e os odeiam. Remova esses
sentimentos e você remove o poder deles sobre você.
Luiz:
Isso é bobagem. Floyd não poderia ter sobrevivido se não
tivesse medo. As pessoas que são escravas assalariadas em
unidades remotas de produção não podem ter suas barrigas cheias e
sua saúde restaurada, ignorando 13 h de trabalho diário por
alguns dólares. As populações indígenas não podem restaurar seu
modo de vida ignorando as cercas guardadas por homens armados.
As mulheres não podem ser poupadas de abuso e estupro ignorando
seus agressores, geralmente seus próprios familiares e parceiros. Os
trabalhadores não podem se libertar ignorando a falta de
moradia e a exploração. Os negros não podem viver uma vida livre
ignorando o encarceramento em massa e o assassinato rotineiro
do Estado. As pessoas LGBT+ não podem nem ser elas mesmas (!) ao
ignorar as ameaças de morte, gaslighting
e linchamento institucional. As pessoas que querem apenas ter uma
vida feliz não podem fazê-lo, ignorando todas as portas
fechadas da dívida estudantil, nenhuma garantia de assistência
médica, ambientes insalubres e apagamento ideológico de seus
direitos e interesses legítimos em todas as mídias. Você não
pode ignorar a realidade, Alistair. Esse seria o lado sombrio
das tradições religiosas da história: aceite tudo, não questione
nada.”
Ou
seja, a crítica social por parte da espiritualidade/religião e
mesmo colocando a espiritualidade/religião na berlinda quando se
omite, não é algo que se deva deixar de lado. Ou a espiritualidade
faz a autocrítica e se insere na luta pelos direitos de todos ao
bem-estar e felicidade, ou merece ela mesma todas as críticas que
lhe sejam dirigidas. Não é possível ignorar, como muito bem disse
Luiz Fernando, as mazelas sociais como racismo, trabalho maçante,
ódio aos indígenas, misoginia, machismo, homofobia, etc., pois isso
é apagar o legítimo anseio humano por vida, pertencimento e
felicidade. Então, a
espiritualidade, seja budista, cristã, judaica, islâmica, taoista
ou uma das tendências modernas de qualquer tipo, não pode se furtar
à crítica social (e, política, econômica, ambiental, etc), caso
queira ser uma espiritualidade viva e viável.
2
- Crítica social
A crítica social
analisa as estruturas da sociedade que são consideradas
problemáticas, e busca propor soluções práticas através de
medidas específicas, como uma reforma radical ou mesmo mudança de
caráter revolucionário. E, “revolucionário” não deve ser
considerado, necessariamente, sinônimo de “violento”, mas deve
ser, via de regra, sinônimo de mudança de paradigma.
O fato é que
ninguém, nem nenhuma ideologia, possui o monopólio da crítica
social. Afinal, dentro do pós-modernismo e nesta era da
“pós-verdade” que uns tentam implantar, não existe uma grande
teoria unificadora. Mas, a necessidade de diálogo não se esvai. Se
torna urgente.
No tocante à
espiritualidade moderna, ela precisa considerar qual é sua crítica
central. Pode ser aos ataques aos pobres e desfavorecidos, ao
autoritarismo, às ditaduras ou aos sistemas políticos e econômicos
que impedem o bem-estar de todos, o direito do ser à autoexpressão,
à liberdade, à criatividade e a uma vida sem medo de seus iguais.
Não importa. Toda a vida social deve estar sujeita à crítica de
uma espiritualidade que se pretenda viva e conectada ao ser humano
que deseja libertar, material e espiritualmente, das amarras externas
e internas. Não é o caso de dar de ombros, incentivando a fuga para
os templos, monastérios ou clausura resignada. Tal “complexo de
cordeirinho” não produz benefício algum, só ajuda a perpetuar a
opressão. Ainda que se possa discutir se a crítica social deve ser
neutra, objetiva ou adotar um ponto de vista partidário numa
questão, o que não se pode é defender uma omissão diante do óbvio
ululante que priva seres humanos de seus direitos básicos em
qualquer lugar do mundo.
Quando Jesus
criticou a hipocrisia do mercantilismo dos fariseus, quando Buda
criticou o sistema de castas e os privilégios dos sacerdotes
brâmanes, quando Lutero criticou a monopolização de Deus pelo Papa
ou quando o monge zen Thich Nhat Hanh criticou a guerra do Vietnã,
houve uma crítica social pertinente por parte da
religião/espiritualidade que não pode ser desconsiderada.
3
- Crítica da
religião
Se
a religião/espiritualidade precisa se manifestar de modo crítico
quanto às mazelas sociais, não pode ela mesma ser imune à crítica,
o que constitui a Crítica da
religião, uma
crítica do conceito, validade, práticas e consequências políticas
e sociais da mesma.
Afinal, em muitos momentos da história, a
religião fomentou as desigualdades sociais, se aliou aos poderosos e
até ajudou a perpetuar impérios e governos opressores, quando não
se tornou ela mesma o governo e a opressão.
