segunda-feira, 12 de agosto de 2019

O papel da espiritualidade na vida humana

Por Stanislav Grof*


* Este texto é o tópico 9 da conferência intitulada “O futuro da Psiquiatria e da Psicologia: desafios conceituais da pesquisa clínica da consciência”, apresentada durante o congresso internacional Science and the Primacy of Consciousness, realizado no período de 22 a 24 de abril de 1998, na Universidade de Lisboa, em Portugal. O texto foi publicado no Brasil no livro “A Revolução da Consciência – Novas descobertas sobre a mente no século XXI”, organizado por Francisco Di Biase e Richard Amoroso (Vozes, 2004)

Na visão do mundo da ciência materialista ocidental só a matéria existe realmente e não há lugar para qualquer forma de espiritualidade. Ser espiritual é visto como um sinal de falta de instrução, de superstição, de um pensamento mágico primitivo, de fantasias ambiciosas e de imaturidade emocional. Experiências empíricas das dimensões espirituais da realidade são consideradas como manifestações de doença mental séria, de psicoses. A pesquisa sobre estados holotrópicos (ver Nota 1 ao final) da consciência trouxe evidências de que, se propriamente compreendida e praticada, a espiritualidade é uma dimensão natural e importante da psique humana e do esquema universal das coisas.

Para evitar a confusão e o desentendimento que no passado atormentou as discussões sobre a vida espiritual e criou um falso conflito entre religião e ciência é essencial deixarmos bem clara a diferença entre espiritualidade e religião. A espiritualidade é baseada em experiências diretas de dimensões da realidade que normalmente estão ocultas. Ela não exige, necessariamente, um lugar especial, ou uma pessoa especial mediadora do contato com o divino, embora os místicos possam certamente se beneficiar de uma orientação espiritual e de uma comunidade de pessoas que buscam a mesma coisa. A espiritualidade envolve um relacionamento especial entre o indivíduo e o cosmos e é em sua essência algo pessoal e privado. No advento de todas as grandes religiões ocorreram as experiências visionárias (perinatais [durante o nascimento] e transpessoais) de seus fundadores, profetas, santos e, até mesmo, seguidores comuns. Todas as grandes escrituras espirituais – os Vedas, o Canon Pali Budista, o Alcorão, o Livro dos Mórmons e muitas outras – são baseadas em revelações em estados holotrópicos.

Por comparação, a base da religião organizada é atividade grupal institucionalizada que ocorre em um local designado (templo, igreja, sinagoga), e envolve um sistema de mediadores oficiais. Idealmente, as religiões deveriam dar a seus membros acesso a experiências espirituais diretas, e apoio durante essas experiências. No entanto, o que ocorre muitas vezes é que, tão logo a religião se torna organizada, ela mais ou menos perde a conexão com sua fonte espiritual e passa a ser uma instituição secular explorando as necessidades espirituais humanas sem satisfazê-las. Em vez disso, ela cria um sistema hierárquico que tem como foco a busca do poder, do controle, da política, do dinheiro e outras possessões. Nestas circunstâncias, a hierarquia religiosa tende a desencorajar ativamente, e até suprimir, as experiências espirituais diretas de seus membros, porque elas estimulam a independência e não podem ser controladas de maneira eficaz.

As observações do estudo dos estados holotrópicos confirmam as ideias de C. G. Jung referentes à espiritualidade. Segundo ele, as experiências de níveis mais profundos da psique (em minha terminologia, experiências perinatais e transpessoais) têm uma certa qualidade que Jung denominou de numinosidade (conforme Rudolph Otto – ver Nota 2 ao final). Os sujeitos que estão tendo essas experiências sentem que estão encontrando uma dimensão que é sagrada, santa, radicalmente diferente da vida cotidiana, pertencente a uma outra ordem da realidade. O termo numinosidade é relativamente neutro e com isso preferível a outros, tais como “religioso”, “místico”, “mágico”, “santo”, “oculto”, e outros mais, que foram usados muitas vezes em contextos problemáticos e podem facilmente levar a erro.

As pessoas que têm experiências de dimensões numinosas da realidade abrem-se à espiritualidade encontrada nas ramificações místicas das grandes religiões do mundo ou em suas ordens monásticas, não necessariamente em suas organizações oficiais. A verdadeira espiritualidade é universal e abrange tudo e baseia-se em uma experiência mística pessoal, e não em um dogma ou nas escrituras religiosas. As religiões oficiais organizadas unem as pessoas localizadas na área de seu raio, mas tendem a ser divisivas porque colocam seu próprio grupo contra todos os demais e, muitas vezes, tendem a convertê-los ou a erradicá-los. Não pode existir nenhum conflito entre a verdadeira espiritualidade e a ciência entendida corretamente. As experiências transpessoais são uma manifestação natural da psique humana e não há nada não científico em submetê-las a um estudo sério.


Nota 1. Estados Holotrópicos, segundo o próprio Grof, é o nome que ele propôs para os estados não ordinários de consciência para os quais a psiquiatria contemporânea não tem um termo específico. A palavra composta “holotrópicos” significa literalmente “orientado para a totalidade” ou “indo na direção da totalidade” (do grego holos = todo e trepein = indo para ou na direção de algo). É uma nomenclatura para os estados ampliados de consciência, que se diferenciam do termo comum “estados alterados de consciência” por proporem uma ampliação da consciência humana.

Nota 2. Numinoso (do latim "numen", divindade), de onde vem o substantivo “numinosidade”, é um adjetivo que qualifica algo que é considerado sagrado ou divino. Esse termo foi posto em circulação no mundo acadêmico por Rudolf Otto, um dos pais da Fenomenologia Religiosa. É usado numa conotação psicológica na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung.

Sobre o Autor

Stanislav Grof (Praga, 1 de julho de 1931) é um psiquiatra checo que desenvolveu nos EUA pesquisas sobre os estados alterados de consciência (EAC), através de experiências com LSD. Desenvolveu uma técnica chamada Respiração Holotrópica, através da qual é possível atingir estados de consciência semelhantes através da hiperventilação, como alternativa ao uso clínico do LSD, tornado ilegal. É um dos pais da Psicologia Transpessoal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário