sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O Crepúsculo dos Tulkus

Por Paulo Stekel


O que disse o Dalai Lama

Recentemente, o meio budista, especialmente o ambiente do Vajrayana, mais conhecido por “budismo tibetano”, foi abalado por notícias (https://www.lionsroar.com/dalai-lama-suggests-ending-tibetan-reincarnation-system) trazendo declarações do Dalai Lama, onde este sugere acabar com o sistema de “reencarnação” tibetana. Em uma reunião com estudantes na Índia, no dia 25 de outubro de 2019, ele teria dito que “o costume de reconhecer lamas reencarnados pode ter tido seu dia” (orig. “the custom of recognizing reincarnate lamas may have had its day”). Ainda disse que o sistema de “reencarnação” nunca existiu na Índia, de onde provém o Vajrayana, e não há reconhecimento de “reencarnações” de grandes mestres budistas indianos como Nagarjuna, ou o próprio Buda. Sim, é verdade. Isso nunca aconteceu no Budismo em nenhuma outra linhagem antes do Vajrayana implementar esta prática duvidosa.

O Dalai Lama disse que o sistema de reconhecimento de lamas “reencarnados” - chamado tulkus, em tibetano - está conectado à sociedade feudal tibetana e questionou a existência de tal tradição em uma sociedade democrática. Num lampejo de serenidade, o Dalai Lama reconhece o que todas as demais escolas budistas fora do Vajrayana sempre disseram. O sistema de reconhecimento dos tulkus no Budismo Tibetano só serviu a propósitos políticos em meio às grandes rusgas entre as diversas escolas (Gelugpa, Nyingma, Sakya, Kagyü e Bönpo) e não encontra base alguma nas doutrinas budistas anteriores.

Na declaração, o Dalai Lama abriu seu coração: “Sinto que é hora de voltarmos ao sistema indiano de budismo” (orig. “I feel it’s time that we revert to the Indian system of Buddhism”). Este sistema é o Vajrayana indiano, antes de sua mescla com os elementos xamânicos e culturais originalmente tibetanos. Certamente, é uma posição que agrada a muitos praticantes tibetanos do Vajarayana, a muitos praticantes ocidentais e a todos os budistas das linhagens anteriores ao Vajrayana, pois recupera uma coerência perdida de modo vexatório desde que os invasores mongóis patrocinaram a instituição tulku dos Dalai Lamas, no Séc. XV. Os tulkus das outras linhagens tibetanas existem a mais tempo ainda. No budismo tibetano, o costume de 800 anos de reconhecimento de lamas “reencarnados” é o sistema mais comum de sustentar linhagens espirituais e de garantir influência político-religiosa. Tanto é assim, que nos últimos anos, o governo chinês garantiu sua influência política no Tibete ao buscar o controle total das linhagens de “reencarnação”.

Por fim, o Dalai Lama ainda declarou: “As instituições precisam ser propriedade do povo, não de um indivíduo. Como minha própria instituição, o escritório do Dalai Lama, eu sinto que isso está ligado a um sistema feudal. Em 1969, em uma de minhas declarações oficiais, eu mencionei que deveria continuar (...) Mas agora, eu sinto, não necessariamente. Ela deve ir (...) O sistema deveria terminar, ou pelo menos mudar com os tempos de mudança. Houve casos de certos lamas que usam a reencarnação (para conseguir o que querem) mas nunca prestam atenção ao estudo e à sabedoria.” (orig. “Institutions need to be owned by the people, not by an individual. Like my own institution, the Dalai Lama’s office, I feel it is linked to a feudal system. In 1969, in one of my official statements, I had mentioned that it should continue… But now I feel, not necessarily. It should go… The system should end, or at least change with the changing times. There have been cases of individual lamas who use reincarnation [to get their way]… but never pay attention to study and wisdom.”).