Um
dos grandes paradoxos modernos das religiões é que, enquanto a
grande maioria delas alega ter a posse
exclusiva da Verdade, o que denigre
as outras religiões e abre um impasse
sobre a Verdade, por
outro lado, se fala em relativismo religioso, a base do diálogo
inter-religioso, segundo o qual, cada religião é uma forma mais ou
menos equivalente de ver e de buscar a mesma coisa. Podemos contestar
ambas as coisas dizendo que: nenhuma religião pode pretender ter a
Verdade última e todas elas não são equivalentes, não falam a
mesma coisa. Argumentos em contrário servem apenas para colocar
panos quentes no conflito evidente: a propriedade da Verdade.
É
fato que, enquanto religiões e espiritualidades ocidentais pretendem
que a Verdade dependa exclusivamente de textos sagrados, dogmas e
interpretações escolásticas, religiões e espiritualidades
extremo-orientais consideram o fator individual na busca de uma
Verdade apenas apontada em textos sagrados e suas interpretações
mais eminentes. Em resumo e a grosso modo,
a espiritualidade ocidental deseja crença e devoção; a
espiritualidade oriental propõe busca e experimentação.
Se
faz necessária uma nota sobre as “novas espiritualidades”
ocidentais (neoxamanismo, universalismo, “nova era”, neocabala,
teosofia, etc.). Elas incorporam muito da busca e experimentação do
extremo-oriente, mas mantém a crença e a devoção ocidentais.
Contudo, sua visão de Deus não se baseia no dogmatismo bíblico,
mas numa visão menos teísta e mais deísta da Divindade. O deísmo,
que se destacou
nos séculos 17 e 18 durante o
Iluminismo, é uma crença que não segue a
doutrina da Trindade, da
divindade de Jesus, dos
milagres ou da
infalibilidade
bíblica, mas que acredita em uma causa
divina. Com o
tempo, influenciou fortemente grupos
religiosos, como o Unitarianismo e o Universalismo, que
desenvolveram-se a partir dele. As “novas
espiritualidades” frequentemente apresentam uma visão deísta
não-padrão, mas que, à primeira vista, parece a crença em Deus
“que todo mundo tem” (?). A busca da Verdade nestas novas
tendências se torna muito relativizada e, atualmente, chega a
flertar por vezes com a “pós-verdade”, tão perniciosa para o
desenvolvimento humano. Num anseio de quebrar os pratos com antigos
dogmas, fanatismos, imposições e
desconhecimentos científicos, as novas
visões espirituais correm o risco de engendrar novos engessamentos
doutrinários e mesmo uma negação da
Ciência via teorias da conspiração.
Nesse
sentido, uma “nova espiritualidade” que entenda a importância da
Ciência e da Crítica Social, abandonando ideias arcaicas e olhando
para o panorama geral e plural do mundo, é o que chamamos, por
vezes, de “Ciência Espiritual”, um
conceito que está ainda em desenvolvimento (desenvolvido direta ou
indiretamente e, não necessariamente de
modo concordante, por autores como Steve
Taylor, Mario Beauregard, Ervin Laszlo, Fritjof
Capra, Ken Wilber, Amit Goswami, Steve McIntosh, Anthony
Peake, etc.). Uma tal visão abre espaço
para o lado introspectivo e contemplativo das espiritualidades
orientais mais que para os dogmas das ocidentais, mas não se fecha
ao transcendental e ao imanente na busca pela Verdade.
4
– O caso do Budismo
Sidarta Gautama, o
Buda, nasceu em Lumbini (hoje, patrimônio mundial da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) por
volta do ano 566 a. C. e cresceu em Kapilavastu, atuais localidades
nepalesas. Seu pai queria que ele se tornasse rei como ele, mas o
jovem tinha seus próprios planos. Criado com todo o conforto do
palácio e longe das mazelas de seu povo, que eram “maquiadas”
por seu pai quando Sidarta saia pelo reino, o jovem se compadeceu do
sofrimento humano, o que o levou a uma busca espiritual para chegar a
uma solução para a dor que permeia a vida. Recurar-se a continuar
fazendo parte das discrepâncias sociais de sua época foi, sem
sombra de dúvida, uma atitude muito política, de política social.
Quando tinha cerca
de 40 anos de idade, Sidarta conseguiu atingir a iluminação
espiritual, o Despertar Último. Assim que atraiu um grupo de
seguidores, instituiu uma ordem monástica. Esta ordem aceitava
pessoas de todas as castas, pessoas sem casta e mulheres –
atualmente, as mulheres estão prejudicadas nesse sentido, pois sua
ordenação é inexistente em muitas tradições e são tratadas de
modo inferior aos homens, o que deve ser rechaçado com veemência.
Na época do Buda ninguém era excluído. Mais uma atitude política,
considerando-se o sentido amplo do termo, além de algo muito moderno
para os parâmetros da época. Assim como no caso de Jesus, nem
pobres, nem bandidos, nem prostitutas eram excluídos.
A época do
surgimento do Buda foi um período de turbulência social e
religiosa, onde havia grande descontentamento com os sacrifícios e
rituais do bramanismo védico. Vários novos ensinamentos e grupos
ascéticos, religiosos e filosóficos romperam com bramanismo e
rejeitaram a autoridade dos Vedas. O Buda se insere neste contexto
que, além de religioso, é profundamente político.
Contudo, podemos
dizer que o Buda nunca tolerou a participação política para além
de funções passivas de assessoramento. Ele mesmo assessorava reis e
altos funcionários do governo, orientando-os sobre como melhor
conduzir suas funções em prol da maioria. Uma mescla de pensamento
democrático e espiritual, dadas as condições da época. Mas, o
Buda nunca aprovaria ações violentas vindas de budistas, como
ocorreram em vários momentos da história do Sri Lanka e no Japão
da Segunda Guerra, onde instituições budistas justificaram o
militarismo japonês em publicações oficiais e colaboraram com o
exército no campo de batalha – posteriormente, várias
instituições budistas se desculparam por tal apoio.
O Budismo, sem
qualquer ritualismo ou simbolismo cultural (de origem indiano), se
aproxima muito da moderna Ética e do Humanismo científico, mas vai
além, por propor um processo individual de desenvolvimento mental
que leva até o Despertar definitivo da ignorância sobre a Natureza
da Mente e da Realidade. Nada disso depende de ritualismo religioso,
e é como nós mesmos vemos o Darma budista como algo viável no
Século 21.
Essa visão,
inclusive, se contrapõe à opinião distorcida sobre o Budismo
apresentada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, para quem “o
budismo se apresentaria como portador de uma atitude conservadora e
reacionária (…) [sendo] no capitalismo pós-industrial (...) algo
palatável, um instrumento de adaptação a esse espírito do tempo”.
Esta citação é feita em um artigo acadêmico que critica a visão
de Zizek (apresentada em: ZIZEK, Slavoj. On belief.
Inglaterra: Routledge, 2001), intitulado “Budismo no Ocidente:
algumas reflexões a partir das críticas de Slavoj Zizek ou como
pensar alguns aspectos da espiritualidade no mundo contemporâneo”
(Ver em
https://periodicos.unb.br/index.php/rbfr/article/view/17358/15868,
in: REVISTA BRASILEIRA DE FILOSOFIA DA RELIGIÃO -
BRASÍLIA/V.3N.1/P.134-150/AGO.2016), do Doutor em Filosofia
Medieval, Antônio C. Madalena Genz (UFRGS, Campus Jaguarão – RS),
e que foi uma das fontes de inspiração para este texto que agora
escrevemos, pois Genz reconhece o potencial revolucionário do
Budismo de Buda, o original.
Na verdade, para
Genz, em seu artigo, a crítica ao Budismo feita por Zizek “é
focada em uma espécie de ‘budismo ocidental’, que emerge e se
constitui como algo dentro de uma constelação de dispositivos Nova
Era que funcionariam, no fundo, como corroboradores da hegemonia do
capitalismo mundial, para ‘manter a paz’ e o equilíbrio de forma
individualista, reforçando a dominação sobre sujeitos passivos”.
Na nossa opinião,
este tipo de “budismo ocidental” é um entendimento distorcido e
incompleto do que seja o Budismo de fato, mesclado com visões
ocidentais e maniqueísmo cristão. Vemos isso facilmente em qualquer
discussão de grupos budistas abertos em redes sociais, onde os
debatedores, especialmente os simpatizantes e os praticantes
iniciais, demonstram tal entendimento e perpetuam o mito do “budista
neutro”. Genz entende que isso aponta para um modo o budismo e
outras formas de espiritualidade, como o taoismo, estão sendo
“reapropriados e ressignificados no Ocidente”.
Na verdade, conforme
Genz, a crítica de Zizek não é ao Budismo original do Buda, mas a:
“(…) um tipo de
budismo palatável, domesticado e absorvido pela sociedade
consumista. Ao invés da autonomia e plena responsabilidade
enfatizadas por Buda para cada indivíduo, temos um sujeito passivo
que reforça sua prisão com o capital simbólico de uma paz interior
e serenidade que não levam à libertação, mas de forma insidiosa e
sutil tornam a prisão mais oculta. Um grau novo do
individualismo
contemporâneo em que o sujeito é estimulado a pensar que está
transformando a si próprio, sem perceber as condições de
sofrimento do mundo ao redor. Ao invés de insights reais sobre a
natureza interdependente da realidade (conceito fundamental do
budismo), uma falsa percepção de felicidade e do estatuto da
realidade.”
Para Zizek, a
própria meditação tem sido usada neste “budismo domesticado”
como forma de se assimilar o status quo e favorecer o conservadorismo
passivo. De fato, vemos isso em muitos grupos de meditação budista,
especialmente nos que se consideram menos “políticos” (e,
também, menos conectados a ações humanitárias). Porém, não
significa que a meditação tenha essa função, uma vez que seu
principal potencial se dirige “para a conscientização e para a
transformação de si mesmo” (Genz).
Genz: “Para
Zizek, a meditação nesse modelo de budismo ocidental é a forma
mais eficiente à nossa disposição para ‘participar plenamente da
dinâmica capitalista, retendo ao mesmo tempo a aparência de
sanidade mental.’ (2001, p. 13). E, explicitamente, Zizek afirma
que o budismo ou taoísmo, nos permite participar, de modo pleno, da
paz frenética do jogo capitalista, mantendo a percepção de que não
se está realmente nele, de que se está bastante ciente do quão
irrelevante é esse espetáculo. O que realmente
importa é a paz do self interior, para o qual podemos sempre nos
retirar. (ZIZEK, 2001, p. 15)
Tendo a concordar
com as observações de Zizek. Muitos dos modos e práticas de
espiritualidade no Ocidente, não necessariamente budistas ou
taoístas, englobando uma gama ampla de formas, parecem-me cair
dentro dessa descrição. Mas, ao mesmo tempo, nada está mais longe
do potencial budista tal como preconizado por Buda e testemunhado por
praticantes budistas ocidentais. Mais do que isso, o budismo é uma
das formas mais contundentes de crítica a essa mesma sociedade
consumista, niilista e destrutiva que Zizek combate.
Para contrastar a
visão de Zizek, podemos evocar a presença de um monge tão atuante
quanto Sulak Sivaraksa, esse notável monge tailandês, companheiro
de Thich Nhat Hahn, naquilo que se denomina de budismo engajado, por
fazer uma crítica explícita ao mundo em que vivemos. No livro
A sabedoria da
sustentabilidade, Sivaraksa descreve o consumismo como uma
‘religião demoníaca’, um dos principais condutores da crise do
clima.
(…) São duas
falas que, justapostas, trazem esse inusitado: Sivaraksa faz uma
crítica demolidora do sistema a partir do cerne da visão budista. E
Zizek, que sabemos ser um crítico radical desse mesmo sistema,
critica o budismo por ser uma espécie de instrumento desse sistema.
Mais do que falar em abstrato de uma religião, qualquer uma delas, a
questão, no que importa, recai sempre no nível da prática e na
qualidade de engajamento real com a religião.”
Para Genz, a
meditação budista, contrariamente à acusação de Zizek, serve
para domar nossa “mente de macaco” que, inclusive, deseja a
passividade diante das mazelas da sociedade:
“É fácil a
distração, é fácil ficar na frente da televisão ou em outra
forma de passividade, até aquelas sofisticadas que escondem a
passividade sob uma roupagem de falsa atividade, como os jogos e
videogames, que podem ser vistos como uma forma perversa de
passividade, já que, sob a aparência de atividade, hipnotizam e
embotam os sentidos a ponto de esses progressivamente perderem o
interesse no mundo real concreto, esse mundo com o qual e para o qual
nossos corpos foram feitos para sentir, perceber e realizar-se nele e
através dele.
O budismo
descreve o estado normal e habitual de nossa mente como ‘o macaco
louco’, que como tal está sempre a pular de galho em galho. Nossa
mente é assim por natureza, dispersiva. Meditar é ir em sentido
contrário: estabilizar a mente, concentrar e, então, meditar. O
consumismo, como Sivaraksa salientou, é exatamente esse estimulante
perpétuo da mente distraída, o combustível do macaco louco.
Meditar é ir contra esse dinamismo. Meditar é tornar-se ativo e
concentrado mentalmente. O contrário, portanto, dessa maneira
pós-moderna de inserir a espiritualidade na agenda pessoal como um
item cada vez mais valorizado no mercado do capital cultural de gente
moderna e
descolada, que está no topo daquilo que o capitalismo oferece como
bens e é expresso na publicidade de cartões de crédito, bancos,
automóveis e tudo mais que serve de fetiche para o capital na sua
vertigem avassaladora rumo... ao nada. Um mecanismo que faz girar não
a roda do Darma, mas a roda de violência, destruição, ganância,
ódio, como apontou sabiamente Sulak Sivaraksa. A destruição das
condições de vida em nosso planeta é emblema disso.”
Para Ricardo Strauch
Aveline (filho do Lama Padma Samten), eu sua Tese de Doutorado em
Ciências Sociais, intitulada “As Transformações Históricas do
Budismo e suas Implicações Ético-Sociais (Ver em
http://biblioteca.asav.org.br/vinculos/tede/RicardoAvelineCienciasSociais.pdf),
complementando a ideia de Genz sobre o Budismo Engajado:
“O engajamento
social budista está baseado em uma teoria social budista e na ideia
da construção de uma cultura de paz. A cultura de paz está
enraizada na noção de que a partir do estabelecimento de ações
pessoais favoráveis em relação aos outros seres, surge a
felicidade no plano pessoal. Em contrapartida, o exercício de ações
hostis em relação aos outros seres, impede a construção de uma
civilização pacífica. Segundo a noção budista de cultura de paz,
nenhum ato corrupto e agressivo constrói relações positivas e,
portanto, não gera felicidade e segurança. Consequentemente, não
produzirá uma cultura sustentável, não importando a quantidade de
poder que possua a sua disposição (SAMTEN, 2004).
Os textos
[budistas] relatam que, por onde Buda andou, ocorreram inúmeras
transformações pessoais e muitas pessoas foram alcançando a
iluminação. Do ponto de vista social, destaca-se a orientação de
mendicância oferecida pelo Buda aos seus discípulos. Pouca
alimentação, apenas para sobrevivência, não ter posses ou bens,
ignorar o regime de castas (LOY, 2003). Neste sentido, os
ensinamentos do Buda rompiam parcialmente com a cultura em que
nascera. Segundo Usarski (2009, p. 221): Não há dúvida de que o
Buda se colocou criticamente em relação à tradição dos Vedas, à
fixação de um saber revelado e à justificativa suprema do sistema
de castas como expressão da ordem universal inerente do cosmo
(sanatana dharma). Também não aceitou a ‘certeza’ dos brâmanes
de possuir o monopólio dos ‘bens religiosos’. (...) Ainda assim,
o budismo colocava grande importância nas boas maneiras e também na
educação, na família, provindo boa parte dos seus participantes de
círculos de status distintos. Weber (1967, p. 236), explica que o
‘pequeno burguês’ e as ‘pessoas iletradas’ não
encontravam benefício na soteriologia budista e não encontravam
satisfação na ideia de atingir nirvana por intermédio da renúncia
como um ‘penitente entre as árvores’. Para eles, afastar-se da
pobreza faria mais sentido do que renunciar o pouco que tinham. Além
disso, ‘eles não tinham os meios para alcançar o objeto’, pois
a meditação exigia tempo para alcançar a ‘gnose’ e eles não
tinham tal ‘tempo de lazer’. Ainda assim, Trainor (2007, p. 38)
relata que a sangha atraiu pessoas de todos os níveis da sociedade.
