Por Stanislav Grof*
* Este texto é o
tópico 9 da conferência intitulada “O futuro da Psiquiatria e
da Psicologia: desafios conceituais da pesquisa clínica da
consciência”, apresentada durante o congresso internacional
Science and the Primacy of Consciousness, realizado no período
de 22 a 24 de abril de 1998, na Universidade de Lisboa, em Portugal.
O texto foi publicado no Brasil no livro “A Revolução da
Consciência – Novas descobertas sobre a mente no século XXI”,
organizado por Francisco Di Biase e Richard Amoroso (Vozes, 2004)
Na visão do mundo
da ciência materialista ocidental só a matéria existe realmente e
não há lugar para qualquer forma de espiritualidade. Ser espiritual
é visto como um sinal de falta de instrução, de superstição, de
um pensamento mágico primitivo, de fantasias ambiciosas e de
imaturidade emocional. Experiências empíricas das dimensões
espirituais da realidade são consideradas como manifestações de
doença mental séria, de psicoses. A pesquisa sobre estados
holotrópicos (ver Nota 1 ao final) da consciência
trouxe evidências de que, se propriamente compreendida e praticada,
a espiritualidade é uma dimensão natural e importante da psique
humana e do esquema universal das coisas.
Para evitar a
confusão e o desentendimento que no passado atormentou as discussões
sobre a vida espiritual e criou um falso conflito entre religião e
ciência é essencial deixarmos bem clara a diferença entre
espiritualidade e religião. A espiritualidade é baseada em
experiências diretas de dimensões da realidade que normalmente
estão ocultas. Ela não exige, necessariamente, um lugar especial,
ou uma pessoa especial mediadora do contato com o divino, embora os
místicos possam certamente se beneficiar de uma orientação
espiritual e de uma comunidade de pessoas que buscam a mesma coisa. A
espiritualidade envolve um relacionamento especial entre o indivíduo
e o cosmos e é em sua essência algo pessoal e privado. No advento
de todas as grandes religiões ocorreram as experiências visionárias
(perinatais [durante o nascimento] e transpessoais) de seus
fundadores, profetas, santos e, até mesmo, seguidores comuns. Todas
as grandes escrituras espirituais – os Vedas, o Canon Pali Budista,
o Alcorão, o Livro dos Mórmons e muitas outras – são baseadas em
revelações em estados holotrópicos.
Por comparação, a
base da religião organizada é atividade grupal institucionalizada
que ocorre em um local designado (templo, igreja, sinagoga), e
envolve um sistema de mediadores oficiais. Idealmente, as religiões
deveriam dar a seus membros acesso a experiências espirituais
diretas, e apoio durante essas experiências. No entanto, o que
ocorre muitas vezes é que, tão logo a religião se torna
organizada, ela mais ou menos perde a conexão com sua fonte
espiritual e passa a ser uma instituição secular explorando as
necessidades espirituais humanas sem satisfazê-las. Em vez disso,
ela cria um sistema hierárquico que tem como foco a busca do poder,
do controle, da política, do dinheiro e outras possessões. Nestas
circunstâncias, a hierarquia religiosa tende a desencorajar
ativamente, e até suprimir, as experiências espirituais diretas de
seus membros, porque elas estimulam a independência e não podem ser
controladas de maneira eficaz.
As observações do
estudo dos estados holotrópicos confirmam as ideias de C. G. Jung
referentes à espiritualidade. Segundo ele, as experiências de
níveis mais profundos da psique (em minha terminologia, experiências
perinatais e transpessoais) têm uma certa qualidade que Jung
denominou de numinosidade (conforme Rudolph Otto – ver Nota
2 ao final). Os sujeitos que estão tendo essas experiências
sentem que estão encontrando uma dimensão que é sagrada, santa,
radicalmente diferente da vida cotidiana, pertencente a uma outra
ordem da realidade. O termo numinosidade é relativamente neutro e
com isso preferível a outros, tais como “religioso”, “místico”,
“mágico”, “santo”, “oculto”, e outros mais, que foram
usados muitas vezes em contextos problemáticos e podem facilmente
levar a erro.
As pessoas que têm
experiências de dimensões numinosas da realidade abrem-se à
espiritualidade encontrada nas ramificações místicas das grandes
religiões do mundo ou em suas ordens monásticas, não
necessariamente em suas organizações oficiais. A verdadeira
espiritualidade é universal e abrange tudo e baseia-se em uma
experiência mística pessoal, e não em um dogma ou nas escrituras
religiosas. As religiões oficiais organizadas unem as pessoas
localizadas na área de seu raio, mas tendem a ser divisivas porque
colocam seu próprio grupo contra todos os demais e, muitas vezes,
tendem a convertê-los ou a erradicá-los. Não pode existir nenhum
conflito entre a verdadeira espiritualidade e a ciência entendida
corretamente. As experiências transpessoais são uma manifestação
natural da psique humana e não há nada não científico em
submetê-las a um estudo sério.
Nota
1.
Estados Holotrópicos, segundo o próprio Grof, é
o nome que ele propôs para os estados não ordinários de
consciência para os quais a psiquiatria contemporânea não tem um
termo específico. A palavra composta “holotrópicos” significa
literalmente “orientado para a totalidade” ou “indo na direção
da totalidade” (do grego holos = todo e trepein =
indo para ou na direção de algo). É uma nomenclatura para os
estados ampliados de consciência, que se diferenciam do termo comum
“estados alterados de consciência” por proporem uma ampliação
da consciência humana.
Nota
2. Numinoso (do latim "numen",
divindade), de onde vem o substantivo “numinosidade”, é um
adjetivo que qualifica algo que é considerado sagrado ou divino.
Esse termo foi posto em circulação no mundo acadêmico por Rudolf
Otto, um dos pais da Fenomenologia Religiosa. É usado numa conotação
psicológica na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung.
Sobre o Autor
Stanislav Grof
(Praga, 1 de julho de 1931) é um psiquiatra checo que
desenvolveu nos EUA pesquisas sobre os estados alterados de
consciência (EAC), através de experiências com LSD. Desenvolveu
uma técnica chamada Respiração Holotrópica, através da qual é
possível atingir estados de consciência semelhantes através da
hiperventilação, como alternativa ao uso clínico do LSD, tornado
ilegal. É um dos pais da Psicologia Transpessoal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário