quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Visões da Homossexualidade: da biologia à neo-espiritualidade

Por Paulo Stekel


Introdução

Alguns dias atrás vi uma figura pelas redes sociais (ver figura acima) comentando sobre o aspecto natural da homossexualidade. A achei muito interessante e resolvi tecer alguns comentários sobre o raciocínio desenvolvido na mesma:

Tenho pesquisado isso há muitos anos, tanto do ponto de vista espiritual quanto biológico, e concluí que, realmente, a natureza é sábia ou, numa linguagem mais moderna, se adapta às condições. Há muitas teorias sobre o tema, mas me parece plausível que a sexualidade das espécies, não apenas a humana, é mutável de acordo com as condições do ambiente e, no caso da humana, também de acordo com as condições sociais. Assim, como no caso de bebês pinguins abandonados por seus pais de sexos opostos tendem a ser adotados por casais de pinguins do mesmo sexo, vejo que na espécie humana talvez tenhamos uma ‘missão’ a cumprir. Espiritualmente falando, talvez seja esta uma oportunidade de demonstrar amor incondicional por crianças adotadas independente de conexões biológicas. Isto estaria ligado à transcendência do ser mais do que à sexualidade em si.

Contrariamente à opinião preconceituosa de uma parte dos líderes do espiritismo, que dizem ser a homossexualidade algum tipo de provação ou o fato de se ter reencarnado muitas vezes no mesmo sexo, resultando em dificuldade de adaptação ao outro sexo, penso que é uma possibilidade natural tanto quanto qualquer outra (as outras duas são a heterossexualidade e a bissexualidade, esta última comum no reino anfíbio e entre peixes, que mudam não só a orientação quanto o gênero, em situações críticas). Mas, o preconceito de mentes que não admitem o diferente, que determinam a norma, respaldados por crenças religiosas medievais, é o único entrave ao nosso pleno existir em sociedade. Não voltaremos aos armários, pois não cometemos crime algum. Aliás, os corruptos deste país, leigos ou religiosos, é que devem se esconder pela vergonha que causam a esta nação!” (texto do meu feed no Facebook)

Como várias pessoas teceram comentários sobre este texto nas redes sociais, resolvi desenvolver mais meu pensamento neste artigo. Para embasá-lo, farei uma revisão dos trabalhos que têm sido publicados sobre o tema nos mais variados âmbitos, como o biológico, o sociológico, o psicológico e o espiritual. O âmbito antropológico está esparso entre o biológico e o sociológico.

Aspectos biológicos da homossexualidade

Em 2016 a revista Superinteressante (https://super.abril.com.br/ciencia/por-que-os-gays-sao-gays/) publicou um artigo sobre as bases biológicas da homossexualidade. Uma das afirmações do artigo é a de que “a formação da sexualidade acontece antes do nascimento – em parte pelos genes, mas também por fatores que atuam no desenvolvimento do feto”. Como o próprio artigo depois alerta, isso não é um fato confirmado, apesar dos indícios.

Ainda no mesmo artigo, confrontando aqueles que dizem que não há o que explicar sobre a homossexualidade e de que se deve apenas aceitá-la, e pronto: “‘Os homossexuais são muitas vezes acusados de exibir um comportamento não natural. A única maneira de refutar essa acusação é pesquisar as causas das diferentes orientações sexuais’, diz a bióloga transexual Joan Roughgard, professora da Universidade Stanford e autora do livro Evolution’s Rainbow (‘Arco-Íris da Evolução’, sem tradução em português), em que analisa cerca de 300 casos de comportamento homossexual entre animais.”

Em 1991, o neurocientista anglo-americano Simon LeVay, gay declarado, anunciou ter encontrado diferenças em cérebros de homens gays e héteros. Ele examinou o hipotálamo, zona-chave da sexualidade no cérebro, e descobriu que a região chamada INAH-3 era entre 2 e 3 vezes menor nos gays. Contudo, a pesquisa foi contestada porque os pesquisados haviam morrido em decorrência da AIDS, o que pode ter interferido no tamanho da região pesquisada.

Em 1993, Dean Hamer, do Instituto Nacional do Câncer (EUA), percebeu que dentro das famílias havia muito mais gays do lado materno (mulheres têm dois cromossomos X, enquanto os homens têm um X e um Y). Usando um escâner, Hamer viu que uma região do cromossomo X, a Xq28, era idêntica em muitos irmãos gays. O que ele descobriu não foi um único gene gay, mas uma tira de DNA transmitida por inteiro. A pesquisa foi um alento para os gays, pois era a esperança de que seu comportamento tinha uma prova científica de não ser “antinatural”.

O caso já conhecido de gêmeos com orientação sexual diferente mostra que, sozinha, a genética não explica a homossexualidade. Mas isso não significa que a criação e o ambiente tenham todas as respostas.

Michael Bailey, da Universidade Northwestern, e Richard Pillard, da Universidade de Boston, ambos dos EUA, analisaram gêmeos e viram que, entre bivitelinos, se um é gay, o outro tem 22% de possibilidade de também ser. Para os univitelinos, a probabilidade sobe para 52%.

A taxa de homossexualidade entre a população, que antes era considerada em torno dos 10%, de acordo com o famoso e polêmico Relatório Kinsey, dos anos 40, agora cai para a taxa de 2% a 5% segundo pesquisas mais recentes. Bailey e Pillard, portanto, de certa forma, provam a existência de um componente genético para a homossexualidade, mas que também os genes não dão conta de tudo. “Os estudos com gêmeos feitos até agora nos permitem uma estimativa de que até 40% da orientação sexual venha dos genes”, diz Alan Sanders, da Universidade Northwestern, EUA.

Eu mesmo tenho testado uma teoria pessoal, que normalmente se confirma, a ponto de eu conseguir acertar até quem é: numa família com até 2 filhos, um PODE ser gay; com 3 filhos, um COM CERTEZA é (mesmo que não seja assumido); com 4 filhos, um É e outro pode ser; com 5 a 8 filhos, COM CERTEZA dois são gays. Já fui padrasto de 4 crianças e acertei em cheio com 8 anos de antecedência qual era o filho gay – sem que ele nunca soubesse desta minha avaliação (ele teve uma relação gay por volta dos 15 anos). Neste minha teoria pessoal, a taxa de homossexualidade sobre para 25%. Claro que ela é baseada na minha observação nestes meus quase 50 anos de vida, e tenho uma memória estatística, mas o fato é que o percentual varia muito de pesquisa para pesquisa, por mais científica que seja. Talvez a divergência maior se deva ao fato de desconsiderarmos a relação da homossexualidade com a bissexualidade no processo. Talvez pudéssemos considerar como um padrão inicial aceitável a cifra de 2 a 10% de homossexuais sem propensão à bissexualidade e de até 25% os bissexuais em variados graus. Neste caso, um quarto da humanidade teria propensão a experiências homossexuais frequentes ou esporádicas. Isso sem contar as experiências dos adolescentes, não envolvendo ato sexual completo, o que pode chegar a 50%, conforme pesquisas bem antigas.

Mas, o que isso quer dizer, do ponto de vista biológico? Uma pessoa comentou nas redes sociais quando publiquei os dois parágrafos da Introdução: Acho que a natureza é sábia, pois diante de tantas crianças abandonadas por pais irresponsáveis, casais do mesmo sexo adotam as mesmas, educando-as com valores atuais e com muito mais amor que muitos pessoas ou casais heterossexuais - também, é um controle de natalidade.” (V.M.A.)

Controle. É uma possibilidade, mas também o fato de que indivíduos e casais homossexuais são mais voltados às suas famílias do que os heterossexuais. Existe mesmo um clichê do gay que cuida dos pais (especialmente a mãe) com muito mais atenção que seus irmãos heterossexuais, que normalmente dão de ombros. Mas, considerando que pais já idosos não se reproduzem mais, qual seria o motivo da natureza favorecer filhos gays que os cuidem na velhice? Um fator possível é a conexão que os mais velhos mantém com os mais novos, visando a sobrevivência da espécie, algo de que a própria antropologia já falou bastante ao pesquisar o conceito de clã.

Este aspecto de um “controle de natalidade” deve ainda ser interpretado sob o ponto de vista biológico neodarwinista. A natureza tende ao equilíbrio, ao qual se chama de homeostase. O neurocientista português António Damásio prefere usar o termo homeodinâmica, pois entende que o equilíbrio natural não é uma espécie de “estasis”, ou seja, uma estática, mas uma condição variável que se mantém dentro de certos parâmetros viáveis para a manutenção e desenvolvimento da vida. Homeodinâmica faz mais sentido, portanto, que o termo homeostase, portanto.

Algumas teorias biológicas mais estranhas não encontraram nenhuma base firme, como a dos hormônios pré-natais, a de que os irmãos mais velhos interferem na sexualidade dos mais novos (o efeito “big brother”), a de que a mãe trata o caçula de vários filhos homens como a menina que não teve e a preconceituosa ideia de que o abuso sexual na infância causa homossexualidade. Em meus mais de 30 anos de atendimentos com aconselhamento espiritual atendi algumas dezenas de homens que afirmaram ter sofrido abuso sexual na infância e, a despeito do trauma, um percentual mínimo se “tornou” homossexual na fase adulta. Eu mesmo, sou o filho mais velho de quatro homens, nunca sofri abuso e o caçula não é homossexual.

Podemos concluir de modo prévio que, assim como tudo o mais que somos como indivíduos, é influenciado, mas não totalmente determinado pela biologia, a homossexualidade também deve ser influenciada, mas não totalmente determinada por fatores biológicos. Na verdade, a pesquisa deve ser realizada pelo mais óbvio: o que leva uma pessoa a ser heterossexual? Não, não é uma pergunta estranha ou que prescinda de resposta. Não é assim porque é assim. Isso não é científico. Responder a esta questão permitirá responder às dúvidas sobre a homossexualidade e a bissexualidade.

Aspectos sociológicos da homossexualidade

A recusa dos gays atuais de serem considerados como desviantes “outsiders” (Becker) ou fora da norma social tem sua razão de ser. Tem motivos biológicos, como já analisamos, mas também motivações sociais e antropológicas.

O primeiro registro de um casal homossexual na história é geralmente considerado o de Khnumhotep e Niankhkhnum, um casal egípcio do sexo masculino, que viveu por volta de 2400 a.C. Foram eternizados em um momento íntimo, beijando-se (ver figura abaixo).

(O casal gay egípcio Khnumhotep e Niankhkhnum, em um beijo eternizado há mais de 4400 anos)

Em muitas sociedades primitivas e outras ainda existentes, as relações entre pessoas do mesmo sexo não são vistas como algo ruim. São toleradas em algumas tribos africanas antes do meninos se casarem. Os antropólogos Stephen Murray e Will Roscoe relataram que mulheres do Lesoto envolviam-se em relações de “longo prazo e eróticas” chamadas motsoalle. Em tribos de nativos americanos, nos EUA e Canadá, pessoas homossexuais (orientação sexual) e mesmo transgêneros (orientação de gênero) são vistos com respeito e até como uma forma elevada de espiritualidade (a crença nos “dois-espíritos”, onde os homossexuais eram transformados em xamãs). Pierre Clastres pesquisou a homossexualidade aceita pelos índios Guayaki, no Paraguai. A homofobia é, em grande medida, moderna, abraâmica, masculina e amiga do fascismo e autoritarismo, pois a liberdade de ser quem se é fere a vontade de domínio social dos ditadores de sempre, sejam capitalistas ou comunistas.

A maior parte dos gays demora para fazer o “outing” (o “sair do armário”, assumir-se) porque tem medo da reação social, começando pela da família, dos irmãos de religião, dos colegas de trabalho e chegando à reação dos amigos, incluindo os de infância. Eu mesmo, só me assumi para mim mesmo aos 20 anos (o “aceitar a si mesmo”) e, para todos, aos 25 anos (o “ser aceito pelos outros”). Atualmente, vejo os jovens se assumindo aos 13 ou 14 anos, e para os demais, a partir dos 18 anos. Isso se deve à informação sobre a homossexualidade disponível por vários meios impressos e digitais, que permitem que estas pessoas encontrem respostas para seus sentimentos conflitantes muito mais cedo, evitando anos de sofrimento desnecessário. Escrevo artigos desta natureza exatamente na intenção de que possam ajudar estes jovens a entenderem que têm o mesmo direito dos demais a um lugar de felicidade neste mundo.

Do ponto de vista sociológico, as sanções impostas a quem assume a própria homossexualidade são de diversos tipos: sanções informais, violência física em vários graus (homofobia), violências morais, tais como olhares desaprovadores, observações negativas, chacotas ou injurias. A pessoa deixa de participar de eventos familiares, não é convidada para casamentos e aniversários, não pode levar seus companheiros ou namorados, tem que se valer de relacionamentos de fachada, apresentar companheiros como sendo “amigos”, evitar qualquer demonstração de carinho socialmente permitido para os heterossexuais e ainda sofrer a acusação hipócrita de ser uma “máquina de sexo”, como se os maridos das mulheres heterossexuais fossem menos predadores sexuais quando as traem a torto e a direito, como todos sabemos, mas raramente falamos. Sim, os homens (gays ou não gays) traem muito mais que as mulheres!

Numa análise Foucaultiana da sexualidade, temos que entender a equação poder-sexo através de duas chaves conceituais relacionadas: o dispositivo da sexualidade (conjunto de práticas, instituições e conhecimentos que desde o Séc. 18 fizeram da sexualidade um domínio coerente e uma dimensão absolutamente fundamental do indivíduo) e a scientia sexualis (conjunto de regras que disciplinavam os saberes sobre sexo e prazer, as quais levavam em conta uma biologia da reprodução humana ao lado de uma medicina do sexo). Foucault afirmava que a sociedade se viu obrigada a comentar mais objetivamente sobre o sexo para poder estabelecer um controle sobre o mesmo.

Aqui, é impossível não relacionar o dispositivo ao capitalismo. O dispositivo é algo estabelecido pelo poder como forma de controle e coerção, que pretende regular a relação com prazer. Concomitantemente ao advento deste, o advento do capitalismo (séculos XVI até o XIX) forçou o sexo a se confessar e a se manifestar por meio de várias instituições: a família, a Igreja, o Estado, na medicina, no Direito, na sociologia, na psicologia e psiquiatria. Tanto que o termo homossexualismo foi criado em 1869 pelo escritor húngaro Károly Mária Kertbeny, e a partir de então, a “visibilidade” que isso deu às pessoas que se orientam para as do mesmo sexo foi completamente negativa, por sugerir que se tratava de uma doença mental.

Mesmo quando analisamos o preconceito contra a homossexualidade no mundo comunista, o fantasma do capitalismo ressurge. Em geral, nos países comunistas, a homossexualidade era (e ainda é) considerada um comportamento burguês e capitalista. Ou seja, enquanto para as sociedades capitalistas, a homossexualidade é considerada um pecado contra a natureza e deve ser reprimida, para as sociedades comunistas, é considerada uma licensiosidade burguesa fomentada pelo capitalismo. Ambas as noções são totalmente equivocadas. O que ambas as sociedades têm em comum é o preconceito e o desejo de regulação do prazer, normatizando-o na esfera da heterossexualidade reprodutiva.

Quando a homossexualidade é vista de forma reducionista, preconceituosa, acaba-se relacionando-a com comportamentos também existentes entre os heterossexuais e não exclusivos da homossexualidade, como a pederastia, a prostituição, o estupro e o assédio de todos os tipos. Ser gay não é sofrer de uma patologia somática, mas, muitas vezes, padecer de uma carga traumática tão forte quanto a de sobreviventes de guerra, isso devido ao preconceito, à não aceitação social, à privação de direitos e à violência homofóbica.

Podemos concluir de modo prévio que, assim como tudo o mais que somos como indivíduos, é influenciado, mas não totalmente determinado pela cultura, a homossexualidade também deve ser influenciada, mas não totalmente determinada por fatores culturais. Na verdade, a pesquisa deve ser realizada pelo mais óbvio: o que influencia a sexualidade de uma pessoa dependendo da cultura em que é criada?

Aspectos psicológicos da homossexualidade

A teoria de Sigmund Freud sobre a homossexualidade é totalmente ultrapassada e não encontra nenhuma sustentação científica. Freud dizia que mães superprotetoras e pais ausentes poderiam levar o filho a ser gay. Mas, em vez de encontrar a causa, Freud possivelmente enxergou a consequência: a superproteção da mãe não seria a origem da homossexualidade, mas um ato de defesa para um filho que é rejeitado pelo pai por se comportar, desde cedo, de maneira feminina.

A psicologia foi uma das primeiras disciplinas a estudar a orientação homossexual como um fenômeno discreto. Mas, ao mesmo tempo que foi uma das responsáveis por retirar do âmbito religioso o preconceito contra os gays, o reposicionou, junto com a Psiquiatria, no terreno médico, criando a noção de “homossexualismo” como sendo uma doença mental que poderia ser tratada, o que só pirou as coisas (cfe. opinião de Daniel Borrillo em “Homofobia – história e crítica de um preconceito”, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016, um clássico contra o preconceito). Em 1886 o sexólogo Richard von Krafft-Ebing propôs que a homossexualidade era causada por uma "inversão congênita" ou uma "inversão adquirida". Graças a pensamentos como este e também de Freud, no final do século XIX e início do XX, os modelos patológicos da homossexualidade eram o padrão. Tanto que a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade do DSM em 1973, afirmando que “a homossexualidade em si não implica qualquer prejuízo no julgamento, estabilidade, confiabilidade ou capacidades gerais sociais e vocacionais.” Por sua vez, a Associação Americana de Psicologia adotou a mesma posição em 1975, exortando seu profissionais a “assumir a liderança em eliminar o estigma de doença mental que há muito tem sido associado com orientações homossexuais.”

Após um período trevoso promovido pela Psiquiatria e Psicologia, o atual consenso das ciências comportamentais e sociais e dos profissionais de saúde e saúde mental é que a homossexualidade, por si só, é uma variação normal e positiva da orientação sexual humana. Assim, a homossexualidade não é mais listada na CID (Classificação Internacional de Doenças).

No Brasil, um país sempre atrasado, somente em 1985 o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade como um desvio sexual e, somente em 1999, estabeleceu regras para a atuação dos psicólogos em relação à questões de orientação sexual, declarando que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade. Mas, os grupos neopentecostais fundamentalistas sempre andam às voltas tentando ressuscitar os centros de reabilitação da homossexualidade, a que chamam de centros de “cura gay”.

Atualmente, gays, lésbicas e bissexuais que procuram psicoterapia o fazem pelas mesmas razões dos heterossexuais: estresse (especialmente por conta do preconceito), dificuldades de relacionamento, dificuldade de adaptação às novas situações sociais ou de trabalho, etc.

Do ponto de vista da Psicobiologia, uma neurociência, parece que os seres humanos estimulam suas zonas erógenas porque estas provocam recompensas no cérebro, como o orgasmo, e são observadas no nível da consciência como sensações de prazer erótico e satisfação. Entre humanos, chimpanzés, orangotangos e golfinhos, o comportamento sexual não é mais exclusivo da reprodução, mas se tornou um comportamento erótico. A evolução teria sido a responsável pela diminuição da importância e influência dos hormônios e dos feromônios sobre o comportamento sexual.

A partir disto, se pode deduzir que, biologicamente a sexualidade humana seria um tanto bissexual, mas que a influência do contexto cultural e das experiências pessoais é maior no desenvolvimento da orientação sexual. A homossexualidade, a heterossexualidade e a bissexualidade são possibilidades “biologicamente normais” do desenvolvimento. “Fatores biológicos (como genes e hormônios) são certamente responsáveis por mais de 50% da orientação sexual”, diz Dean Hamer, o pai do “gene gay”, que aqui admite que há espaço para fatores psicológicos.

Podemos concluir de modo prévio que, assim como tudo o mais que somos como indivíduos, é influenciado, mas não totalmente determinado pela estrutura psíquica, a homossexualidade também deve ser influenciada, mas não totalmente determinada por fatores psicológicos. Na verdade, a pesquisa deve ser realizada pelo mais óbvio: o que influencia a sexualidade de uma pessoa dependendo da estrutura de sua psique?