Buda também deu conselho aos reis de sua época sobre a importância
de sociedades justas do ponto de vista social, a não-violência, a
divisão dos recursos naturais de forma equânime, a extinção da
lógica de castas sociais, demonstrando ter um engajamento
sociopolítico com os temas sociais de sua época, o que difere de um
budismo centrado unicamente na busca espiritual (PARKUM; STULTZ,
2000, p. 348-9).
Ilustra a atuação
de Buda no mundo, a sua intervenção no conflito ocorrido entre os
Shakyas e os Koliyas sobre a divisão da água como recurso por cada
um dos reinados. Já havia preparativos militares sendo exercidos por
cada parte para entrar em guerra. Em conversa com os reis, Buda
perguntou a um deles: ‘Quanto vale a água, grande rei?’. ‘Muito
pouco, reverendo’, respondeu o rei. ‘Quanto valem os guerreiros,
grande rei?’. ‘Estão acima de qualquer preço’, respondeu o
rei. Então, Buda disse, ‘não faz sentido que por um pouco de água
você destrua guerreiros que estão acima de qualquer preço’
(SIVARAKSA, 2005, p. 5). Relata-se que, ao ouvirem o ensinamento, os
presentes ficaram em silêncio. Então, Buda disse a eles, ‘Grandes
reis, por que vocês agem dessa maneira? Se eu não estivesse
presente hoje, vocês teriam derramado um rio de sangue. Vocês
agiriam da forma mais destrutiva’ (SIVARAKSA, 2005, p. 5). Dentre
as passagens registradas nas escrituras, relata-se que Buda, ao dar
ensinamentos nas pequenas cidades e vilarejos por onde passava,
aconselhou a ‘compartilhar os recursos materiais com os familiares
e amigos’, ‘não ficar endividado’, ‘levar uma vida sem
culpa’ e, principalmente, que ‘a maior riqueza é o
contentamento’ (santutthi paramam dhanam) (LOY, 2003, p. 57).”
Esses argumentos já
seriam suficientes para justificar a espiritualidade budista como
engajada desde a origem, deixando os praticantes atuais à vontade
para rechaçarem as mazelas modernas que aumentam o sofrimento dos
seres, perpetradas pelo status sócio-político-econômico
globalizado de hoje em dia. Contudo, um “novo budismo” parece
nascer no Ocidente e, este sim, um budismo totalmente engajado e
interessado na promoção do bem-estar coletivo tanto quanto na busca
do Despertar definitivo.
Nessa linha, Aveline
diz que: “Também contribui para a criação de um novo
budismo, o fato de que os alunos mais avançados dos religiosos
budistas orientais também se tornam líderes religiosos, porém são
ocidentais e leigos, ou seja, carregam consigo uma formação
paralela ou concorrente, por exemplo, de cristianismo,
protestantismo, cultura ocidental, além da formação escolar e
acadêmica típicas do Ocidente. Tais formações influenciam a forma
como esses novos budistas virão a praticar o budismo, contribuindo
para o surgimento de novas formas de budismo.
No caso de Thich
Nhat Hanh (monge vietnamita) refugiado na França, por exemplo, este
novo budismo se manifestou por intermédio de estímulo ao serviço
social, doação de trabalho e responsabilidade social, utilização
da ‘meditação em ação’, ou seja, métodos para ter atenção
plena durante as atividades cotidianas (TRAINOR, 2007, p. 216).”
Isso contrasta com a
ideia antiga e equivocada de que o budismo é uma “religião de
status anti-político, em que a salvação é um ato pessoal do
indivíduo” (Aveline). Para uns, o objetivo do Bodhisattva e do
praticante budista em geral não é, necessariamente, ser “um
reformador social, mas ser um catalisador para transformações
sociais dentro da sociedade” (Aveline), mas para outros, como
Walpola Rahula, “o budismo sempre esteve atuante do ponto de vista
social” (Aveline).