Entendendo a instituição “tulku”

Um tulku (tibetano sprul sku [se lê tul-ku]) é, no budismo tibetano, um lama que conseguiu, através das práticas de phowa (transferência de consciência) e pela obtenção de siddhis (poderes místicos), ter a capacidade de escolher conscientemente renascer, às vezes por mais de uma vez, de maneira a continuar seus votos de Bodhisatva. O mais famoso exemplo é a linhagem dos Dalai Lamas; o atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso, é tido como o 14º renascimento, o primeiro sendo Gendun Drup (1391–1474). Na tradição Vajrayana acredita-se que a linhagem mais antiga de tulkus seja a dos Karmapas (líderes espirituais da linhagem Karma Kagyu), que se iniciou com Düsum Khyenpa (1110-1193). Neste caso, a tradição teria mais de 800 anos.

O termo tulku é a tradução para o tibetano do termo filosófico sânscrito nirmanakaya. De acordo com o sistema filosófico do trikaya, ou “três corpos do Buda”, o nirmanakaya é o “corpo” do Buda, no sentido de “corpo-mente” ou “nome-forma” (sânscrito: nāmarūpa). Assim, a pessoa de Sidarta Gautama, o Buda histórico, é um exemplo de nirmanakaya. No contexto do budismo tibetano, o tulku costuma se referir à existência corpórea dos mestres iluminados budistas em geral.

Contudo, numa pesquisa mais apurada (Khenpo Ngawang Pelzang. A Guide to the Words of My Perfect Teacher. Boston: Shambhala. 2004; Valentine, Jay (2013). "Lords of the Northern Treasures: The Development of the Tibetan Institution of Rule by Successive Incarnations". UVA Library | Virgo.; Logan, Pamela (2004). "Tulkus in Tibet". Harvard Asia Quarterly 8), descobrimos que a palavra tibetana 'sprul' (se lê “tul”]) era um verbo na literatura tibetana antiga usado para descrever o imperador (tib. ‘btsan’, se lê “tsen”) assumindo uma forma humana na terra. Assim, a ideia radical de assumir uma forma corporal é uma construção religiosa local alheia ao budismo indiano e a outras formas de budismo, como o Theravada e o Zen. Com o tempo, as ideias religiosas tibetanas pré-budistas foram assimiladas pelo novo budismo. Então, ‘sprul’ tornou-se parte de um substantivo composto, 'sprul.sku' ("corpo da encarnação" ou 'tulku') e 'btsan', o termo para o governante imperial do Império Tibetano, tornou-se uma espécie de divindade da montanha. O termo tulku tornou-se associado à tradução do termo filosófico sânscrito nirmanakaya.

Além dos tibetanos e de povos relacionados, o budismo tibetano é uma religião tradicional dos mongóis e de seus parentes. A palavra mongol para tulku é qubilγan, embora os tulkus também possam ser chamados pelo título honorífico qutuγtu (tib. 'phags-pa e Sânsc. ārya ou superior) ou hutagt no dialeto padrão de Khalkha. De acordo com A Luz da Sabedoria Indestrutível Destemida de Khenpo Tsewang Dongyal, o termo tulku: “designa alguém que é 'nobre' (ou 'altruísta' de acordo com o uso de Buda) e usado nos textos budistas para denotar um ser altamente realizado que alcançou o primeiro bhumi, um nível de realização que é verdadeiramente sem ego ou superior.”

A palavra em chinês para tulku é huófó, que literalmente significa “Buda vivo” e às vezes é usada para significar tulku, embora o Dalai Lama tenha dito que isso é uma tradução incorreta, pois um tulku não é necessariamente um ser realizado.

Jay Valentine resume a mudança no significado da palavra tulku ao longo do tempo: “Este termo que foi originalmente usado para descrever o Buda como uma ‘emanação mágica’ da iluminação, é melhor traduzido como ‘encarnação’ ou ‘encarnação firme, inabalável’ quando usado no contexto do sistema tulku para descrever patriarcas que retornam de forma confiável à forma humana.” [Valentine, Jay (2013). "Lords of the Northern Treasures: The Development of the Tibetan Institution of Rule by Successive Incarnations". UVA Library | Virgo]

Como acaba de afirmar o próprio Dalai Lama, o sistema tulku de preservar linhagens do Dharma não operava na Índia budista. A primeira linhagem tulku do Tibete é a dos Karmapas. Depois que o primeiro Karmapa morreu, em 1193, um lama teve várias visões de uma determinada criança como sendo o seu renascimento. Essa criança (nascida em 1205) foi reconhecida como o Karmapa, iniciando assim a tradição tibetana dos tulku.

O problema, como alertado pelo Dalai Lama, é que esta instituição foi usada para fins político-religiosos e também para objetivos pessoais egoístas dos próprios lamas reconhecidos como renascimentos de mestres anteriores. Então, é hoje uma instituição viciada que não traz nenhum benefício real para o Dharma budista. Deve, então, ser encerrada, começando pela instituição Dalai Lama, que é o tulku mais influente no Tibete e no Vajrayana.

O Dalai Lama levantou o assunto na declaração recente em resposta a uma pergunta sobre seu sucessor. Anteriormente, ele tinha dito que poderia não ter sucessor, ou que então seu sucessor poderia ser escolhido pelo povo tibetano. A China, que o vê como um terrorista perigoso, disse que o Dalai Lama deve reencarnar e que seu sucessor terá que ser aprovado pelo Estado. Um absurdo! Como um governo totalmente antirreligioso quer controlar uma instância de domínio exclusivo da religião? Hipocrisia e aproveitamento.

Mas, o Dalai Lama sozinho não tem autoridade para fazer essa mudança no budismo tibetano como um todo. Claro que, como líder sênior da Escola Gelug do Budismo Tibetano e ex-chefe de estado do Tibete, ele exerce uma grande influência no Budismo Tibetano. No entanto, ele não tem nenhuma autoridade sobre as outras três principais escolas do budismo tibetano - Sakya, Kagyu e Nyingma -, todas com suas próprias linhagens de tulkus renascidos. Mas, a partir da declaração atual, que terá certamente consequências, quiçá as demais linhagens repensem sobre suas instituições tulku e também encerrem esta prática de vez, recolocando o Vajrayana no patamar do Budismo indiano de onde se originou. O que o Dalai Lama iniciou agora é o crepúsculo da instituição tulku, mas o ocaso completo ainda demorará um pouco.

A história do desenvolvimento da instituição tulku dos Dalai Lamas é controversa. O atual 14º Dalai Lama é considerado pela tradição o sucessor de uma linhagem de tulkus que se acredita serem encarnações de Avalokiteśvara, um Bodhisattva de compaixão. O nome é uma combinação da palavra mongólica dalai que significa “oceano” ou “grande” (proveniente do título mongol Dalaiyin qan ou Dalaiin khan, traduzido como Gyatso em tibetano) e a palavra tibetana bla-ma (se lê “lama”), significa "mestre, guru".

Desde a época do 5º Dalai Lama (Séc. XVII), sua imagem passou a ser um símbolo da unificação do Tibete. O Dalai Lama era uma figura importante da tradição Gelug, que era política e numericamente dominante no Tibete Central, mas sua autoridade religiosa foi além das fronteiras sectárias. Embora ele não tivesse um papel formal ou institucional em nenhuma das tradições religiosas, lideradas por seus próprios lamas, era um símbolo unificador do estado tibetano, representando valores e tradições budistas acima de qualquer escola específica.

De 1642 a 1705 e de 1750 a 1950, os Dalai Lamas ou seus regentes chefiaram o governo tibetano em Lhasa. Este governo tibetano também desfrutou do patrocínio e proteção dos primeiros reis mongóis Khoshut e Dzungar Khan (1642-1720) e depois dos imperadores da dinastia Qing liderada por Manchu (1720-1912). Na verdade, não fosse o patrocínio e a proteção dos reis mongóis, os Dalai Lamas nunca teriam se estabelecido no poder. A ascensão de um membro da linhagem Gelug ao poder desgostou as outras linhagens, de modo que sempre houve rusgas e escaramuças pelo Tibete fomentadas pelas divergências religiosas, políticas e territoriais. Não há como negar este fato. Qualquer um que estude a história do Tibete a partir de diversas fontes chegará às mesmas conclusões.

Em 1913, vários representantes tibetanos, incluindo Agvan Dorzhiev (monge Gelug de origem russa), assinaram um tratado entre o Tibete e a Mongólia, proclamando reconhecimento mútuo e sua independência da China. No entanto, a legitimidade do tratado e a independência declarada do Tibete foram rejeitadas pela República da China e pela atual República Popular da China. Os Dalai Lamas chefiaram o governo tibetano depois disso, até 1951.

As visões budistas sobre renascimento e reencarnação

O termo “rebirth” é muito usado em textos em Inglês para traduzir o que chamamos no meio budista de “renascimento”, que é a versão budista do que os ocidentais chamam imprecisamente de “reincarnation” (reencarnação). A visão ocidental, tanto espírita quanto teosófica, é bem conhecida. A versão da Teosofia vem do Vedanta indiano, que crê na existência de um Atma imortal, uma espécie de “alma”, “espírito” ou partícula imortal do Ser que sempre retorna em um novo corpo, inclusive de animais (metempsicose). A versão do Espiritismo de Kardec acredita que esta partícula é o Espírito, que reencarna muitas vezes, nunca como animal após atingir a condição humana, e evolui até atingir a condição de Espírito de Luz ou Espírito Perfeito. No caso do Espiritismo, estes espíritos podem ser sintonizados por pessoas vivas através do fenômeno da mediunidade, algo que a Teosofia considera uma prática inferior.

No Budismo, mesmo em meio à divergência das muitas escolas, a coisa é vista de modo muito distinto. O renascimento sempre foi um ensinamento central na tradição budista. Os textos do cânone Páli indicam que o Buda, antes do despertar, buscou uma felicidade não sujeita aos caprichos de repetidos nascimentos, envelhecimento, doenças e morte. Quando finalmente alcançou a libertação do sofrimento, reconheceu que havia alcançado seu objetivo porque tocara uma dimensão que não só estava livre do nascimento, mas também o libertara de voltar a renascer.

Mas, como o Buda explanou sobre anatma (não-eu ou, mais precisamente, não-atma, negação de uma partícula imortal), então, o que renasce? Deste ponto de vista, nada “reencarna”. A ideia de reencarnação propõe que uma qualidade de vida sólida é passada para o próximo ser. Trata-se de alguma substância sólida sendo transmitida.

Por outro lado, na perspectiva do renascimento, a continuação, o continuum de uma mente, se dá da mesma forma que, de uma semente, nasce uma árvore enorme. A semente dá lugar à árvore, ou a árvore é ainda a semente, ou nem uma coisa nem outra, mas a continuidade de uma coisa na outra, como um continuum? De qualquer forma, a vida continua, pois há mais em nossas vidas do que o diminuto espaço de tempo entre o nascer e o morrer. Algo continua, mas, ao mesmo tempo, nada continua. De certa forma, somos como um fluxo contínuo, um continuum mental. É como o rio que nomeamos. Ele muda o tempo todo, a água passa, mas o conceito cristalizado “rio” parece-nos evidente. Contudo, ele é provisório, está se transformando de um aspecto para outro a cada instante.

O lama Chögyam Trungpa disse: Essa transformação completa torna possível renascer. Se uma coisa continuasse o tempo todo, não haveria possibilidades de renascer e evoluir para outra situação. É a mudança que é importante em termos de renascimento, e não uma coisa que continua. (…) Na verdade, o renascimento ocorre a todo momento, a todo instante. Todo instante é morte; todo instante é nascimento. É um processo de mudança: não há nada que você possa entender; Tudo está a mudar. Mas há alguma continuidade, é claro - a mudança é a continuidade.” (The Collected Works of Chögyam Trungpa, Vol. VI)

Quando olhamos alguém, vemos cinco elementos (sânsc. skandha): forma, sentimentos, percepções, formações mentais e consciência. Não existe alma, nem eu, fora deles, de modo que, quando os cinco elementos se dissolvem, as ações (Sânsc. karma) realizadas em vida são a sua continuação. O que se fez e se pensou ainda está lá como energia. Não se precisa de uma alma, ou um eu, para continuar. Mas, a continuação é um ponto pacífico nas diversas escolas budistas.

A grande questão é que mudamos tanto através das inúmeras vidas e, mesmo nesta vida presente, que é sem sentido falarmos em um eu que migra de uma vida a outra. Não é assim. É um continuum, uma energia, uma tendência, um potencial ou qualquer outro termo vago. É um mistério ainda em aberto. A visão budista do renascimento refuta a noção de uma alma imortal (que reencarna), porque nega que haja algo imutável nos aspectos físicos ou mentais dos fenômenos.

A posição budista sobre o renascimento baseia-se na chamada visão do caminho do meio, que evita dois extremos: a negação da continuação da consciência ou da mente por completo (a posição do materialismo científico, em geral), e a posição de um princípio psíquico imutável (atman ou alma, ou algum outro conceito para descrever um eu maior). Conforme o Buda, corpo e mente estão sujeitos a mudanças contínuas e, mesmo na morte, o que é transferido de uma vida para a outra não é um princípio psíquico imutável, mas diferentes elementos psíquicos todos juntos (Sânsc. samskaras - memórias, impressões diversas, etc.).

A noção de que existe uma conexão entre esta vida e os eventos de nossa existência anterior e futura, decorre da compreensão budista da lei natural de causa e efeito. No nível corporal, no caso de nossa saúde física, por exemplo, sabemos que os eventos do passado afetam o presente e os do presente, o futuro. Da mesma forma, no domínio da consciência, também existe esse mesmo continuum causal entre os eventos do passado, presente e futuro.

Então, seja lá o que “renasce” como um tulku, se é que renasce, deve se inserir neste contexto acima, não no contexto de “reencarnação”.

A polêmica questão do Guru Yoga

Quanto à origem da instituição Lama (palavra tibetana para o sânscrito “guru”), em suas declarações recentes, o Dalai Lama foi categórico: “Foi desenvolvido no Tibete. Eu acho que foi por causa de alguma conexão com o sistema feudal. Muitas instituições tibetanas estão relacionadas ao feudalismo. Sinto que é hora de voltarmos ao sistema indiano de budismo, no qual não havia sistema Lama.” (orig. “It developed in Tibet. I think it was because of some connection with the feudal system. Many Tibetan institutions are related with feudalism. I feel it’s time that we revert to the Indian system of Buddhism in which there was no Lama system.” - https://www.tribuneindia.com/news/nation/institution-of-lama-has-feudal-origins/852439.html).

No Vajrayana, que é conectado ao sistema tântrico indiano, a figura do guru (mestre) é muito importante. Se ele for um guru “reencarnado” então, mais ainda. A profusão de lamas que também são tulkus no Vajrayana é muito grande. Contudo, fica evidente que o sistema tulku é cultural e feudal, nada conectado ao mundo moderno. Precisa ser revisto. Da mesma forma, o sistema Lama, que é uma diferenciação do que se vê em outras escolas budistas, nas quais o mestre ou professor do Dharma é considerado apenas um “kalyana mitra”, o bom amigo, o preceptor dos mais novos, a quem ensina por força de sua própria prática, conhecimento e sabedoria. Ele não é alguém para ser adorado, a quem se dirige preces devocionais intensas, como se vê no Vajrayana.

Há uma tendência no Budismo Vajrayana no Ocidente de não se formar mais professores do Dharma com o título de “lama” exatamente porque se percebeu o caráter cultural específico do sistema, com o qual os ocidentais não possuem qualquer conexão. Então, para o Vajrayana se expandir no Ocidente, o ideal é não se ter nem tulkus, nem lamas, mas professores/instrutores do Dharma, sem qualquer excesso de devocionalismo que cegue os praticantes ao que é mais importante, a prática e a compaixão.

Da mesma forma, isso talvez venha a coibir os abusos sexuais dos quais muitos lamas tulkus têm sido acusados nos últimos anos. Estes abusos são facilitados pela forma como o aluno deve tratar o guru no Vajrayana. Chama-se a isso de “guru yoga”, o yoga do guru, ou um modo de união com a natureza búdica do guru para se despertar a própria natureza búdica. A proposta é interessante, mas a práxis tem se mostrado abusiva e totalmente desconectada do comportamento da mentalidade ocidental. Deve ser adaptada, portanto.

Caminhos para um futuro mais coerente

A polêmica declaração do Dalai Lama não nos deve fazer pensar erroneamente que ele tenha dito que agora o Budismo não acredita mais em reencarnação (ou “renascimento”, que é o termo técnico mais apropriado no Budismo). Ele apenas não apoia mais a seleção de um lama como seu sucessor baseado nos processos tradicionais, pois eles refletem um sistema feudal, um dinossauro pré-histórico em meio à modernidade. Quando disse que acha melhor que se retorne ao sistema budista indiano, o fez porque neste sistema mais antigo os líderes espirituais eram selecionados com base em sua competência e conhecimento e não por serem considerados o renascimento de líderes já falecidos. É um pensamento certamente arrojado e progressista.

Como será o próximo capítulo desta história, não sabemos. Parece que o Dalai Lama que evitar, com suas recentes declarações, que venha a morrer em breve e, tendo mantido a instituição Dalai Lama, seu tulku “escolhido” venha a ser objeto de jogo político entre tibetanos e governo chinês. Uma jogada inteligente, mas que deveria ter sido feita há muito mais tempo. Poderia ter desviado a fúria chinesa de cima de sua imagem e até beneficiado mais a causa tibetana. O excesso de devoção dos tibetanos comuns, não os grandes eruditos, pela figura do Dalai Lama e dos tulkus em geral, tem prejudicado muito o povo tibetano desde o Séc. XVII. Ao mesmo tempo, foi uma espécie de “controlador da ordem social” neste período, contribuindo para manter o isolacionismo tibetano que, inclusive, custou caro quando o país foi invadido pelos chineses. Sabemos do isolacionismo por várias fontes, como Helena Blavatsky (tentou entrar no Tibete, mas não conseguiu), Alexandra David-Neel (entrou disfarçada de homem) e Heinrich Harrer (se tornou amigo do Dalai Lama), só para citar alguns.

Para que o Vajrayana tenha uma espécie de “renascimento” como proposta budista válida para a modernidade, é necessário expurgar os elementos religiosos feudais da prática que realmente importa: a libertação do sofrimento e o acesso à natureza búdica. Assim, voltará ao mesmo status do budismo indiano citado pelo Dalai Lama em suas declarações recentes. Sarva Mangalam! Que isso gere benefícios para todos os seres sencientes!

Sobre o autor



Paulo Stekel é instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.

Contatos: pstekel@gmail.com


Um comentário:

  1. Recomendo a leitura complementar de outro artigo meu sobre a polêmica do guru yoga: https://stekelblogue.blogspot.com/2019/06/como-aderi-ao-dharma-alem-do-budismo.html

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