Aspectos espirituais da homossexualidade

Após analisar fatores biológicos, sociológicos e psicológicos que certamente influenciam a sexualidade das pessoas, agora nos resta avaliar a questão sob o ponto de vista espiritual. Por “espiritual” entendemos aqui, não o conceito religioso formal, ligado às religiões instituídas, mas uma noção de tendência natural do ser humano à transcendência, ao conhecimento de si e da realidade que o cerca em bases emocionais e intuitivas, não científicas, nem dogmáticas. Mas, antes, vamos partir de algumas ideias inovadoras da biologia.

O desafio dos que apoiam uma base genética para a orientação sexual é explicar a permanência e adaptação dos genes gays ao longo da evolução. “Ser atraído pelo sexo oposto é útil porque leva o indivíduo a gerar filhos – por isso os genes da heterossexualidade dominam o planeta. Mas como os genes da homossexualidade também parecem existir, é provável que sirvam ou tenham servido a algum valor reprodutivo ao longo da evolução”, diz o cientista inglês Qazi Rahman. Que propósito seria este?

Para a bióloga Joan Roughgarden, a homossexualidade é um traço natural que mantém indivíduos unidos através do contato. “Estamos muito preocupados com o contato genital, mas tudo não passa de intimidade física”, diz. Ou seja, o contato entre as pessoas favorece a sobrevivência da espécie. E, como somos mamíferos, o contato nos é uma questão de vida ou morte.

Para o psicólogo Daryl Bem, da Universidade Cornell (EUA), criador da teoria “exótico se torna erótico”, os indivíduos são atraídos por outros de quem se sentiram diferentes na infância. Assim, meninos (ou meninas) que gostam de futebol conviverão com grupos semelhantes na vida adulta e se interessarão por grupos opostos (as meninas ou meninos que brincam de bonecas); meninos ou meninas que gostam de bonecas conviverão com grupos semelhantes na vida adulta e se interessarão por grupos opostos (os meninos ou meninas que gostam de futebol). “Isso ocorre porque nossa sociedade polariza as diferenças de gênero. Se não as polarizasse tanto, mais homens e mulheres escolheriam parceiros com base em outros atributos além do sexo biológico”, diz Daryl. Ainda que esta teoria pareça clichê, pode ter alguma lógica.

Independente da teoria biológica, parece que a pesquisa tende a demonstrar que não só a homossexualidade, lesbianismo e bissexualidade são perfeitamente naturais, como tais comportamentos encontram respaldo genético e também evolutivo em várias espécies de animais, especialmente mamíferos. Do ponto de vista evolutivo, poderia ajudar tanto no controle de natalidade, quanto na proteção aos mais desvalidos, aos órfãos e mesmo favorecer o contato entre os membros da espécie. E, espiritualmente, qual seria a função?

As teorias espirituais para a sexualidade fora do padrão exclusivamente heterossexual variam muito. Encontrei muitas noções até hoje. Algumas muito preconceituosas, outras mais abertas.

A espiritualidade abraâmica vê a questão com preconceito, ou como algo a ser tolerado, ou como uma alternativa ou teste de Deus, o que não faz o menor sentido.

A espiritualidade extremo-oriental é menos repressora, mas entre aqueles que acreditam em reencarnação e carma, a tendência é pensar que as pessoas gays estão pagando alguma coisa ou que não conseguem se adaptar ao corpo em um determinado gênero após muitas reencarnações em outro gênero. Esta opinião absurda, aliás, é muito comum no Espiritismo brasileiro.

A nova espiritualidade, ou também “neo-espiritualidade”, como a chamo, e que é baseada não somente em antigos ensinamentos de diversas fontes religiosas, mas também em conhecimentos da Ciência moderna, da Psicologia e das Neurociências, vê a sexualidade de modo fluido e sem preconceito. As pessoas são naturalmente bissexuais e os fatores que as predispõem a voltar-se a um gênero ou a outro são de várias naturezas, como já analisamos. O fato da recente divisão em heterossexualidade e homossexualidade ter causado uma nítida polarização da sexualidade humana, tem impedido que percebamos a fluidez da sexualidade em si. Não se trata de cancelar sexo biológico de ninguém, de impedir que alguém seja homem ou mulher (ou o que quiser), de impedir que alguém se vista de modo A ou B, mas de evitar que alguém seja impedido de vivenciar o seu ser psicológico e profundo por completo, pois esta completude inclui seu prazer sexual. A espiritualidade que extirpa o sexo é uma espiritualidade morta, porque normatizadora, repressora e recalcada.

Acredito que, do ponto de vista espiritual, estamos em evolução biológica (algo confirmado pelos neodarwinistas a cada dia mais), psicológica (nossa psique se amplia com o tempo) e espiritual (nossa visão da transcendência adquire cada vez mais conceitos novos, conforme ampliamos nosso conhecimento da Realidade). A evolução biológica é algo quase que exclusivo da espécie, pois não se observa de modo relevante num único indivíduo. A evolução psicológica tanto é influenciada pela biologia, que vem da espécie, quanto das vivências individuais (esta seria a opinião da Psicobiologia). Já, a evolução espiritual, se processa em duas frentes: há a evolução espiritual da espécie humana e a evolução espiritual do indivíduo humano. A evolução espiritual da espécie pode ser analisada através da visão sistêmica, que mostra as relações entre os constituintes de um grupo e como todos se retroalimentam. A evolução espiritual individual pode ser analisada por vários tipos de “teorias espirituais” ou, como prefiro chamar “teorias espirituais da mente”.

Minha teoria espiritual da mente preferida é uma mescla de teoria budista da mente e da noção de Panespiritismo, como definido pelo psicólogo Steve Taylor em seus livros, especialmente em “Spiritual Science: Why Science Needs Spirituality to Make Sense of the World”, publicado em 2018 e ainda sem tradução para o Português. O Panespiritismo se insere na neo-espiritualidade e possui um cárater mais científico que religioso, o que interessa mais em uma época em que se faz necessário derrubar antigos dogmas sem sentido que só conduzem a ostracismo, preconceito e repressão.

A partir desta visão, nossas experiências neste mundo devem nos conduzir espontaneamente à expressão da consciência primordial a qual todos já temos acesso, embora não a percebamos. Na verdade, temos pequenos vislumbres dela e, assim, lhes damos vários nomes diferentes, alguns se referindo a algo externo a nós (Deus, Absoluto, Áiyn [O Nada, da Cabala], Brahman, etc.), outros a algo mais interno ou permeante (Tao, Vazio, Rigpa, Consciência luminosa, etc.).

Como existem muitos mundos e planos de manifestação, os sexos e as divisões por gênero variam muito nestes lugares, de modo que quem está na antiga perspectiva polarizada macho-fêmea não consegue entender esta complexidade cósmica. A separação em dois sexos como forma de garantir a reprodução é, do ponto de vista universal, uma solução local e temporária da natureza. Em outros mundos a coisa pode ser totalmente diferente, incluindo aí a androginia, a partenogênese, a reprodução assexuada (como ocorre com as gramíneas) e outras formas de reprodução que nem imaginamos. Talvez a taxa de homossexuais em nossa espécie seja um regulador. Em momentos mais críticos, talvez diminua, em momentos mais tranquilos, pode aumentar. Ou, em momentos de pouca população, tenda a diminuir, e em momentos de superpopulação, como atualmente, tenda a aumentar. Contudo, devemos ter cuidado com este argumento, pois o que impede a reprodução não é a homossexualidade, mas a esterilidade. E, até onde sei, a maior parte dos gays e lésbicas não é estéril!

Num nível espiritual mais profundo, talvez a principal função daqueles indivíduos que tendem para uma sexualidade não exclusivamente heteronornativa seja a de fazer a humanidade evoluir para um próximo estágio, um no qual o sexo não é mais exclusivo para reprodução, em que não é mais visto como sujo ou como pecado, em que não é usado como forma de domínio ou para jogos de poder, e em que, finalmente, o direito de todos ao prazer é reconhecido. Os recalcados que sempre tentaram taxar o prazer (com dogmas, proibições, assassinatos ou, se pudessem, com taxas monetárias para o sexo de cada indivíduo) continuam de pé, mas precisam ser derrubados pela resistência. É preciso resistir ao recalque, ao desprazer, ao moralismo e à falta de amor ao próximo. O resto faz parte de uma antiga espiritualidade que já está em seus estertores.