Aveline:
“(…)[Quando] O budismo surgiu na Índia como uma força
espiritual contra as injustiças sociais, contra degradantes ritos
supersticiosos, cerimônias e sacrifícios, ele denunciou a tirania
do sistema de castas e defendeu a igualdade de todos os homens,
emancipou a mulher e deu-lhe completa liberdade espiritual. (…)
Dentre as manifestações do Buda sobre a vida social, Jones
(1979, p. 85-8) destaca a seguinte passagem: ‘Aquele que tem
entendimento e sabedoria não pensa em prejudicar a si mesmo ou ao
outro, nem em prejudicar ambos ao mesmo tempo. Ele pensa no seu
próprio bem-estar, no bem-estar dos outros, no bem-estar de ambos, e
no bem-estar de todo o mundo. Dessa forma mostra uma compreensão e
uma grande sabedoria.’ Segundo Sulak Sivaraksa (1992, p. 71), desde
os tempos do Buda hão existido muitos budistas que estiveram
diretamente envolvidos com a sociedade. Houve também mestres de
meditação que, apesar de não estarem envolvidos com a sociedade,
deram grandes contribuições para a comunidade. Ele salienta que os
mestres beneficiam por intermédio do seu exemplo ‘como provas de
que a santidade é possível neste mundo’.
(…) David Loy
(2007), na mesma linha, descreve o engajamento budista por meio de
três pilares. Primeiramente, salienta a importância da prática
espiritual. Para ele, sem a prática espiritual não há chance
de se remover os venenos institucionalizados (desejo, apego, raiva,
inveja e orgulho). Segundo, o comprometimento com a não-violência
e, terceiro, o despertar conjunto, ou seja, a compreensão da
interdependência da vida das pessoas e a noção de que, ao atuar
pela melhoria da qualidade de vida de uma determinada população,
gerar-se-ão efeitos benéficos para a vida de todos.”
Com certeza, esses
três pilares podem ser adaptados a outras religiões e a todas as
formas de espiritualidade, como veremos adiante. Mas, David Loy, um
autor zen-budista de nossa máxima predileção, também desenvolveu
em 2007 a ideia de que as empresas e os grandes conglomerados
econômicos modernos acabam, por seu modo de ser, promovendo os
chamados “três venenos” no Budismo: gânancia (cobiça), avareza
(má vontade) e delusão (ilusão).
Aveline: “[Loy]
Afirma que o sistema econômico institucionaliza
a ganância, o militarismo
institucionaliza o desejo inadequado e a mídia
institucionaliza a delusão. O problema, afirma
Loy (2007) não é apenas que os três venenos operem coletivamente,
mas que eles assumam uma vida própria por meio das instituições.
Para ele, é fundamental perceber os efeitos desses três venenos
para a sociedade. Segundo Loy (2007), os três venenos da mente
descritos no dharma (…) estão hoje mais fortes do
que nos tempos do Buda, pois estão enraizados nas instituições
sociais, sendo promovidos e multiplicados por intermédio do
marketing para garantir, por meio dessa fraqueza humana, o
funcionamento de um sistema que está destruindo o meio ambiente.
David Loy (2003) afirma que os ensinamentos budistas
apresentam uma forma de superação dos três venenos e que se esta
forma for aplicada nas instituições e mesmo nas culturas, isso
poderá trazer efeitos muito benéficos para a vida social.
[Para Loy] as
corporações promovem, por intermédio do marketing, o desejo
coletivo pela aquisição de mais bens de consumo e a
ideia de que a pessoa vale o que possui. (…) Esse
mecanismo utilizado pelas instituições, segundo Berger e Luckman
(1998, p. 43), dá-se por intermédio de uma constante interação
dessa estrutura com o indivíduo de forma a influenciar
subjetivamente os juízos de valor das pessoas. Assim, segundo Berger
e Luckman (1983, p. 73-4), os mesmos processos sociais que determinam
a constituição do organismo produzem o ‘eu’ em sua forma
particular, culturalmente relativa. Não é preciso dizer, portanto,
que o organismo e, ainda mais, o ‘eu’ não podem ser devidamente
compreendidos fora do particular contexto social em que foram
formados. Assim, em uma sociedade que cultive os três venenos, os
indivíduos naturalmente estarão ávidos pela competição e busca
pela aquisição, contrariamente ao preceito budista de compaixão,
bondade e amorosidade.”
5
– Espiritualidade e seu papel social
Isso tudo vale, não
apenas para o caso do Budismo, mas para toda a forma de religião e
de “espiritualidade”, objetivo e cerne de nosso artigo. Mas, o
que entendemos por “espiritualidade”, nesse caso? Genz ajuda-nos:
“(…)
espiritualidade é o desenvolvimento de uma consciência que nos
torna progressivamente menos egoístas, mais altruístas e
intensamente atentos a nós próprios e aos outros. Em outras
palavras: espiritualidade é o oposto de egoísmo. Por isso a noção
de compaixão, tão forte no budismo quanto no cristianismo ou
qualquer tradição espiritual. Sentir com o outro, sentir o outro. O
ponto aqui é que o caminho espiritual é árduo e desafiador, porque
coloca em xeque todos os mecanismos, a maioria deles arraigados na
forma de hábitos que temos para continuar fazendo a roda girar como
um macaco louco.”
Nesse sentido, os
sistemas político-econômicos modernos podem muito bem ser os
subversores de tal espiritualidade, e vemos com frequência os
defensores dos primeiros colocarem a espiritualidade num patamar
inferior quando lhes convém.
Para Genz: “O
capitalismo e seu modus vivendi, o consumismo, embalam e apresentam
uma forma de budismo como uma espiritualidade sintonizada com
eles, a partir da perspectiva bizarra da modernidade
de inserir a espiritualidade como uma categoria a mais nas opções
de vida, como uma peça que se encaixa, a peça da espiritualidade,
investindo seu possuidor de maior capital social e simbólico nesse
mundo performático. Ao invés disso, a espiritualidade tangível é
algo concreto, material, que se relaciona com a vida cotidiana.
Desenvolver integridade na relação com o mundo é fruto da
integração consigo mesmo, algo que exige muito e faz com que isso
seja tudo menos algo inofensivo e pusilânime como as seções de
meditação cool. Na verdade, a dificuldade aqui é abrir mão das
imagens que temos de nós mesmos. Espiritualidade não pode jamais
ser o refinamento de nossas
personalidades, quanto mais um refinamento de nossas couraças
psíquicas.”
Isso tudo faz muito
sentido, além da definição já conhecida de espiritualidade como
uma tendência humana pela busca de significado para a vida através
de conceitos além do tangível, pela busca de um sentido de conexão
com algo transcendente a si mesmo. Essa busca pode ou não estar
ligada a uma vivência religiosa. No segundo caso, existe inclusive a
possibilidade de uma espiritualidade do ateísmo, como propõe André
Comte-Sponville, ao falar de uma “espiritualidade sem Deus”, um
reconhecimento de sermos seres relativos, mas abertos para o
absoluto, um reconhecimento da dimensão misteriosa e ilimitada da
existência, sem uma necessária explicação religiosa; uma
experiência que vai além do intelecto. O que chamamos de “nova
espiritualidade” está menos conectada a religiões e mais próxima
da ciência e da filosofia moderna, bem como da consciência social e
coletivista.
O papel social da
espiritualidade, seja conectada a religiões, ao ateísmo ou a “nova
espiritualidade”, resta evidente: fomentar o crescimento do ser,
seu bem-estar físico como consequência disso, e uma busca
transcendente conforme as inclinações de cada um, preservando
fenomenologicamente as nuances da mente humana. Subentende-se aí, um
ativismo social ambiental, político, econômico e de direitos
humanos, para que tal espiritualidade não se veja desatualizada e
sujeita ao envelhecimento na cultura humana, por não prover, de
fato, nenhum alento para o sofrimento, interno e externo, que são
formas interdependentes, na verdade.
Isso responde à
pergunta feita na Introdução do artigo: se as diversas
“espiritualidades” devem se posicionar ou não contra raciocínios
e ideologias controversas, e se devem não apenas apoiar, mas
promover elas mesmas ações práticas no sentido de confrontar tais
raciocínios e ideologias, dentro dos limites de suas doutrinas e
práticas essenciais. A resposta é SIM em ambos os casos.
Um bom exemplo desse
duplo SIM é a postura de Yongey Mingyur Rinpoche, um lama e
respeitado professor das linhagens Karma Kagyü e Nyingma do budismo
tibetano, que dias atrás divulgou um comunicado abordando os
recentes protestos contra a discriminação racial nos EUA e outros
lugares do mundo (Ver em
https://www.buddhistdoor.net/news/yongey-mingyur-rinpoche-offers-guidance-on-racial-unrest-in-america),
deflagrados pelo assassinato do afro-americano George Floyd, no dia
25 de Maio de 2020, por um policial.
Eis alguns trechos
importantes do comunicado para o presente artigo:
“Caros amigos,
membros da comunidade e colegas meditadores,
Estamos vivendo
um tempo de agitação e sofrimento sem precedentes. A pandemia
global já perturbou todos os aspetos das nossas vidas. Como se isso
não fosse desafiador o suficiente, vocês, nos Estados Unidos, agora
estão testemunhando e talvez até mesmo experimentando diretamente a
dor e a angústia de comunidades sendo dilaceradas pelo sofrimento de
homens, mulheres e famílias negras que não foram realmente ouvidas,
reconhecidas e atendidas.
A nossa resposta
ao sofrimento é frequentemente meditar. Meditamos para ver os nossos
próprios pontos cegos com mais clareza. (…) Mas orações e
meditação não são suficientes, especialmente em tempos como este.
A meditação deve ser acompanhada de ações sábias e compassivas.
(…) Quando o
Buda formou a sua própria comunidade, ele desrespeitou as tradições
milenares do sistema de castas e permitiu que pessoas de todas as
esferas da vida entrassem na Sangha. Não foi perfeito. As mulheres
não tinham o mesmo status que os homens. Mas foi uma revolução na
época. Ele não orou simplesmente para que o sofrimento do sistema
de castas terminasse. Ele usou o poder que tinha para mudar
ativamente os sistemas da sua época que estavam causando sofrimento
a tantas pessoas.
(…) Devemos
reconhecer o papel que estamos a desempenhar no todo. Devemos usar o
poder que temos para ajudar quando pudermos e apoiar os outros quando
não pudermos. (…) O único caminho a seguir é fazer o nosso
melhor. E, ainda que certamente venhamos a cometer erros, se nos
deixarmos guiar pela sabedoria e compaixão, os nossos erros nos
levarão para mais perto de um mundo que não valoriza mais uma vida
do que outra.”
O texto fala por si
mesmo. Não adianta só meditar. Ações sábias e compassivas, mas
“ações”, são necessárias. E, isso vale para todas as
religiões e espiritualidades. Não adianta apenas a prática
ritualística ou espiritual. É necessário agir proativamente para
diminuir o sofrimento de todas as formas compassivas.
