Por Paulo Stekel
O
que disse o Dalai Lama
Recentemente,
o meio budista, especialmente o ambiente do Vajrayana, mais conhecido
por “budismo tibetano”, foi abalado por notícias
(https://www.lionsroar.com/dalai-lama-suggests-ending-tibetan-reincarnation-system)
trazendo
declarações do Dalai Lama, onde
este sugere acabar com o sistema de
“reencarnação” tibetana. Em uma reunião com estudantes na
Índia, no dia 25 de outubro de 2019, ele teria dito que “o
costume de reconhecer lamas reencarnados pode ter tido seu dia”
(orig. “the
custom of recognizing reincarnate lamas may have had its day”).
Ainda disse que o sistema de “reencarnação”
nunca existiu na Índia, de onde provém o Vajrayana, e não há
reconhecimento de “reencarnações” de grandes mestres budistas
indianos como Nagarjuna, ou o próprio Buda. Sim, é verdade. Isso
nunca aconteceu no Budismo em nenhuma outra linhagem antes do
Vajrayana implementar esta prática duvidosa.
O
Dalai Lama disse que o sistema de reconhecimento de lamas
“reencarnados” - chamado tulkus,
em tibetano - está conectado à sociedade feudal tibetana e
questionou a existência de tal tradição em uma sociedade
democrática. Num lampejo de serenidade, o Dalai Lama reconhece o que
todas as demais escolas budistas fora do Vajrayana sempre disseram. O
sistema de reconhecimento dos tulkus
no Budismo Tibetano só serviu a propósitos políticos em meio às
grandes rusgas entre as diversas escolas (Gelugpa, Nyingma, Sakya,
Kagyü e Bönpo)
e não encontra base alguma nas doutrinas budistas anteriores.
Na
declaração, o Dalai Lama abriu seu
coração: “Sinto que é hora de voltarmos ao sistema indiano de
budismo” (orig. “I feel it’s time
that we revert to the Indian system of Buddhism”).
Este sistema é o Vajrayana indiano, antes de sua mescla com os
elementos xamânicos e culturais originalmente tibetanos. Certamente,
é uma posição que agrada a muitos praticantes tibetanos do
Vajarayana, a muitos praticantes ocidentais e a todos os budistas das
linhagens anteriores ao Vajrayana, pois recupera uma coerência
perdida de modo vexatório desde que os invasores mongóis
patrocinaram a instituição tulku
dos Dalai Lamas, no Séc. XV. Os tulkus das
outras linhagens tibetanas existem a mais tempo ainda. No
budismo tibetano, o costume
de 800 anos de
reconhecimento de lamas “reencarnados” é o sistema mais comum de
sustentar linhagens espirituais e de
garantir influência político-religiosa. Tanto é assim, que nos
últimos anos, o governo chinês
garantiu sua
influência política no Tibete ao buscar o
controle total das
linhagens de “reencarnação”.
Por
fim, o Dalai Lama ainda declarou: “As
instituições precisam ser propriedade do povo, não de um
indivíduo. Como minha própria instituição, o escritório do Dalai
Lama, eu sinto
que isso está
ligado a um sistema feudal. Em 1969, em uma de minhas declarações
oficiais, eu mencionei que deveria continuar (...)
Mas agora, eu
sinto, não necessariamente. Ela deve
ir (...)
O sistema deveria
terminar, ou pelo menos mudar com os tempos de mudança. Houve casos
de certos lamas
que usam a reencarnação
(para conseguir o que querem)
mas nunca prestam atenção ao estudo e à sabedoria.” (orig.
“Institutions need to be owned by the
people, not by an individual. Like my own institution, the Dalai
Lama’s office, I feel it is linked to a feudal system. In 1969, in
one of my official statements, I had mentioned that it should
continue… But now I feel, not necessarily. It should go… The
system should end, or at least change with the changing times. There
have been cases of individual lamas who use reincarnation [to
get their way]… but never pay
attention to study and wisdom.”).
Entendendo
a instituição “tulku”
Um
tulku (tibetano sprul sku [se lê tul-ku]) é, no
budismo tibetano, um lama que conseguiu, através das práticas de
phowa (transferência de consciência) e pela obtenção de
siddhis (poderes místicos), ter a capacidade de
escolher conscientemente renascer, às vezes por mais de uma vez, de
maneira a continuar seus votos de Bodhisatva. O mais famoso exemplo é
a linhagem dos Dalai Lamas; o atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso,
é tido como o 14º renascimento, o primeiro sendo Gendun Drup
(1391–1474). Na tradição Vajrayana acredita-se que a linhagem
mais antiga de tulkus seja a dos Karmapas (líderes
espirituais da linhagem Karma Kagyu), que se iniciou com Düsum
Khyenpa (1110-1193). Neste caso, a tradição teria mais de 800
anos.
O termo
tulku é a tradução para o tibetano do termo
filosófico sânscrito nirmanakaya. De acordo com o sistema
filosófico do trikaya, ou “três corpos do Buda”, o
nirmanakaya é o “corpo” do Buda, no sentido de
“corpo-mente” ou “nome-forma” (sânscrito: nāmarūpa).
Assim, a pessoa de Sidarta Gautama, o Buda histórico, é um exemplo
de nirmanakaya. No contexto do budismo tibetano, o tulku
costuma se referir à existência corpórea dos mestres iluminados
budistas em geral.
Contudo,
numa pesquisa mais apurada (Khenpo Ngawang
Pelzang. A Guide to the Words of My
Perfect Teacher. Boston: Shambhala.
2004; Valentine, Jay (2013). "Lords
of the Northern Treasures: The Development of the Tibetan Institution
of Rule by Successive Incarnations". UVA Library | Virgo.;
Logan, Pamela (2004). "Tulkus in Tibet". Harvard Asia
Quarterly 8),
descobrimos que a
palavra tibetana
'sprul'
(se lê “tul”])
era um verbo na literatura tibetana antiga usado
para descrever o imperador (tib. ‘btsan’,
se lê “tsen”) assumindo uma forma
humana na terra. Assim,
a ideia radical
de assumir uma forma corporal é uma construção
religiosa local alheia ao budismo indiano e a outras formas de
budismo, como o Theravada
e o Zen. Com o
tempo, as ideias
religiosas tibetanas pré-budistas
foram assimiladas pelo novo budismo. Então,
‘sprul’
tornou-se parte de um substantivo composto, 'sprul.sku'
("corpo da encarnação" ou 'tulku')
e 'btsan',
o termo para o governante imperial do Império Tibetano, tornou-se
uma espécie de divindade da montanha. O termo tulku
tornou-se associado à tradução do termo filosófico sânscrito
nirmanakaya.
Além
dos tibetanos e de povos relacionados, o budismo tibetano é uma
religião tradicional dos mongóis e de seus parentes. A palavra
mongol para tulku
é qubilγan,
embora os tulkus também
possam ser chamados
pelo título honorífico qutuγtu
(tib. 'phags-pa
e Sânsc. ārya
ou superior) ou hutagt
no dialeto padrão de Khalkha. De acordo com A
Luz da Sabedoria Indestrutível Destemida
de Khenpo Tsewang Dongyal, o termo tulku:
“designa alguém que é 'nobre' (ou
'altruísta' de acordo com o uso de Buda) e usado nos textos budistas
para denotar um ser altamente realizado
que alcançou o primeiro bhumi,
um nível de realização que é verdadeiramente sem ego ou
superior.”
A
palavra em chinês para tulku
é huófó,
que literalmente significa “Buda vivo” e às vezes é usada para
significar tulku,
embora o Dalai Lama tenha dito que isso é uma tradução incorreta,
pois um tulku
não é necessariamente um ser realizado.
Jay
Valentine resume a mudança no significado
da palavra tulku
ao longo do tempo:
“Este termo que foi originalmente
usado para descrever o Buda como uma ‘emanação mágica’ da
iluminação, é melhor traduzido como ‘encarnação’ ou
‘encarnação firme, inabalável’
quando usado no contexto do
sistema tulku
para descrever patriarcas que retornam de forma confiável à forma
humana.” [Valentine,
Jay (2013). "Lords of the Northern Treasures: The Development of
the Tibetan Institution of Rule by Successive Incarnations". UVA
Library | Virgo]
Como
acaba de afirmar
o próprio Dalai Lama, o sistema tulku
de preservar linhagens do Dharma não operava na Índia budista.
A primeira linhagem
tulku do
Tibete é a dos
Karmapas. Depois que o primeiro Karmapa morreu, em 1193, um lama teve
várias visões
de uma determinada criança
como sendo o seu
renascimento. Essa criança (nascida em 1205) foi reconhecida como o
2º Karmapa,
iniciando assim a tradição tibetana dos
tulku.
O
problema, como alertado pelo Dalai Lama, é que esta instituição
foi usada para fins político-religiosos e também para objetivos
pessoais egoístas dos próprios lamas reconhecidos como
renascimentos de mestres anteriores. Então, é hoje uma instituição
viciada que não traz nenhum benefício real para o Dharma budista.
Deve, então, ser encerrada,
começando pela instituição Dalai Lama, que é o tulku
mais influente no Tibete e no Vajrayana.
O Dalai
Lama levantou o assunto na declaração recente em resposta a uma
pergunta sobre seu sucessor. Anteriormente, ele tinha dito que
poderia não ter sucessor, ou que então seu sucessor poderia ser
escolhido pelo povo tibetano. A China, que o vê como um terrorista
perigoso, disse que o Dalai Lama deve reencarnar e que seu sucessor
terá que ser aprovado pelo Estado. Um absurdo! Como um governo
totalmente antirreligioso quer controlar uma instância de domínio
exclusivo da religião? Hipocrisia e aproveitamento.
Mas, o Dalai Lama sozinho não tem autoridade para fazer essa mudança no budismo tibetano como um todo. Claro que, como líder sênior da Escola Gelug do Budismo Tibetano e ex-chefe de estado do Tibete, ele exerce uma grande influência no Budismo Tibetano. No entanto, ele não tem nenhuma autoridade sobre as outras três principais escolas do budismo tibetano - Sakya, Kagyu e Nyingma -, todas com suas próprias linhagens de tulkus renascidos. Mas, a partir da declaração atual, que terá certamente consequências, quiçá as demais linhagens repensem sobre suas instituições tulku e também encerrem esta prática de vez, recolocando o Vajrayana no patamar do Budismo indiano de onde se originou. O que o Dalai Lama iniciou agora é o crepúsculo da instituição tulku, mas o ocaso completo ainda demorará um pouco.
Mas, o Dalai Lama sozinho não tem autoridade para fazer essa mudança no budismo tibetano como um todo. Claro que, como líder sênior da Escola Gelug do Budismo Tibetano e ex-chefe de estado do Tibete, ele exerce uma grande influência no Budismo Tibetano. No entanto, ele não tem nenhuma autoridade sobre as outras três principais escolas do budismo tibetano - Sakya, Kagyu e Nyingma -, todas com suas próprias linhagens de tulkus renascidos. Mas, a partir da declaração atual, que terá certamente consequências, quiçá as demais linhagens repensem sobre suas instituições tulku e também encerrem esta prática de vez, recolocando o Vajrayana no patamar do Budismo indiano de onde se originou. O que o Dalai Lama iniciou agora é o crepúsculo da instituição tulku, mas o ocaso completo ainda demorará um pouco.
A
história do desenvolvimento da instituição tulku dos Dalai
Lamas é controversa. O atual 14º Dalai Lama é considerado pela
tradição o sucessor de uma linhagem de tulkus que se
acredita serem encarnações de Avalokiteśvara, um
Bodhisattva de compaixão. O nome é uma combinação da palavra
mongólica dalai que significa “oceano” ou “grande”
(proveniente do título mongol Dalaiyin qan ou Dalaiin
khan, traduzido como Gyatso em tibetano) e a palavra
tibetana bla-ma (se lê “lama”), significa "mestre,
guru".
Desde a
época do 5º Dalai Lama (Séc. XVII), sua imagem passou a ser um
símbolo da unificação do Tibete. O Dalai Lama era uma figura
importante da tradição Gelug, que era política e numericamente
dominante no Tibete Central, mas sua autoridade religiosa foi além
das fronteiras sectárias. Embora ele não tivesse um papel formal ou
institucional em nenhuma das tradições religiosas, lideradas por
seus próprios lamas, era um símbolo unificador do estado tibetano,
representando valores e tradições budistas acima de qualquer escola
específica.
De 1642
a 1705 e de 1750 a 1950, os Dalai Lamas ou seus regentes chefiaram o
governo tibetano em Lhasa. Este governo tibetano também desfrutou do
patrocínio e proteção dos primeiros reis mongóis Khoshut e
Dzungar Khan (1642-1720) e depois dos imperadores da dinastia Qing
liderada por Manchu (1720-1912). Na verdade, não fosse o patrocínio
e a proteção dos reis mongóis, os Dalai Lamas nunca teriam se
estabelecido no poder. A ascensão de um membro da linhagem Gelug ao
poder desgostou as outras linhagens, de modo que sempre houve rusgas
e escaramuças pelo Tibete fomentadas pelas divergências religiosas,
políticas e territoriais. Não há como negar este fato. Qualquer um
que estude a história do Tibete a partir de diversas fontes chegará
às mesmas conclusões.
Em
1913, vários representantes tibetanos, incluindo Agvan Dorzhiev
(monge Gelug de origem russa), assinaram um tratado entre o
Tibete e a Mongólia, proclamando reconhecimento mútuo e sua
independência da China. No entanto, a legitimidade do tratado e a
independência declarada do Tibete foram rejeitadas pela República
da China e pela atual República Popular da China. Os Dalai Lamas
chefiaram o governo tibetano depois disso, até 1951.
As
visões budistas sobre renascimento e reencarnação
O termo
“rebirth” é muito usado em textos em Inglês para
traduzir o que chamamos no meio budista de “renascimento”, que é
a versão budista do que os ocidentais chamam imprecisamente de
“reincarnation” (reencarnação). A visão ocidental,
tanto espírita quanto teosófica, é bem conhecida. A versão da
Teosofia vem do Vedanta indiano, que crê na existência de um
Atma imortal, uma espécie de “alma”, “espírito” ou
partícula imortal do Ser que sempre retorna em um novo corpo,
inclusive de animais (metempsicose). A versão do Espiritismo de
Kardec acredita que esta partícula é o Espírito, que reencarna
muitas vezes, nunca como animal após atingir a condição humana, e
evolui até atingir a condição de Espírito de Luz ou Espírito
Perfeito. No caso do Espiritismo, estes espíritos podem ser
sintonizados por pessoas vivas através do fenômeno da mediunidade,
algo que a Teosofia considera uma prática inferior.
No
Budismo, mesmo em meio à divergência das muitas escolas, a coisa é
vista de modo muito distinto. O renascimento sempre foi um
ensinamento central na tradição budista. Os textos do cânone Páli
indicam que o Buda, antes do despertar, buscou uma felicidade não
sujeita aos caprichos de repetidos nascimentos, envelhecimento,
doenças e morte. Quando finalmente alcançou a libertação do
sofrimento, reconheceu que havia alcançado seu objetivo porque
tocara uma dimensão que não só estava livre do nascimento, mas
também o libertara de voltar a renascer.
Mas,
como o Buda explanou sobre anatma (não-eu ou, mais
precisamente, não-atma, negação de uma partícula imortal),
então, o que renasce? Deste ponto de vista, nada “reencarna”. A
ideia de reencarnação propõe que uma qualidade de vida sólida é
passada para o próximo ser. Trata-se de alguma substância sólida
sendo transmitida.
Por
outro lado, na perspectiva do renascimento, a continuação, o
continuum de uma mente, se dá da mesma forma que, de uma
semente, nasce uma árvore enorme. A semente dá lugar à árvore, ou
a árvore é ainda a semente, ou nem uma coisa nem outra, mas a
continuidade de uma coisa na outra, como um continuum? De
qualquer forma, a vida continua, pois há mais em nossas vidas do que
o diminuto espaço de tempo entre o nascer e o morrer. Algo continua,
mas, ao mesmo tempo, nada continua. De certa forma, somos como um
fluxo contínuo, um continuum mental. É como o rio que
nomeamos. Ele muda o tempo todo, a água passa, mas o conceito
cristalizado “rio” parece-nos evidente. Contudo, ele é
provisório, está se transformando de um aspecto para outro a cada
instante.
O
lama Chögyam Trungpa disse: “Essa
transformação completa torna possível renascer. Se uma coisa
continuasse o tempo todo, não haveria possibilidades de renascer e
evoluir para outra situação. É a mudança que é importante em
termos de renascimento, e não uma coisa que continua. (…)
Na verdade, o renascimento ocorre a
todo momento, a todo instante. Todo instante é morte; todo instante
é nascimento. É um processo de mudança: não há nada que você
possa entender; Tudo está a mudar. Mas há alguma continuidade, é
claro - a mudança é a continuidade.” (The
Collected Works of Chögyam Trungpa, Vol. VI)
Quando
olhamos alguém, vemos cinco elementos (sânsc. skandha):
forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência.
Não existe alma, nem eu, fora deles, de modo que, quando os cinco
elementos se dissolvem, as ações (Sânsc. karma) realizadas
em vida são a sua continuação. O que se fez e se pensou ainda está
lá como energia. Não se precisa de uma alma, ou um eu, para
continuar. Mas, a continuação é um ponto pacífico nas diversas
escolas budistas.
A
grande questão é que mudamos tanto através das inúmeras vidas e,
mesmo nesta vida presente, que é sem sentido falarmos em um eu que
migra de uma vida a outra. Não é assim. É um continuum, uma
energia, uma tendência, um potencial ou qualquer outro termo vago. É
um mistério ainda em aberto. A visão budista do renascimento refuta
a noção de uma alma imortal (que reencarna), porque nega que haja
algo imutável nos aspectos físicos ou mentais dos fenômenos.
A
posição budista sobre o renascimento baseia-se na chamada visão do
caminho do meio, que evita dois extremos: a negação da continuação
da consciência ou da mente por completo (a posição do materialismo
científico, em geral), e a posição de um princípio psíquico
imutável (atman ou alma, ou algum outro conceito para
descrever um eu maior). Conforme o Buda, corpo e mente estão
sujeitos a mudanças contínuas e, mesmo na morte, o que é
transferido de uma vida para a outra não é um princípio psíquico
imutável, mas diferentes elementos psíquicos todos juntos (Sânsc.
samskaras - memórias, impressões diversas, etc.).
A noção
de que existe uma conexão entre esta vida e os eventos de nossa
existência anterior e futura, decorre da compreensão budista da lei
natural de causa e efeito. No nível corporal, no caso de nossa saúde
física, por exemplo, sabemos que os eventos do passado afetam o
presente e os do presente, o futuro. Da mesma forma, no domínio da
consciência, também existe esse mesmo continuum causal entre
os eventos do passado, presente e futuro.
Então,
seja lá o que “renasce” como um tulku, se é que renasce,
deve se inserir neste contexto acima, não no contexto de
“reencarnação”.
A
polêmica questão do Guru Yoga
Quanto
à origem da instituição Lama (palavra tibetana para o sânscrito
“guru”), em suas declarações recentes, o Dalai Lama foi
categórico: “Foi desenvolvido no Tibete. Eu acho que foi por causa
de alguma conexão com o sistema feudal. Muitas instituições
tibetanas estão relacionadas ao feudalismo. Sinto que é hora de
voltarmos ao sistema indiano de budismo, no qual não havia sistema
Lama.” (orig. “It developed in Tibet. I think it was because
of some connection with the feudal system. Many Tibetan institutions
are related with feudalism. I feel it’s time that we revert to the
Indian system of Buddhism in which there was no Lama system.” -
https://www.tribuneindia.com/news/nation/institution-of-lama-has-feudal-origins/852439.html).
No
Vajrayana, que é conectado ao sistema tântrico indiano, a figura do
guru (mestre) é muito importante. Se ele for um guru “reencarnado”
então, mais ainda. A profusão de lamas que também são tulkus no
Vajrayana é muito grande. Contudo, fica evidente que o sistema tulku
é cultural e feudal, nada conectado ao mundo moderno. Precisa ser
revisto. Da mesma forma, o sistema Lama, que é uma diferenciação
do que se vê em outras escolas budistas, nas quais o mestre ou
professor do Dharma é considerado apenas um “kalyana mitra”, o
bom amigo, o preceptor dos mais novos, a quem ensina por força de
sua própria prática, conhecimento e sabedoria. Ele não é alguém
para ser adorado, a quem se dirige preces devocionais intensas, como
se vê no Vajrayana.
Há uma
tendência no Budismo Vajrayana no Ocidente de não se formar mais
professores do Dharma com o título de “lama” exatamente porque
se percebeu o caráter cultural específico do sistema, com o qual os
ocidentais não possuem qualquer conexão. Então, para o Vajrayana
se expandir no Ocidente, o ideal é não se ter nem tulkus, nem
lamas, mas professores/instrutores do Dharma, sem qualquer excesso de
devocionalismo que cegue os praticantes ao que é mais importante, a
prática e a compaixão.
Da
mesma forma, isso talvez venha a coibir os abusos sexuais dos quais
muitos lamas tulkus têm sido acusados nos últimos anos. Estes
abusos são facilitados pela forma como o aluno deve tratar o guru no
Vajrayana. Chama-se a isso de “guru yoga”, o yoga do guru, ou um
modo de união com a natureza búdica do guru para se despertar a
própria natureza búdica. A proposta é interessante, mas a práxis
tem se mostrado abusiva e totalmente desconectada do comportamento da
mentalidade ocidental. Deve ser adaptada, portanto.
Caminhos
para um futuro mais coerente
A
polêmica declaração do Dalai Lama não nos deve fazer pensar
erroneamente que ele tenha dito que agora o Budismo não acredita
mais em reencarnação (ou “renascimento”, que é o termo técnico
mais apropriado no Budismo). Ele apenas não apoia mais a seleção
de um lama como seu sucessor baseado nos processos tradicionais, pois
eles refletem um sistema feudal, um dinossauro pré-histórico em
meio à modernidade. Quando disse que acha melhor que se retorne ao
sistema budista indiano, o fez porque neste sistema mais antigo os
líderes espirituais eram selecionados com base em sua competência e
conhecimento e não por serem considerados o renascimento de líderes
já falecidos. É um pensamento certamente arrojado e progressista.
Como
será o próximo capítulo desta história, não sabemos. Parece que
o Dalai Lama que evitar, com suas recentes declarações, que venha a
morrer em breve e, tendo mantido a instituição Dalai Lama, seu
tulku “escolhido” venha a ser objeto de jogo político entre
tibetanos e governo chinês. Uma jogada inteligente, mas que deveria
ter sido feita há muito mais tempo. Poderia ter desviado a fúria
chinesa de cima de sua imagem e até beneficiado mais a causa
tibetana. O excesso de devoção dos tibetanos comuns, não os
grandes eruditos, pela figura do Dalai Lama e dos tulkus em geral,
tem prejudicado muito o povo tibetano desde o Séc. XVII. Ao mesmo
tempo, foi uma espécie de “controlador da ordem social” neste
período, contribuindo para manter o isolacionismo tibetano que,
inclusive, custou caro quando o país foi invadido pelos chineses.
Sabemos do isolacionismo por várias fontes, como Helena Blavatsky (tentou entrar no Tibete, mas não conseguiu),
Alexandra David-Neel (entrou disfarçada de homem) e Heinrich Harrer (se tornou amigo do Dalai Lama), só para citar alguns.
Para
que o Vajrayana tenha uma espécie de “renascimento” como
proposta budista válida para a modernidade, é necessário expurgar
os elementos religiosos feudais da prática que realmente importa: a
libertação do sofrimento e o acesso à natureza búdica. Assim,
voltará ao mesmo status do budismo indiano citado pelo Dalai Lama em
suas declarações recentes. Sarva Mangalam! Que isso gere benefícios
para todos os seres sencientes!
Sobre o autor
Paulo Stekel é instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.
Contatos:
pstekel@gmail.com
Recomendo a leitura complementar de outro artigo meu sobre a polêmica do guru yoga: https://stekelblogue.blogspot.com/2019/06/como-aderi-ao-dharma-alem-do-budismo.html
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