Conclusão

Do ponto de vista clínico e biológico, a sexualidade compreende três dimensões básicas: biológica (corresponde ao impulso sexual determinado por processos fisiológicos e cerebrais - sistema límbico e hormonal), psicológica (corresponde aos desejos eróticos subjetivos ligados à vida afetiva e sexual) e cultural (corresponde aos padrões de desejos, comportamentos e fantasias sexuais, criadas e sancionadas historicamente por diversas sociedades).

As três dimensões, em geral, se manifestam de forma conjunta na vida sexual humana. Contudo, incluiria uma quarta dimensão, a espiritual (corresponde à busca pela transcendência através do contato mais íntimo com um outro ser, seja de modo permanente ou não, mas em que ambos os parceiros assimilam a experiência e ela contribui para seu crescimento como indivíduos completos). Exemplos de dimensão espiritual da sexualidade são o sexo tântrico (com uma moralidade mais aberta) e a noção de “casamento espiritual” (mais exclusivista e monogâmico).

No momento em que abdicarmos de controlar a vida sexual dos nossos irmãos de espécie, a sexualidade da espécie e a espécie como um todo evoluirá para o próximo passo em todas estas quatro dimensões. Quando isso acontecer, não necessitaremos mais das velhas definições, nem das sopas de letrinhas (LGBTQXYZ…), nem das cartilhas para saber como tratar vários tipos conceituais novos que surgem a cada dia (infelizmente, isso tudo ainda é necessário). Nos relacionaremos apenas com seres humanos e como seres humanos, e teremos prazer como seres humanos em contato – familiar, amistoso ou mesmo sexual – uns com os outros, sempre baseados na máxima do amor e do não causar sofrimento a ninguém.

Sobre o autor

(Paulo Stekel, palestrante e pesquisador de espiritualidade e sexualidade LGBT. Foto de Wolney Garcia)

Paulo Stekel é ativista LGBT e especialista na temática "espiritualidade gay" e "visão espiritual da sexualidade humana". É instrutor de Meditação Não-dualista, orientador do Projeto Mahasandhi de Meditação Livre Não-Religiosa, pesquisador de Religiões e Espiritualidades, praticante budista desde 1995 (seu nome budista vajrayana é Pema Dorje), membro do NEDEC²- Núcleo de Estudos e Desenvolvimentos em Conhecimento e Consciência (UFSC – Florianópolis – SC). Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em Paleolinguística. É escritor, tradutor, revisor, músico, com vários álbuns lançados desde 2009. É um pesquisador não-acadêmico, professor de Cabala Não-dualista, Sânscrito e línguas sagradas. Especialista na interpretação dos textos sagrados das religiões. Nasceu e cresceu em Santa Maria (RS). Atualmente reside em Florianópolis (SC). Proponente da Hierolinguística (uma nova ciência para o estudo das linguagens sagradas proposta em seu livro “Santo & Profano - estudo etimológico das línguas sagradas”, publicado em 2006). Publicou diversas obras: “Elohê Israel (Os deuses de Israel) - filosofia esotérica na Bíblia” (Independente, 2001); “Projeto Aurora - retorno à linguagem da consciência” (FEEU, 2003); “Santo e Profano - estudo etimológico das línguas sagradas” (GEFO, 2006); “Deuses & Demônios - verdades inauditas e mentiras anunciadas sobre os anjos” (Independente, 2007); “Curso de Cabala - com noções de Hebraico & Aramaico [vol. I e II]” (Independente, 2007 e 2008); “Curso de Sânscrito - com noções de Filosofia Indiana [vol. I e II]” (Independente, 2008 e 2009); “A Alma da Palavra” (independente, 2011). Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre na pesquisa de decifração da escrita Glozélica (França), com trabalho científico reconhecido e publicado em Inglês no website do Museu de Glozel (http://www.museedeglozel.com/Trad2000.htm) desde 2006. Pesquisador aceito como paleolinguista de formação livre pelo arqueólogo bósnio-americano Semir Osmanagic na pesquisa de decifração da escrita Proto-Visoko (Bósnia), com trabalho de decifração preliminar apresentado em Sarajevo pelo egiptologista Muris Osmanagic (2010) e publicado no website Bosnian Pyramids, em Inglês e Bósnio: http://icbp.ba/2008/documents/papers/ICBP_Referat_Stekel.pdf.


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