Toda e qualquer
forma nobre de espiritualidade DEVE se posicionar claramente contra o
sofrimento, seja causado por indivíduos, ideologias, sistemas de
governo ou conglomerados econômicos. E, isso, por amor à verdade, a
verdade que liberta, de Jesus, a verdade que desperta, do Buda. Não
pode haver incompatibilidade entre a prática espiritual e o rechaço
a tais formas de manipulação que fazem o sofrimento dos seres só
aumentar. Como consequência, toda e qualquer forma nobre de
espiritualidade DEVE promover ações práticas de confrontamento a
tais manipulações, seja pela ajuda humanitária, pela
conscientização ambiental, pelo fomento a atividades cooperativas
ou pela cultura de paz. Sem isso, a espiritualidade é morta, pois
serve apenas, como definiu Zizek em sua crítica, para “corroborar
a hegemonia” dos sistemas opressores em geral, entorpecer as
pessoas com seus rituais e doutrinas, e sepultar qualquer contestação
do status quo. Isso equivaleria à morte da civilização!
6
– Conclusão
Quando David Loy,
citado por Genz, descreveu o engajamento budista por meio de três
pilares, percebemos que eles podem ser adaptados a todas as
espiritualidades, como um norte para a crítica social e o ativismo
pró-verdade e pró-civilização.
O primeiro pilar, a
prática espiritual, tem a ver tanto com a dimensão ética
quanto com a dimensão transcendental, pois as religiões e
espiritualidades em geral consideram “prática” tanto coisas como
oração, meditação, contemplação, leituras de textos sagrados e
rituais mágicos, quanto comportamentos que se inserem no âmbito da
ética, sendo quase universais, como o amor ao próximo, o não
matar, não mentir, não roubar, etc. Se a ética e a
transcendentalidade não conversam entre si na prática individual e
não conduzem a um comportamento mais altruísta e amante da verdade,
temos uma prática hipócrita e contraproducente. Esta, aliás, tem
sido a práxis comum entre os religiosos de todo o mundo.
O segundo pilar, a
não-violência, mais que uma prática, deve ser um
comprometimento ético e necessário para o pertencimento
tanto da humanidade quanto do corpo espiritual pregado
como crença pelos ensinamentos de cada espiritualidade.
Não-violência, porém, não é o mesmo que não-crítica, como se a
crítica social fosse inadequada ou uma forma de violência. Esse
raciocínio é completamente distorcido, devendo ser repudiado, pois
caminha na direção do fanatismo, do totalitarismo e do ódio ao
contraditório, o que não liberta nenhum ser das amarras do
sofrimento e das delusões mentais. Um ato violento em si, deve ser
considerado aquele que: deseja o prejuízo do outro, é premeditado
e/ou causa regozijo no agressor. Palavras veementes de crítica
social que anseiam o fim de discriminação ou ataques a seres
humanos, não se encaixam nesses critérios e não podem ser
consideradas quebra do comprometimento com a não-violência. Mas,
criar e distribuir fake news, por ser algo deliberado, é
violento, sim, pois prejudica a verdade dos fatos e as pessoas
envolvidas na questão. Apenas mentes superdeludidas percebem isso de
modo diverso, pois, em geral, são seletivas e torcem os argumentos
para o seu próprio lado.
O terceiro pilar, o
despertar conjunto, integra as dimensões transcendental e
ética definitivamente, pois considera que tudo está ligado,
conectado, interconectado. Cada espiritualidade tem seus próprios
termos para isso (união, conexão, imersão, absorção, dissolução,
despertar, liberação, libertação, etc.), mas o resultado final é
sempre que todos cheguem ao destino final em igualdade de condições
(todos podem ser salvos, todos podem se iluminar) e expressando uma
felicidade plena.
A solução para a
polêmica pergunta deste artigo é, então: uma prática coerente,
sem hipocrisias, humanitária, coletiva e autocrítica; uma ação
eficiente e proativa não-violenta; um anseio por levar todos os
seres ao mesmo benefício que se deseja para si, porém de modo
livre, sem proselitismo fanático ou imposição de dogmas e de
conversão a quem quer que seja.
Dentro destes
parâmetros, achamos que uma espiritualidade do Século 21 e uma
“nova espiritualidade”, mesmo no contexto religioso, são
possíveis. Fora deles, só podemos prever desgaste e envelhecimento
da religião como a conhecemos e um crepúsculo trevoso para a
civilização moderna. Reflitamos, oremos, meditemos… e ajamos!
Sobre o autor
Paulo
Stekel é instrutor de
Meditação Não-dualista, orientador
do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa,
pesquisador
de Religiões e Espiritualidades, praticante
budista desde 1995 (seu
nome budista vajrayana
é Pema Dorje),
membro
do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e
Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem
experiência na área de Linguística, com ênfase em
Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico,
com vários álbuns lançados desde 2009.
É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista,
Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos
textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS).
Atualmente reside em
Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística
(uma
nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu
livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas
sagradas”, publicado em 2006).
Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) -
filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto
Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo
e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO,
2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras
anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala
- com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]”
(Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de
Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A
Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como
paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da
escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e
publicado em Inglês no website do Museu de Glozel
(http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm)
desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação
livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa
de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de
decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista
Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em
Inglês e Bósnio:
http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.
Contatos:
pstekel@gmail.com
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